Demônios (Aluísio Azevedo)/IX
Mas, à proporção que O nosso espírito por tal estranho modo se neutralizava, fortalecia-se-nos o corpo maravilhosamente, a refazer-se de seiva no meio nutritivo e fertilizante daquela decomposição geral. Sentíamos perfeitamente o misterioso trabalho de revisceração que se travava dentro de nós; sentíamos o sangue enriquecer de fluídos vitais e ativar-se nos nossos vasos, circulando vertiginosamente a martelar por todo o corpo. Nosso organismo transformava-se num laboratório, revolucionado por uma chusma de demônios.
E nossos músculos robusteceram-se por encanto, e os nossos membros avultaram num contínuo desenvolvimento. E sentimos crescer os ossos, e sentimos a medula pulular engrossando e aumentando dentro deles. E sentimos as nossas mãos e os nossos pés tornarem-se fortes, como os de um gigante; e as nossas pernas encorparem, mais consistentes e mais ágeis; e os nossos braços se estenderem maciços e poderosos.
E todo o nosso sistema muscular se desenvolveu de súbito, em prejuízo do sistema nervoso que se amesquinhava progressivamente. Fizemo-nos hercúleos, de uma pujança de animais ferozes, sentindo-nos capazes cada qual de afrontar impávidos todos os elementos do globo e todas as lutas pela vida física.
Depois de apalpar-me surpreso, tateei o pescoço, o tronco e os quadris de Laura. Parecia-me ter debaixo das minhas mãos de gigante a estátua colossal de uma deusa pagã. Seus peitos eram fecundos e opulentos; suas ilhargas cheias e grossas como as de um animal bravio.
E assim refeitos pusemo-nos a andar familiarmente naquele lodo, como se fôramos criados nele. Também já não podíamos ficar um instante no mesmo lugar, inativos; uma irresistível necessidade de exercício arrastava-nos, a despeito da nossa vontade, agora fraca e mal segura. E, quanto mais se nos embrutecia o cérebro, tanto mais os nossos membros reclamavam atividade e ação; sentíamos gosto em correr, correr muito, cabriolando por ali a fora, e sentíamos ímpetos de lutar, de vencer, de dominar alguém com a nossa força.
Laura atirava-se contra mim, numa carícia selvagem e pletórica, apanhando-me a boca com os seus lábios fortes de mulher irracional e estreitando-se comigo sensualmente, a morder-me os ombros e os braços.
E lá íamos inseparáveis naquela nossa nova maneira de existir, sem memória de outra vida, amando-nos com toda a força dos nossos impulsos; para sempre esquecidos um no outro, como os dois últimos parasitas do cadáver de um mundo.
Certa vez, de surpresa, nossos olhos tiveram a alegria de ver.
Uma enorme e difusa claridade fosforescente estendia-se defronte de nós, a perder de vista. Era o mar.
Estava morto e quieto.
Um triste mar, sem ondas e sem soluços, chumbado à terra na sua profunda imobilidade de orgulhoso monstro abatido.
Fazia dó vê-lo assim, concentrado e mudo, saudoso das estrelas, viúvo do luar. Sua grande alma branca, de antigo lutador, parecia debruçar-se ainda sobre o resfriado cadáver daquelas águas silenciosas chorando as extintas noites, claras e felizes, em que elas, como um bando de náiades alegres, vinham aos saltos, tontas de alegria, quebrar na praia as suas risadas de prata.
Pobre mar! Pobre atleta! Nada mais lhe restava agora sobre o plúmbeo dorso fosforescente do que tristes esqueletos dos últimos navios, ali fincados, espetrais e negros, como inúteis e partidas cruzes de um velho cemitério abandonado.