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Descobrimento Prodigioso e suas Incalculaveis Consequências para o Futuro da Humanidade/O annuncio

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O ANNUNCIO

Certa manhã todo o mundo em Paris dava tratos à paciencia por causa de um escripto autographado, espalhado profusamente á noite, contendo o seguinte :

« Quem, no domingo 1° de Junho, se achar na praça da Concordia ao dar do meio dia, assistirá á primeira manifestação da maior das revoluções passadas e futuras.

« Não seja motivo de susto a palavra revolução. Esta nada tem de politica ; ou, pelo menos, suas consequencias politicas e sociaes, que no futuro hão de ser consideraveis, não se appresentarão immediata e directamente.

« Immensas revoluções produziram no destino dos povos a invenção da imprensa, da polvora e do vapor, assim como o descobrimento da America. E' neste sentido que aqui se emprega a palavra revolução.

« Cumpre porêm observar que todas essas revoluções reunidas nada são a par da que agora se prepara.

« Quem vir esta primeira manifestação póde lançar no seu livro de lembranças uma data para sempre memoravel nos annaes da humanidade.

« Principiarà ao meio dia em ponto na praça da Concordia, continuando até ás cinco horas nos Campos Elyseos, jardim das Tulherias, passeios publicos, boulevards, cáes e mais lugares que permittam a agglomeração de povo.

« Será bem que as autoridades tomem as devidas providencias para evitar algum máo accidente ; e, si julgarem conveniente, precauções contra quaesquer acontecimentos possiveis. Só têm, porêm, que temer a grande affluencia.

« Si por infundado amor proprio alguem affectar incredulidade no que aqui se annuncia, ou o repute um parto da loucura ou algum logro ridiculo, basta-lhe reflectir no modo inexplicavel por que se distribuiu este escripto para convencer-se de que os mais incredulos não serão desta vez os mais arrazoados.

« No dia 1° de Junho, ao meio dia justo, se darão na praça da Concordia provas explendidas. »

Este annuncio foi espalhado em Paris cinco ou seis semanas antes do 1° de Junho, por uma noite escura e chuvosa, usando-se para isso de todos os meios, desde o mais simples até o mais incomprehensivel.

Pessoas houve que o receberam pelo correio, e algumas em carta registrada. Outras o acharam nos pateos das casas, nas saccadas e par peitos das janellas, nas aguas-furtadas, escadas, e fogões que a temperatura da primavera permittia trazer apagados. Os varredores e trapeiros apanharam grande porção logo ao alvorecer. Delle se encontraram exemplares em todos os monumentos em que ficou á noite alguma fresta ou janella aberta, nos mercados, igrejas, theatros, salões da Praça do Commercio, do Paço da Justiça, salas de bailes publicos, estações das estradas de ferro ; delles se viam entre os ramos e folhas das arvores, delles enfiados nos pára-raios, pendurados por aqui, por alli, em todas as alturas, em prégos, ganchos, em qualquer saliencia de parede, nas venezianas e nos telhados. Boiavam no Sena, cahiam das cornijas e cymalhas trazidos pelo vento. O obelisco de Luxor, na praça da Concordia, estava todo enfeitado : contornavam-n'o de alto a baixo especies de corôas de cordas de que pendiam cordões com enfiadas de exemplares fluctuando ao vento. Muito trabalho deu, apesar da sobejidão de escadas, o despir o venerando monumento daquelle ornato insolito ; não obstante terem começado cedo, a operação prolongou-se tanto que ainda muita gente a presenciou. Diziam os que affrontaram o máo tempo de noite na rua, que tinham cahido alguns exemplares sobre os guardas-chuva. Nesse dia e nos subsequentes apanharam-se, em Paris e nos arredores, passaros de toda a especie — pombos, pardaes, andorinhas, com o escripto atado ao pescoço. E ainda muito depois viam-se alguns desses a voar. Mataram-n'os até na Belgica, Corsega e Algeria.

Ainda não era tudo, mas era já o bastante para excitar a curiosidade publica e pôr a policia àlerta.

O que mais preoccupava a população não era o conteúdo do papel,senão a maneira por que tinha sido espalhado. Recordava a historia de uma casa crivada de pedradas à noite, em 1848, caso para que nunca se poude achar explicação satisfactoria. Todos queriam explicar o da occasião, mas ninguem acertava. Numa cousa estavam quasi todos concordes:—em que os distribuidores deviam ter sido muitos, e se tinham mostrado discretos e habeis.

Qual era o fim disso ; o que andava alli encoberto ? A opinião mais corrente é que era um logro collossal, uma peça de 1° de Abril demorada. Apesar da plausivel advertencia que trazia o escripto, ninguem quiz dar mostras de acreditar que fosse cousa verdadeira. Reconheciam que o logro não valia a pena e dinheiro por que viria a sahir. Mas quem quer pregar peça não olha a nada. Contavam-se historias de escriptos atirados nos quartos pelas janellas abertas, de vidraças quebradas por uma mão calçada de luva que alguem entrevira ; mas ninguem dava credito a esses contos. Os mais atilados suppunham que fosse um artificio industrial, cujo autor só esperava que se tivesse fallado bastante de si para apresentar ao mundo um novo insecticida ou alguma pommada contra a calvice. Quanto a ir á praça da Concordia no dia 1° de Junho, protestavam todos que não dariam tal caminhada, que só provaria simploria credulidade.

Mas comsigo e em silencio os mais scepticos promettiam pôr-se de espreita á janella, em bora désse pouca vista dos cães e boulevards. Os que não tinham essa vantagem por si, premeditavam um pretexto para achar-se fóra de casa, e si fosse possivel, atravessar a praça da Concordia no dia 1° de Junho cerca do meio-dia. Vendo a todos incredulos, cada qual tinha para si que fosse o unico.

A policia e mais autoridades participavam das impressões do povo, mas cuidavam de mais alguma cousa. Podia bem ser que essa capa de logro acobertasse alguma intenção politica, talvez uma conspiração. Não seria um meio engenhoso de ajuntar muito povo e provocar motim ? Em todo caso, resolveu-se tomar precauções, mas sem deixar transpirar nada, para não comprometter a dignidade das autoridades parecendo ligar importancia ao que talvez não passasse de unma logração. Deliberou-se tambem fazer todo o possivel por desvendar o mysterio. Mandaram proceder a dous inqueritos : um pela policia, outro judicial.

O inquerito da policia não carecia de pretexto. Os commissarios tiveram ordem de colher todas as informações que podessem haver dos seus agentes, policiaes e mais auxiliares e mandal-as para a prefeitura,onde seriam autoadas. Quanto ao judicial, tinha justificação bastante das circumstancias enigmaticas da distribuição. Demais, era: 1° uma distribuição de escriptos não autorisada ; e depois o escripto não tinha sido licenciado nem depositado ; não tinha o nome do impressor e dava azo á presumpção da existencia clandestina de uma imprensa autographica. Não continha talvez delicto perfeitamente caracterisado, comquanto não estivesse sellado e podesse considerar-se em rigor tratar de materia politica e economia social. Mas fallava-se de vidraças quebradas, verdadeiros arrombamentos incursos na lei penal. Havia em tudo isto mais do que o bastante para abrir um inquerito com o fim de descobrir os autores desses factos, mais ou menos criminosos sob varios pontos de vista.

Na policia ajuntou-sa unma montanha de documentos. Os agentes colheram escrupulosamente todas as conversas que lhes chegaram aos ouvidos. O dizem e o consta eram a voz geral. Não se fallava de outra cousa nos salões, nas reuniões, nos cafés, nos hoteis, na Praça do Commercio, no Paço, em toda a parte onde se conversa. Principalmente nos cubiculos dos porteiros e nas vendas, onde so ajuntam as cosinheiras, corriam de boca em boca as anecdotas mais inverosimeis. Infelizmente,em parte nenhuma se descobria a verdade. Ocioso é contar todos os incidentes creados pela imaginação, e cada vez augmentados pelo—quem conta um conto accrescenta um ponto. Alguns havia reproduzidos com variantes mas com singular persistencia, em sitios muito affastados uns dos outros.

Um estudante, morador em um quarto do bairro Latino, contava que, por cerca das duas horas da madrugada, não podendo conciliar o somno, ia levantar-se para buscar um livro, quando ouviu quebrar-se um vidro da sua janella e cahir no quarto um objecto. Nada mais percebera por causa da escuridão. Correu á janella, abriu-a e nela viu fóra. Accendeu então a vela e achou no soalho, perto da janella, um objecto redondo embrulhado em papel, em que estava escripto—pelo vidro quebrado. Abriu o papel, que continha uma moeda de cinco francos, e na parte interna caractéres autographicos. Era um exemplar do famoso escripto.

Outros, nos bairros Mouffetard, da Bastilha, da Opera, dos Campos Elyseos, no arrabalde S. Germano, em Montmartre, Vaugirard, e Montrouge contavam que tinham acordado sobresaltados pelo barulho de um vidro quebrado e achado proximo da janella uma moeda de cinco francos embrulhada do mesmo modo. Outros, ao entrar no salão, no gabinete ou na sala de jantar, acharam a mesma cousa, sempre junto de um vidro quebrado. De mais d'isso, parecia difficil, pela fórma das fracturas, examinadas com cuidado, que houvessem sido produzidas somente pelo choque da moeda de cinco francos.

Circumstancia notavel : os quebramentos de vidraças, dados indistinctamente em janellas da frente ou dos fundos, não tinham sido feitos em nenhum quarto em que havia luz. Era portanto certo, que os autores da distribuição nocturna, evidentemente muito numerosos, tinhám tido muito cuidado para não serem vistos.

Entretanto algumas pessoas affirmavam ter percebido alguma cousa.

A' vista da gravidade do facto, mandaram-n'os ao inquerito judicial.

D'esse inquerito tinha sido encarregado um magistrado de rara sagacidade. Foram-lhe entregues os volumosos relatorios appresentados á prefeitura de policia. Deu de mão a tudo o que tinha caracter evidentemente fabuloso, como declarações inadmissiveis de pessoas que pretendiam ter distinguido no ar uma massa negra com fórma semelhante à humana, entre duas outras informes que a sustentavam ou por ella sustentadas, a gesticular como um semeador fantastico, movendo-se com rapidez que andaria entre a da andorinha e a da bala de canhão. O juiz guardou os depoimentos que tinham alguma verosimilhança ou ao menos possibilidade.

Interrogou a todas as pessoas, cujas vidraças tinham sido quebradas, e que haviam recebido moédas de cinco francos, sendo estas provisoriamente retidas como provas para o processo.

Mas nem da data do cunho nem d'outra cousa qualquer se poude tirar indicação util. Foram recolhidas perto de duzentas, o que representava já mil francos de despeza só por esse lado.

Os escriptos distribuidos pelo correio, cujo numero era impossivel precisar mas reconhecido superior a dous mil, tinham custado só de sello mais de duzentos francos, afóra a importancia do registro de algumas cincoenta cartas. O mais que se poude saber pelas indagações feitas no correio, foi que tinham sido apresentadas por um individuo, cujo rosto nenhum empregado tinha tido a idéa de olhar ou observar. Déra o nome de Nagaer, nome imaginario com endereço igualmente fantastico.

Verificou-se que o quebramento de vidraças havia-se dado em bairros muito afastados, senão simultaneamente, pelo menos em momentos tão proximos, que se podia concluir d'ahi haver sido grande o numero de distribuidores, nunca menos de cincoenta e talvez mais de cem ; não contando os que, ainda mais numerosos, andaram a espalhar escriptos por toda parte. Parecia que devêra ter sido pago bem caro tamanho pessoal, e gasto muito dinheiro em authographias, executadas secretamente. Foi trabalho baldado o exame a que se procedeu dos caracteres autographados, da lettra dos sobrescriptos das cartas recebidas pelo correio, do papel e até das cordas e laços, que adornavam o obelisco. As indagações feitas nas lojas de papel, cordas, gaiolas e passaros, foram todas infructiferas. Marcaram-se com minucioso cuidado os depoimentos d'algumas pessoas que diziam ter visto alguma cousa mais que as outras.

Essas pessoas eram : primeiro, seis individuos, que tendo sahido do theatro, foram cêar e jogar em casa de um delles, n'um quartinho de quarto andar. Pelas tres horas da madrugada abriram a janella para renovar o ar cheio de fumaça de charuto. Um momento depois, de fora atiraram por ella um punhado de escriptos. Olharam e nada mais viram. Só a um d'elles pareceu ter distinguido no telhado da casa fronteira, uma forma escura fugindo por detraz d'uma chaminé. Interrogaram-se escrupulosamente todos os habitantes d'essa casa. Mas a unica revelação util, que poderam fazer, foi que um d'elles achou no dia seguinte alguns exemplares nas duas chaminés de seu quarto.

Em outro bairro foi um medico que fôra chamado à noite para vêr um doente. Um feliz acaso permittira que o creado, com uma luz na mão, abrisse a porta do quarto de seu amo exactamente quando quebrou-se com estampido um vidro da janella. Medico e creado affirmavam cathegoricamente ter visto, atravez da cortina da janella, uma mão calçada de luva muito grossa, como as que se usam no jogo de esgrima, quebrar o vidro e empurrar a cortina deixando cahir no quarto um objecto, e sumir-se. Mas fóra não tinham divulgado cousa alguma.

Outras duas pessoas, marido e mulher, estando acordadas na occasião em que quebrou-se a vidraça de seu quarto, diziam tambem ter visto, ainda que mais vagamente, a mesma mão, com o favor do clarão projectado na janella por um lampeão da rua.

Muitos outros depoimentos houve, que é inutil referir. Mas foi impossivel deter a alguem como complice ou coparticipante na menor cousa. Todos aquelles sobre quem por alguns instantes pairaram suspeitas, justificaram-se o mais cabalmente possivel. Foi força renunciar ás indagações.

As conclusões, que tanto o prefeito da policia como o juiz tiraram do interrogatorio, foram as seguintes :

Nada se podia affirmar quando ao fim da distribuição ;

Mas esse fim era patentemente sério e não se podia acreditar que fosse um méro logro ;

Os distribuidores tinham sido numerosissimos ;

Tinham trabalhado muito e dado provas de grande habilidade ;

A distribuição devia ter occasionado despezas consideraveis ;

O segredo tinha sido muito bem guardado ;

Quanto à explicação dos meios empregados, era por emquanto impossivel. Seria provavelmente descoberta mais tarde. Mas era urgente preparar-se para qualquer eventualidade.

Espalhou-se pelo povo alguma cousa a esse respeito. Soube-se ter havido um inquerito e sido interrogadas muitas testemunhas. Isso abalou a incredulidade geral.

Cada qual ao seu modo, tinham as gazetas contado e commentado o facto. No primeiro dia deram umas noticias muito simples da distribuição nocturna, que acharam extraordinaria ; mas, sem dar-lhe importancia, procurava cada uma precaver os leitores contra as exagerações e fabulas em que lhes pareciam envolvidas quasi todas as versões. No dia seguinte tinham se multiplicado estas de tal maneira, que foi preciso dar alguns pormenores. O texto do escripto foi reproduzido por todas as gazetas, accompanhado do competente commentario geralmente suggerido pelo mais perfeito scepticismo. Teria talvez cahido no esquecimento essa historia dentro de poucos dias si não se lembrasse uma d'ellas de tomar o caso ao sério, o que veiu provocar risada unanime. A gazeta credula chamava-se Universel. No quarto dia publicou um extenso artigo enumerando todas as circunstancias, tão numerosas quão inexplicaveis, que pareciam fóra de duvida. Fazia disso base para affirmar homens capazes de executar tal prodigio não podiam ser logradores nem charlatães vulgares, e que o mais arrazoado era, senão acreditar cegamente em algum grande invento, ao menos esperar pelo primeiro de Junho, em vez de negar antes de ter visto. Por sua parte confessava alto e bom som que se sentia mais disposto a acreditar do que a duvidar.

Ia até a aventurar uma hypothese. Parecia-lhe provado que se tinha descoberto um meio para dirigir os balões.

Os distribuidores nocturnos eram com toda a probabilidade aeronautas adestrados e industriados pelo inventor. E talvez se viessem a ver, no primeiro de Junho, centenas de balões a navegar por cima de Pariz obedecendo a todos os impulsos que lhes dessem os conductores dentro das suas barquinhas.

Cahiram sobre o Universel mais com sarcasmos do que com boas razões. Dignaram-se, por muito favor, observar-lhe que semelhante invento careceria de muitas experiencias e estas não poderiam ter ficado ignoradas de toda a gente. Não se podiam calcular os distribuidores em menos de trezentos. Quem acreditaria na possibilidade de fazerem-se trezentos balões sem se saber disso, enchel-os—o que é operacão longa e requer grande pessoal—e depois executarem suas evoluções em Pariz durante uma noite inteira, sem ser visto ao menos um ? Demais, não estava já scientificamente demonstrado que o governo dos balões era pura chimera, porque não se podia encontrar no ar resistencia bastante e porque seria preciso darlhes dimensões desproporcionadas com a força de qualquer motor aereo realisavel ?

Tudo isto foi dito por incidente e entre epigrammas sem numero. O Universel não se deu por vencido ; atirou ao desdem o ridiculo com que o queriam cobrir e contrapoz-lhe raciocinios cerrados, que abalaram a muitos incredulos. Ganhou com isso grande numero de leitores.

Pelo mesmo tempo se foram conhecendo algumas particularidades do inquerito, em que tinham sido interrogadas tantas testemunhas. D'ahi concluiam que a decifração do enigma não era a hypothese de um certo numero de balões governaveis, porque si tal fosse, não teria escapado ás investigações da justiça e da policia. Antes concluiam que devia andar n'isso algum negocio sério, visto que se empregavam tão grandes meios de investigação. Começavam os zombeteiros a bandear-se para o Universel, que por sua parte já declarava não fazer cabedal da sua hypothese dos aerostatos, limitando-se a sustentar que alguma cousa notavel havia de acontecer no primeiro de Junho. As outras folhas começaram a temer houvessem seguido caminho errado.

Com que cara ficariam si os factos viessem a dar razão ao adversario, cousa que cada vez se antolhava menos impossivel ?

Poz-se cada uma a esquadrinhar o melhor meio de mudar de opinião, caso fosse necessario render-se perante a evidencia.

Depois vieram chegando as noticias da impressão produzida nas provincias, a principio repetição da que em Pariz affectava completo scepticismo.

Dentro em pouco, porêm, mudaram as cousas. Na provincia ha mais tempo para se lêr e reflectir. Declararam-se abertamente em favôr do Universel.

Entregaram-se sem fingidos pejos ao violento fogo da curiosidade.

Muita gente preparou as malas para achar-se em Pariz no primeiro de Junho. Não sabiam as companhias de estradas de ferro si deviam organisar trens de passeio, e certamente o fariam si não lhes pedisse discretamente o governo que se deixassem d'isso.

Entretanto era ainda vinte de Maio e já começava a povoação a ficar cansada de ouvir fallar sempre da mesma cousa. Já andavam os ouvidos enfastiados d'esse assumpto,como acontece com todos os que tornam-se por mais de certo tempo objecto de conversação. Quasi que se deixou de tratar d'elle. A attenção publica estava por demais fatigada, de modo que chegaram a declarar que qualquer allusão ao primeiro de Junho ou á distribuição nocturna irritava os nervos da melhor tempera Tres dias antes do primeiro de Junho, parecia que ninguem da ia um passo pela decifração do enigma. Nova circumstancia, porêm, veiu despertar as preoccupações amortecidas.

Foi uma segunda distribuição noctarna ; não de papel authographado mas de medalhas de folha de Flandres pouco maiores que uma moeda de cinco francos, com a mesma profusão espalhadas com que o fôra o escripto : mas sem vidraças quebradas, nem mão com luva entrevista por alguem. Traziam essas medalhas em grosseiro mas bem legivel cunho estas simples palavras :

Alem d'isso via-se uma cousa singular em cima da casa em que estava o escriptorio do Universel. Collocara essa folha entre duas chaminés por cima da cumieira, uma taboleta de ferro com seu nome vasado em caracteres immensos, que se podiam ver de muito longe. Por baixo tinham-lhe pendurado á noite uma especie de bandeira branca, em que se lia esta unica palavra pintada em caracteres de dous metros de altura :

Verificou-se com toda a certeza que ninguem teria podido subir ao telhado á noite.

Finalmente, o obelisco fôra vestido com um novo ornamento ; tinha uma especie de barrete de quatro faces de lona branca.

Lia-se em cada face :

D'esta vez resolveram-se a deixar a duvida. Começaram a não ter mais reservas. A mocidade escolastica, os operarios, o povo dos arredores, vencendo todos os preconceitos humanos, foram os primeiros que se mostraram abertamente possuidos d'uma curiosidade que se tornou contagiosa. Fizeram-se apostas enormes no Jockey-Club e em todas as reuniões pró e contra a realidade do acontecimento esperado. Até a Praça persuadiu-se de que o dia primeiro de Junho teria influencia no commercio, e dividiu-se em dous partidos : alta e baixa. As mulheres manifestaram grande desejo de ir vêr. Os maridos deram-se por felizes ao achar pretexto para irem tambem. Do povo principalmente, familias inteiras se apromptaram para invadir em chusma a praça da Concordia.

Quanto aos outros, muitos havia que não temiam o apinhamento do povo e contavam entrar n'elle. Os que receiavam que houvesse muito aperto, procuraram obter janellas nos boulevards ou nos cáes. A rua real tornou-se o alvo de todas as ambições

A 29 de Maio lembrou-se um de seus moradores de pôr n'um escripto : alugam-se janellas para o dia primeiro de Junho. »

Foi exemplo immediatamente seguido, e como o fogo posto a um rastilho de polvora, lavrou pelos boulevards, rua de Rivoli, e cáes. Foi tudo alugado polos preços incriveis que accusam a curiosidade levada ao paroxismo. A's cinco horas da tarde do dia 31 de Maio só havia alguns escriptos nos bairros mais afastados da praça da Concordia.

Não havia duvida que a affluencia devia ser enorme. Era esse o entender de todos, assim como das autoridades.Toda a tropa foi aquartelada por prevenção. Foram reforçadas as guardas da circumvisinhança e munidas de cartuchame para qualquer eventualidade. A artilharia estava prompta, de peças montadas.

Estas precauções foram tomadas debaixo do maior segredo. Postaram-se ao amanhecer agentes de policia, policiaes, guardas a pé e a cavallo, em todos os sitios para onde devia affluir a multidão, com ordens severas de manter a paz e prevenir os accidentes. Prohibiu-se a passagem de carros por certos pontos, como nos dias de festa nacional.

Diziam todos que si logro era o que se preparava, tinha tido um exito magnifico.