Descripçaõ topografica, e historica da Cidade do Porto
A ſua Origem, Situaçaõ, e Antiguidades : A magnificencia dos ſeus Templos, Moſteiros, Hoſpitaes, Ruas, Praças, Edifícios, e Fontes : O número dos ſeus Habitadores, o ſeu Caracter, Genio, Coſtumes, e Religiaõ que profeſſaõ : Os Appellîdos das Famílias Illuſtres, que nella reſidem : O Catalogo Chronologico dos ſeus Biſpos : Os Governos Eccleſiaſtico, Civil, Militar, Politico : O naſcimento do grande Rio Douro, que a banha, e fórma a ſua Barra : As producçoens da Natureza, e Induſtria, que augmentaõ os Ramos do ſeu Commercio, e promovem as Fabricas, que tem eſtabelecidas : Os Privilegios, Iſençoens, e Regalîas, que a engrandecem : A noticia dos Homens, e das Mulheres Illuſtres em Virtudes, Letras, e Armas, que della ſaõ naturaes
MOvidos pelos rógos e inſtancias dos ſeus Amigos, e d’algumas Peſſoas ſábias, he, que muitos Eſcriptores proteſtaõ, que produzem em Público as ſuas obras : elles fazem por eſta cauſa longos, e fatigantes Prefacios : elles ſe esforçaõ em amontoar reíteradas, e impertinentes ſatisfaçoens, que em lugar de lhes adquirirem o glorioſo nome de Deſentereſſados, os moſtraõ ávidos de gloria, capeáda com o disfarce do proprio louvor.
Outra verêda totalmente oppoſta a eſte caminho taõ frequente, e trilhado, me levou a fazer pública eſta Deſcripçaõ Topografica, e Hiſtorica. Bem longe de ſer conſtrangido por homens intelligentes, e imparciaes a que a emprendeſſe, e imprimiſſe, foraõ elles
meſmos
Obra
Ingenuamente confeſſo , que eſtas multiplicadas, ainda que imprudentes reflexoens, me conſternáraõ à primeira viſta. Indeciſo no que faria, naõ me deliberava a continuar na execução do projecto, que tinha concebido.
Porém
ta
- ↑ O Altar de JESUS MARIA JOZÉ, collocado na Igreja da Congregaçaõ do Oratorio deſta Cidade do Porto. Por hum Padre da meſma Congregaçaõ.
cas
Iſto
- ↑ O P. Argote. Naõ merece menor attençaõ o Illuſtriſſimo Cunha no Cat. dos Arcebiſpos de Braga, e Rezende no pequeno Poema que fez a eſta Cidade.
Dizem, que ella he a ſegunda Cidade de Entre Douro e Minho. Talves, que eſte erro naſceſſe de ſer o ſeu Biſpo ſuffraganeo do Arcebiſpo de Braga; porém, e que faz a Juriſdicção Eccleſiasſtica, para que huma Povoação ſeja, ou deixe de ſer Capital? Madrid naõ he Cidade Archiepiſcopal, nem Epiſcopal, e com tudo he Capital de Heſpanha : Madrit eſt devenue la Ville Capitale du Royaume d'Eſpagne, dis Moreri.[1] Pariz, ain-
da
- ↑ Nota de Transcrição: Louis Moréri em Le grand dictionnaire historique.
Dizem mais, que ella naõ he muito populoſa em tempo de guerra; que naõ tem outro Commercio, que o dos Vinhos; que he huma Colonia dos Inglezes, e que ſaõ eſtes os unicos Commerciantes, que nella rezidem. Pódem achar-ſe erros mais craſſos, e palmares?
A meſma famoſa Encyclopedia,[1] que nos artigos dependentes do puro diſcurſo, ſe faz acredora dos applauſos, que tem adquirido no Orbe literario, naõ deixa de padecer ſeus erros, naquelles, em que os ſeus eruditiſſimos AA. ſe viraõ, na dura neceſſidade de ſervir-ſe de guias infieis, e de relaçoens alheias. Na parte Geográfica valeraõ-ſe da Geografía do Alemão Hubner, que fóra da
Deſcripçaõ
- ↑ Nota de Transcrição: vide L'Encyclopédie, co-editada por d'Alembert e Diderot.
No que reſpeita ao Porto, aſſevera-ſe na ſobredita Encyclopedia,[2] que eſta Cidade tem ſó quatro mil Bourgeois, iſto he Cidadãos, ou Paizanos. Que eſtranha equivocaçaõ! Naõ há dúvida, que algumas Geografîas antigas Portuguezas, e Caſtelhanas, eſcriptas muito antes de ter o Porto chegado á grandeza em que hoje eſtá, lhe daõ quatro mil viſinhos mas na lingoagem deſtas Geografías, a palavra Viſinhos, quer dizer Fógos, ou Familias, e naõ Paizanos.
Tambem na mencionada Encyclopedia,[2] e em quaſi todos os Geógra-
fos
- ↑ Nota de Transcrição: vide Géographie por Voltaire em Dictionnaire philosophique.
- ↑ 2,0 2,1 Nota de Transcrição: vide PORTO por Jaucourt em L'Encyclopédie.
Devo também advertir o Leitor, que a folhas 135: deſte livro em que ſe falla do Governo Eccleſiaſtico, deve-ſe accreſcentar, que além do Deſtribuidor, e Inquiridor, tem mais hum Contador; e a tolhas 354 aonde ſe diz que Jozé Corrêa de Mello foi Tenente Capitaõ da Marinha, ſe deve ler que foi Capitaõ Tenente, Commandante, &c. e filho de Martim Affonſo de Mello Moço Fidalgo com exercicio accreſcentado a Fidalgo Eſcudeiro, e de ſua mulher D. Jeronyma Joaquina de Souza Soutomaior. As outras erratas, e emendas vaõ no fim deſte meſmo livro.
PArece neceſſario, que havendo eu de deſcrever a ſituaçaõ, e antiguidades da Cidade do Porto, diga alguma couſa da Provincia d'entre Douro, e Minho; cujos intereſſes ſaõ entre ſi taõ reciprocos, que naõ ſómente a Cidade utiliza á Provincia pelo continuo, e notavel conſumo, que dá aos ſeus frućtos, pelo valor apreciavel com que os faz eſtimar das Naçoens eſtrangeiras, e pela facilidade com que os tranſporta deſde o Rio Douro, até os pórtos do Brazil, e outras conquiſtas de Portugal; mas também a Provincia beneficîa a Cida-
de
[1] Na parte mais ſeptentrional do Reino, he que ſtá ſituada eſta fertiliſſima Província. Tem por limites ao Norte, o Rio Minho, que a ſepára de Galliza; ao Meio dia, o Rio Douro, que a divide da Provincia da Beira; ao Occidente, o Oceano Atlantico; ao Naſcente, a grande Serra do Maraõ. Dilata-ſe deſde Norte a Sul com dezoito legoas de comprimento, e doze de largura em algu-
mas
- ↑ I Extẽçaõ deſta Provincia.
lados,
campos
[1] Os pórtos de mar ſaõ ſeis; o Caminha, Vianna, Eſpozende, Villa do Conde, Matozinhos, e Porto. No primeiro engolfa-ſe o rio Minho, no ſegundo o Lima, no terceiro o Cávado, no quarto o Ave, no quinto o Leſſa, no ſexto o Douro. De todos eſtes portos, os mais famoſos ſaõ os de Vianna, e Porto. Eſte uſtimo o deſcreverei no Capitulo do Commercio. No porto de Vianna, aonde até o anno de mil ſetrecentos e quarenta entravaõ muitas e grandes embarcaçoens, hoje apenas entraõ alguns hyates, e pequenos navios; porque a groſſa negociaçaõ da Cidade do Porto abſorveo a maior parte do ſeu Commercio. As Lanchas, que diariamente ſahem deſtes pórtos, e das prayas da Póvoa a peſcarem no alto mar, paſſaõ de trezentas. Eſta prodigioſa multidão de lanchas, faz com que jámais falte em toda a Província peixe freſco e em
preço
- ↑ III Pórtos de Mar.
[1] Sobre as agradáveis campinas, e florídos valles, por onde paſſaõ os principaes rios, levantaõ-ſe alcantilados, e ſoberbos Montes, dos quaes abunda eſta Provincia; e por eſta ſa, he a mais montuóſa do Reino, depois da Beira, e Trás os Montes. Os mais elevados ſaõ; a Serra do Gerez, que atraveſſando huma grande parte de Caſtella, vem acabar em Portugal. Nella há muitas cabras braviſſimas,[2] e de taõ extraordinaria grandeza, que em nenhuma outra Serra, ou Monte apparecem ſimilhantes. Tem o pêllo muito curto, pardo, e fino: as pontas muito grandes, e agudas, Saõ furioſas no tempo do cio, e as mais acanteladas quando paſtaõ, revezando-ſe humas ás outras em ſentinellas avançadas, para com os ſeus altos bramidos darem aviſo no meſmo inſtante em que ſentem gente; então retiraõ-
se
- ↑ IV Serras e Mõtes
- ↑ Nota de transcrição: Refere-se possivelmente ao entretanto extinto íbex-português (Capra pyrenaica lusitanica).
les
[1] A amenidade dos valles produz tudo quando he neceſſario para a ſubſiſtencia do homem. A quantidade de paõ e vinho, que he o ſeu frućto mais copioſo, naõ ſomente he baſtante para o ſuſtento dos ſeus habitadores; mas ainda ſobeja para ſoccorrer outras Provincias. Aquelles Eſcriptores, que dizem o contrario, ou nunca viraõ a ſua fecunda producçaõ, ou ignoraõ que ſómente para a Cidade de Lisboa, ella envia em alguns annos pelas barras de Vianna, e Porto, de cem até duzentos mil alqueires de milhaõ: eſte genero he o mais ordinario, que ſe colhe das ſementeiras; há canas del-
le,
- ↑ V Frućtos, e producçoens
dade
ſos
[1] A meſma riqueza ſe conhece nas Minas d'ouro, e prata, que ainda hoje conſerva nas ſuas entranhas. Eſta Provincia juntamente com Galliza, rendia cada anno em Direitos, que das ſuas Minas pagava aos Romanos, trinta mil marcos d'ouro. A'lem das que ſe deſcobriraõ pelos annos de mil e duzentos e cincoenta no Termo de
Barcellos
- ↑ VI Minas de ouro, prata, e pedr. precioſas.
pois
[1] Augmenta-ſe notavelmente a riqueza deſta Provincia com a multidaõ das ſuas Fabricas. Naõ ſó ella abun-
da
- ↑ VII Fabricas.
as
[1] O clima, he entre os bons o mais ſaudavel, porque álem da ſua ſituaçaõ, que eſtá entre o parallelo de quarenta e hum, e quarenta e dous gráos de altura do polo Arćtico, tambem concorre viſivelmente a pureza, e bondade dos ſeus áres, para a conſervaçaõ da ſaude dos póvos. Rariſſimas, ou nenhumas enfermidades epidemicas os acomettem. Tem-ſe obſervado, que em quaſi todos os contagios, e ataques do mal da peſte, tem ſido illeza eſta Provincia. Pode-ſe dizer, que nella reſide huma Primavera perpetua. O veraõ por mais ardente que ſeja, em nada he moleſto aos ſeus naturaes, ou eſtrangeiros, que viájaõ pelas ſuas eſtradas; porque naõ ſómen-
te
- ↑ VIII Clima.
guns
- ↑ Epitome part. 4. capt. 5.0.4
Nota de Transcrição: vide Epitome de las historias portuguesas de Manuel de Faria e Sousa. No entanto, a passagem em questão, apesar de referenciar várias informações anteriores, não menciona a existência de homens e mulheres de avançada idade. - ↑ Antiguid. de Portu. cap. 72
Nota de Transcrição: vide Varias antiguidades de Portugal de Gaspar Estaço.
Naõ concorre menos eſta bondade de clima para a multiplicaçaõ dos individuos, e fecundidade exceſſiva das mulheres. Ellas saõ as mais fecundas entre todas as do Reino. Sem recorrer a antiguidade, ainda hoje vivem muitas, que tem parido vinte e cinco filhos, e algumas trinta. Naõ ſaõ rariſſimas as que parem dous e tres filhos juntamente. A pezar da incredulidade de impertinentes criticos, moſtra-ſe inconteſtavel o que ſe eſcreve da famoſa CALCIA LUCIA mulher de CAIO ATTILIO natural da Cidade de Braga, e nella Governador da Luzitania pelos Romanos. Em hum ſó parto deu á luz nove filhas, que foraõ
QUITERIA
Nao poſſo eſquecer-me do que alguns Aućtores affirmaõ da célebre Maria Mantella. Eſta mulher pario de hum ſó parto ſette filhos. Todos foraõ Sacerdotes, e edificárão ſette Igrejas, que ainda hoje exiſtem , a ſaber Santa Maria de Moreiras, Santa Maria de Galvaõ, Villar de Perdizes, Santa Leocadia, Santa Maria de Mercs, o Moſteiro Dozo, e ametade da Igreja da Villa de Chaves. Neſta ultima tiveraõ ſepultura juntamente com ſua Mãi. Sobre a pedra, que lhe ſerve de tampa , lê-ſe eſte humilde, e ſimples Epitafio:
AQUI JAZ MARIA MANTELLA COM SEUS FILHOS ARREDOR DELLA.
[1] Saõ geralmente robuſtos e fortes os naturaes deſta Provincia. A lavoura, he o ordinario exercicio dos Cam-
Camponezes
- ↑ IX Lavoura.
[1] O temperamento fleumatico dos Minhotos os conduz á paz e tranqui-
tranquilidade
- ↑ X Costumes.
letras fazem nellas admiraveis progreſſos de ſórte, que a Univerſidade de Coimbra, os deſtingue ſempre com louvor entre os ſeus Alumnos. Saõ claros teſtemunhos deſta verdade os excellentes, e eruditos livros, que elles daõ á luz publica, e illuſtraõ as melhores livrarias.
[1] A reſpeito dos trajes ordinarios, e uſuaes, há differença notavel entre os Cidadaõs, e Camponezes, bem como em todos os Reinos da Europa ſe
obſerva
- ↑ XI Trages.
Commarcas
contar
[1] A Nobreza das Familias illuſtres he taõ antiga como o Reino. Naõ ſómente tem dado para elle muitas cazas diſtinćtas, mas tambem para o de Caſtella. Ao valor dos Aſcendentes deſtas Familias he, que os primeiros Reis de Portugal devêraõ a conquiſta, e augmento deſta Monarchia. Logo no principio, que o Conde D. Henrique entrou por entre Douro, e Minhoo, daqui eſcolheo os principaes Capitaens, e Soldados, que fizeraõ aos Mouros viva guerra. Todos ſabem quaes foraõ os ſeus glorioſos Feitos. No ſeguinte catalogo declaro os Appellidos deſtas Familias, e nelle ſigo
a
- ↑ V Nobreza.
Aboim, Abreu, Aguiar, Alcaforado, Alvim, Alvarenga, Alvergaria, Alvo, Alveiro, Alaõ, Amaral, Amorim, Aranha, Araujo, Atayde, Azevedo, Ayram, Ayres.
Bayaõ, Bacellar, Barboza, Barros, Barreto, Barbeita, Barbuda, Baſto, Berrado, Brandaõ, Briteiros, Britto.
Caſtro, Craſto, Caminha, Caleiro, Couto, Coutinho, Calvo, Carvalho, Cerveira, Chamiço, Carneiro, Coutos, Coſtas, Coelhos, Correa, Cunha, Cyrne. Danta, Darga.
Eſteves, Ermiges, Ervilhã, Eſcacha.
Falcaõ, Faria, Farinha, Fafes, Fafes Lus, Fagundes, Ferreira, Ferrás, Felgueira, Feijoos, Figueira, Figueiredo, Fonſeca, Fornellos, Freitas, Fromariz.
Gamas, Gajo, Gayo, Giella, Godinho, Guedes, Guimaraens, Guntim.
Homem. Lagos, Laudim, Leire,
Leite
Maya, Magalhaens, Mattos, Machado, Meirelles, Mendanha, Mello, Miranda, Moniz, Motta, Monteiro, Moreira, Mouro, Mourinho.
Neiva , Nobrega, Novaes, Nunes.
Oliveira, Ortigueira , Ornellas, Oſſem, Ovequez.
Paes, Padim, Palmeiro, Pereira, Panagate, Peixoto, Peixoto Silva, Peſſoa, Pitta, Pires, Pimenta , Pimentel, Pinto, Pirina, Ponce, Porto, Porto Carreiro, Pombeiro.
Queiroz. Rebello, Rego, Rendufe, Ribeiro, Ribeira, Rocha, Roza. Sá, Sá de Menezes, Salgado, Sandim, Sequeiros, Sequeiras, Silvas, Silveſtres, Simoens, Souſas, Soares.
Tavares, Tangil, Teixeira, Tenreiro, Touriz, Tourinho, Topete, Traſtamir. Vasconcellos, Valladares, Valbom, Vaz, Vellozos,
Veiga
[1] Toda a Província divide-ſe em ſeis Commarcas, que ſaõ as Guimaraens, Vianna, Valença, Barcellos, Porto, Pennafiel, e com a Eccleſiaſtica de Braga fazem ſette. Tem 1519 fregueſias. Moſteiros, e Conventos 150. Collegiadas cinco, a de Guimaraens, Barcellos, Vianna, Valença, e Cedofeita, eſta, e a de Guimaraens, ſaõ as mais notaveis em dignidade, renda, e antiguidade.
[2] As Ermidas, e Sanćtuarios paſſaõ de tres mil. Entre eſtes ſaõ mais frequentados o da Senhora do Porto, tres legoas ao Naſcente de Braga. O da Senhora do Pilar de Lanhozo, e o da Senhora da Abbadia, aquelle duas legoas ao Naſcente da meſma Cidade, eſte tres legoas tambem ao Naſcente: o da Senhora do Bom Deſpacho duas legoas ao Poente da refe-
rida
Sobre todos apparece, como obra immortal da piedade dos Bracarenſes, o terniſſimo e devoto Sanćtuario do BOM JESUS DO MONTE, ſituado em hum frondifero, e copado monte diſtante meia legoa ao Naſcente da ſua Cidade. Neſte devotiſſimo Sanćtuario, vem-ſe figurados os Myſterios da Redempçaõ do Mundo deſde a Cêa do SENHOR, até a ſua glorioſa Aſcenſaõ, em multiplicadas Capellas, e hum Templo, no qual ſe repreſenta vivamente o Monte Calvario, com tu-
do