Demônios (Aluísio Azevedo)/II
Daí a um instante, vergado defronte do tinteiro, com o cigarro fumegando entre os dedos, não pensava absolutamente em mais nada, senão no que o bico da minha pena ia desfiando caprichoso do meu cérebro para lançar, linha a linha, sobre o papel.
Estava de veia, com efeito! As primeiras folhas encheram-se logo. Minha mão, a princípio lenta, começou, pouco a pouco, a fazer-se nervosa, a não querer parar, e afinal abriu a correr, a correr, cada vez mais depressa; disparando por fim às cegas, como um cavalo que se esquenta e se inflama na vertigem do galope. Depois, tal febre de concepção se apoderou de mim, que perdi a consciência de tudo e deixei-me arrebatar por ela, arquejante e sem fôlego, num vôo febril, num arranco violento, que me levava de rastros pelo ideal aos tropeções com as minhas doidas fantasias de poeta.
E páginas e páginas se sucederam. E as idéias, que nem um bando de demônios, vinham-me em borbotão, devorando-se umas às outras, num delírio de chegar primeiro; e as frases e as imagens acudiam-me como relâmpagos, fuzilando, já prontas e armadas da cabeça aos pés. E eu, sem tempo de molhar a pena, nem tempo de desviar os olhos do campo da peleja, ia arremessando para trás de mim, uma após outra, as tiras escritas, suando, arfando, sucumbindo nas garras daquele feroz inimigo que me aniquilava.
E lutei! e lutei! e lutei!
De repente acordo desta vertigem, como se voltasse de um pesadelo estonteado, com o sobressalto de quem, por uma briga de momento, se esquece do grande perigo que o espera. Dei um salto da cadeira; varri inquieto o olhar em derredor. Ao lado da minha mesa havia um monte de folhas de papel cobertas de tinta; as velas bruxuleavam a extinguir-se e o meu cinzeiro estava pejado de pontas de cigarro.
Oh! muitas horas deviam ter decorrido durante essa minha ausência, na qual o sono agora não fora cúmplice. Parecia-me impossível haver trabalhado tanto, sem dar o menor acordo do que se passava em torno de mim.
Corri à janela.
Meu Deus! o nascente continuava fechado e negro; a cidade deserta e muda. As estrelas tinham empalidecido ainda mais, e as luzes dos lampiões transpareciam apenas, através da espessura da noite, como sinistros olhos que me piscavam da treva.
Meu Deus! meu Deus, que teria acontecido?!...
Acendi novas velas, e notei que as suas chamas eram mais lívidas que o fogo-fátuo das sepulturas. Conchei a mão contra o ouvido e fiquei longo tempo a esperar inutilmente que do profundo e gelado silêncio lá de fora me viesse um sinal de vida.
Nada! Nada!
Fui à varanda; apalpei as minhas queridas plantas; estavam fanadas, e as suas tristes folhas pendiam molemente para fora dos vasos, como embambecidos membros de um cadáver ainda quente. Debrucei-me sobre as minhas estremecidas violetas e procurei respirar-lhes a alma embalsamada. Já não tinham perfume!
Atônito e ansioso volvi os olhos para o espaço. As estrelas, já sem contornos, derramavam-se na tinta negra do céu, como indecisas nódoas luminosas que fugiam lentamente.
Meu Deus! meu Deus, que iria acontecer ainda?
Voltei ao quarto e consultei o relógio. Marcava dez horas.
Oh! Pois já dez horas se tinham passado depois que eu abrira os olhos?... Por que então não amanhecera em todo esse tempo!... Teria eu enlouquecido?...
Já trêmulo, apanhei do chão as folhas de papel, uma por uma; eram muitas, muitas! E por melhor esforço que fizesse, não conseguia lembrar-me do que eu próprio nelas escrevera.
Apalpei as fontes; latejavam. Passei as mãos pelos olhos, depois consultei o coração; batia forte.
E só então notei que estava com muita fome e estava com muita sede.
Tomei a bilha d'água e esgotei-a de uma assentada. Assanhou-se-me a fome.
Abri todas as janelas do quarto, em seguida a porta, e chamei pelo criado. Mas a minha voz, apesar do esforço que fiz para gritar, saía frouxa e abafada, quase indistinguível.
Ninguém me respondeu, nem mesmo o eco.
Meu Deus! Meu Deus!
E um violento calefrio percorreu-me o corpo. Principiei a ter medo de tudo; principiei a não querer saber o que se tinha passado em torno de mim durante aquele maldito sono traiçoeiro; desejei não pensar, não sentir, não ter consciência de nada. O meu cérebro, todavia, continuava a trabalhar com a precisão do meu relógio, que ia desfiando os segundos inalteravelmente, enchendo minutos e formando horas.
E o céu era cada vez mais negro, e as estrelas cada vez mais apagadas, como derradeiros e tristes lampejos de uma pobre natureza que morre!
Meu Deus! meu Deus! o que seria?
Enchi-me de coragem; tomei uma das velas e, com mil precauções para impedir que ela se apagasse, desci o primeiro lance de escadas.
A casa tinha muitos cômodos e poucos desocupados. Eu conhecia quase todos os hóspedes. No segundo andar morava um médico; resolvi bater de preferência à porta dele.
Fui e bati; mas ninguém me respondeu.
Bati mais forte. Ainda nada.
Bati então desesperadamente, com as mãos e com os pés. A porta tremia, abalava, mas nem o eco respondia.
Meti ombros contra ela e arrombei-a. O mesmo silêncio. Espichei o pescoço, espiei lá para dentro. Nada consegui ver; a luz da minha vela iluminava menos que a brasa de um cigarro.
Esperei um instante.
Ainda nada.
Entrei.