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Desencantos/Parte I

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EM PETRÓPOLIS

Um jardim, terraço no fundo

CENA I

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Clara, Luiz de Melo

CLARA - Custa a crer o que me diz. Pois deveras saiu aborrecido do baile?

LUIZ - É verdade.

CLARA - Dizem entretanto que esteve animado...

LUIZ - Esplêndido!

CLARA - Esplêndido, sim!

LUIZ - Maravilhoso.

CLARA - Essa é, pelo menos, a opinião geral. Se eu lá fosse, estou certa de que seria a minha.

LUIZ - Pois eu lá fui e não é essa a minha opinião.

CLARA - É difícil de contentar nesse caso.

LUIZ - Oh! não.

CLARA - Então as suas palavras são um verdadeiro enigma.

LUIZ - Enigma de fácil decifração.

CLARA - Nem tanto.

LUIZ - Quando se dá preferência a uma flor, à violeta, por exemplo, todo o jardim onde ela não apareça, embora esplendido, é sempre incompleto.

CLARA - Faltava então uma violeta nesse jardim.

LUIZ - Faltava. Compreende agora?

CLARA - Um pouco.

LUIZ - Ainda bem!

CLARA - Venha sentar-se neste banco de relva, à sombra desta árvore copada. Nada lhe falta para compor um idílio, já que é dado a esse gênero de poesia. Tinha então muito interesse em ver lá essa flor?

LUIZ - Tinha. Com a mão na consciência, falo-lhe a verdade; essa flor não e uma predileção do espírito, é uma escolha do coração.

CLARA - Vejo que se trata de uma paixão. Agora compreendo a razão por que não lhe agradou o baile, e o que era enigma, para a ser a coisa mais natural do mundo. Está absolvido do seu delito.

LUIZ - Bem vê que tenho circunstâncias atenuantes a meu favor.

CLARA - Então o senhor ama?

LUIZ - Loucamente, e como se pode amar aos vinte e dois anos, com todo o ardor de um coração cheio de vida. Na minha idade o amor é uma preocupação exclusiva que se apodera do coração e da cabeça. Experimentar outro sentimento, que não seja esse, pensar em outra coisa, que não seja o objeto escolhido pelo coração, é impossível. Desculpe se lhe falo assim...

CLARA - Pode continuar. Fala com um entusiasmo tal, que me faz parecer estar ouvindo algumas das estrofes do nosso apaixonado Gonzaga.

LUIZ - O entusiasmo do amor é por ventura o mais vivo e ardente.

CLARA - E por isso o menos duradouro. E como a palha que se inflama com intensidade, mas que se apaga logo depois.

LUIZ - Não aceito a comparação. Pois Deus havia de inspirar ao homem esse sentimento, tão suscetível de morrer assim? Demais, a prática mostra o contrário.

CLARA - Já sei. Vem falar-me de Heloisa e Abeillard, Pyramo e Tysbe, e quanto exemplo a história e a fábula nos dão. Esses não provam. Mesmo porque são exemplos raros, é que a história os aponta. Fogo de palha, fogo de palha e nada mais.

LUIZ - Pesa-me que de seus lábios saiam essas palavras.

CLARA - Por que?

LUIZ - Porque eu não posso admitir a mulher sem os grandes entusiasmos do coração. Chamou-me há pouco de poeta; com efeito eu assemelho-me por esse lado aos filhos queridos das musas. Esses imaginam a mulher um ente intermediário que separa os homens dos anjos e querem-na participante das boas qualidades de uns e de outros. Dir-me-á que se eu fosse agiota não pensaria assim; eu responderei que não são os agiotas os que têm razão neste mundo.

CLARA - Isso é que é ver as coisas através de um vidro de cor. Diga-me: sente deveras o que diz a respeito do amor, ou está fazendo uma profissão de fé de homem político?

LUIZ - Penso e sinto assim.

CLARA - Dentro de pouco tempo verá que tenho razão.

LUIZ - Razão de que?

CLARA - Razão de chamar fogo de palha ao fogo que lhe devora o coração.

LUIZ - Espero em Deus que não.

CLARA - Creio que sim.

LUIZ - Falou-me há pouco em fazer um idílio, e eu estou com desejos de compor uma ode sáfica.

CLARA - A que respeito?

LUIZ - Respeito à crueldade das violetas.

CLARA - E depois ia atirar-se à torrente do Itamarati? Ah! como anda atrasado do seu século!

LUIZ - Ou adiantado...

CLARA - Adiantado, não creio. Voltaremos nós à simplicidade antiga?

LUIZ - Oh! tinha razão aquela pobre poetiza de Lesbos em atirar-se às ondas. Encontrou na morte o esquecimento das suas dores íntimas. De que lhe servia viver amando sem esperança?

CLARA - Dou-lhe de conselho que perca esse entusiasmo pela antiguidade. A poetiza de Lesbos quis figurar na história com uma face melancólica; atirou-se de Leucate. Foi cálculo e não virtude.

LUIZ - Está pecando, minha senhora.

CLARA - Por blasfemar do seu ídolo?

LUIZ - Por blasfemar de si. Uma mulher nas condições da décima musa nunca obra por cálculo. E V. Excia., por mais que queira, deve estar nas mesmas condições de sensibilidade, que a poetiza antiga, bem como esta nas de beleza.


CENA II

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Luis de Mello, Clara, Pedro Alves


PEDRO ALVES - Boa tarde, minha interessante vizinha. Sr. Luiz de Mello!

CLARA - Faltava o primeiro folgazão de Petrópolis, a flor da emigração!

PEDRO ALVES - Nem tanto assim.

CLARA - Estou encantada por ver assim a meu lado os meus dois vizinhos, o da direita e o da esquerda.

PEDRO ALVES - Estavam conversando? Era segredo?

CLARA - Oh! não. O Sr. Luiz de Mello fazia-me um curso de história depois de ter feito outro de botânica. Mostrava-me a sua estima pela violeta e pela Safo.

PEDRO ALVES - E que dizia a respeito de uma e de outra?

CLARA - Erguia-as às nuvens. Dizia que não considerava jardim sem violeta, e quanto ao salto de Leucate, batia palmas com verdadeiro entusiasmo.

PEDRO ALVES - E ocupava V. Excia. com essas coisas? Duas questões banais. Uma não tem valor moral, outra não tem valor atual.

LUIZ - Perdão, o Sr. chegava quando eu ia concluir o meu curso botânico e histórico. Ia dizer que também detesto as parasitas de todo o gênero, e que tenho asco aos histriões de Atenas. Terão estas duas questões valor moral e atual?

PEDRO ALVES (enfado) - Confesso que não compreendo.

CLARA - Diga-me, Sr. Pedro Alves: foi à partida de ontem à noite?

PEDRO ALVES - Fui, minha senhora.

CLARA - Divertiu~se?

PEDRO ALVES - Muito. Dancei e joguei a fartar, e quanto a doces, não enfardei mal o estômago. Foi uma deslumbrante função. Ah! notei que não estava lá.

CLARA - Uma maldita enxaqueca reteve-me em casa.

PEDRO ALVES - Maldita enxaqueca!

CLARA - Consola-me a idéia de que não fiz falta.

PEDRO ALVES - Como? não fez falta?

CLARA - Cuido que todos seguiram o seu exemplo e que dançaram e jogaram a fartar, não enfardando mal o estômago, quanto a doces.

PEDRO ALVES - Deu um sentido demasiado literal às minhas palavras.

CLARA - Pois não foi isso que me disse?

PEDRO ALVES - Mas eu queria dizer outra coisa.

CLARA - Ah! isso é outro caso. Entretanto acho que é dado a qualquer divertir-se ou não num baile, e por conseqüência dizê-lo.

PEDRO ALVES - A qualquer, D. Clara!

CLARA - Aqui está o nosso vizinho que acaba de me dizer que se aborreceu no baile...

PEDRO ALVES (consigo) - Ah! (alto) De fato, eu o vi entrar e sair pouco depois com ar assustadiço e penalizado.

LUIZ - Tinha de ir tomar chá em casa de um amigo e não podia faltar.

PEDRO ALVES - Ah! foi tomar chá. Entretanto correram certos boatos depois que o senhor saiu.

LUIZ - Boatos?

PEDRO ALVES - É verdade. Houve quem se lembrasse de dizer que o senhor saíra logo por não ter encontrado da parte de uma dama que lá estava o acolhimento que esperava.

CLARA (olhando para Luiz) - Ah!

LUIZ - Oh! isso é completamente falso. Os maldizentes estão por toda parte, mesmo nos bailes; e desta vez não houve tino na escolha dos convidados.

PEDRO ALVES - Também é verdade. (Baixo à Clara). Recebeu o meu bilhete?

CLARA (depois de um olhar). - Como é bonito o pôr do sol! Vejam que magnífico espetáculo!

LUIZ - É realmente encantador.

PEDRO ALVES - Não é feio; tem mesmo alguma coisa de grandioso. (Vão ao terraço).

LUIZ - Que colorido e que luz!

CLARA - Acho que os poetas têm razão celebrarem esta hora final do dia!

LUIZ - Minha senhora, os poetas têm sempre razão. E quem não se extasiará diante deste quadro?

CLARA - Ah!

LUIZ e PEDRO ALVES - O que é?

CLARA - É o meu leque que caiu! Vou mandar apanhá-lo.

PEDRO ALVES - Como apanhar? Vou eu mesmo.

CLARA - Ora, tinha que ver! Vamos para a sala e eu mandarei buscá-lo.

PEDRO ALVES - Menos isso. Deixe-me a glória de trazer-lhe o leque.

LUIZ - Se consente, eu faço concorrência ao desejo do Sr. Pedro Alves...

CLARA - Mas então apostaram-se?

LUIZ - Mas se isso é um desejo de nós ambos. Decida.

PEDRO ALVES - Então o senhor quer ir?

LUIZ (a Pedro Alves) - Não vê que espero a decisão?

PEDRO ALVES - Mas a idéia é minha. Entretanto, Deus me livre de dar-lhe motivo de queixa, pode ir.

LUIZ - Não espero mais nada.

CENA III

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Pedro Alves, Clara

PEDRO ALVES - Este nosso vizinho tem uns ares de superior que me desagradam. Pensa que não compreendi a alusão da parasita e dos histriões? O que não me fazia conta era desrespeitar a presença de V. Excia., mas não faltam ocasiões para castigar um insolente.

CLARA - Não lhe acho razão para falar assim. O Sr. Luiz de Melo é um moço de maneiras delicadas e está longe de ofender a quem quer que seja, muito menos a uma pessoa que eu considero...

PEDRO ALVES - Acha?

CLARA - Acho sim.

PEDRO ALVES - Pois eu não. São modos de ver. Tal seja o ponto de vista em que V. Excia. se coloca... Cá o meu olhar apanha-o em cheio e diz-me que ele merece bem uma lição.

CLARA - Que espírito belicoso é esse?

PEDRO ALVES - Este espírito belicoso o ciúme. Eu sinto ter por concorrente a este vizinho que se antecipa a visitá-la, e a quem V. Excia. dá tanta atenção.

CLARA - Ciúme!

PEDRO ALVES - Ciúme, sim. O que me respondeu V. Excia. à pergunta que lhe fiz sobre o meu bilhete? Nada, absolutamente nada. Talvez nem o lesse; entretanto eu pintava-lhe nele o estado do meu coração, mostrava-lhe os sentimentos que me agitam, fazia-lhe uma autópsia, era uma autópsia, que eu lhe fazia de meu coração. Pobre coração! Tão mal pago dos seus extremos, e entretanto tão pertinaz em amar!

CLARA - Parece-me bem apaixonado. Devo considerar-me feliz por ter perturbado a quietação do seu espírito. Mas a sinceridade nem sempre é companheira da paixão.

PEDRO ALVES - Raro se aluam, é verdade, mas desta vez não é assim. A paixão que eu sinto é sincera, e pesa-me que meus avós não tivessem uma espada para eu sobre ela jurar...

CLARA - Isso é mais uma arma de galantaria que um testemunho de verdade. Deixe antes que o tempo ponha em relevo os seus sentimentos.

PEDRO ALVES - O tempo! Há tanto que me diz isso! Entretanto continua o vulcão em meu peito e só pode ser apagado pelo orvalho do seu amor.

CLARA - Estamos em pleno outeiro. às suas palavras parecem um mote glosado em prosa. Ah! a sinceridade não está nessas frases gastas e ocas.

PEDRO ALVES - O meu bilhete, entretanto, é concebido em frases bem tocantes e simples.

CLARA - Com franqueza, eu não li o seu bilhete.

PEDRO ALVES - Deveras?

CLARA - Deveras.

PEDRO ALVES (tomando o chapéu) - Com licença.

CLARA - Onde vai? Não compreende que quando digo que não li o seu bilhete é porque quero ouvir da sua própria boca as palavras que nele se continham?

PEDRO ALVES - Como? Será por isso?

CLARA - Não acredita?

PEDRO ALVES - É capricho de moça bonita e nada mais. Capricho sem exemplo.

CLARA - Dizia-me então?...

PEDRO ALVES - Dizia-lhe que, com o espírito vacilante como baixei prestes a soçobrar, eu lhe escrevia à luz do relâmpago que me fuzila n'alma aclarando as trevas que uma desgraçada paixão ai me deixa. Pedia-lhe a luz dos seus olhos sedutores para servir de guia na vida e poder encontrar sem perigo o porto de salvamento. Tal é no seu espírito a segunda edição de minha carta. As cores que nela empreguei são a fiel tradução do que senti e sinto. Está pensativa?

CLARA - Penso em que, se me fala verdade, a sua paixão é rara e nova para estes tempos.

PEDRO ALVES - Rara e muito rara; pensa que eu sou lá desses que procuram vencer pelas palavras melífluas e falsas. Sou rude, mas sincero.

CLARA - Apelemos para o tempo.

PEDRO ALVES - É um juiz tardio. Quando a sua sentença chegar, eu estarei no túmulo e será tarde.

CLARA - Vem agora com idéias fúnebres!

PEDRO ALVES - Eu não apelo para o tempo. O meu juiz está em face de mim, e eu quero já beijar antecipadamente a mão que há de lavrar a minha sentença de absolvição. (Quer beijar-lhe a mão. Clara sai). Ouça! Ouça!

CENA IV

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Luiz de Mello, Pedro Alves


PEDRO ALVES (só) - Fugiu! Não tarda ceder. Ah! o meu adversário!

LUIZ - D. Clara?

PEDRO ALVES - Foi para a outra parte do jardim.

LUIZ - Bom (vai sair).

PEDRO ALVES - Disse-me que o fizesse esperar; eu estimo bem estarmos a sós porque tenho de lhe dizer algumas palavras.

LUIZ - Às suas ordens. Posso ser-lhe útil?

PEDRO ALVES - Útil a mim e a si. Eu gosto das situações claras e definidas. Quero poder dirigir a salvo e seguro o meu ataque. Se lhe falo deste modo é porque, simpatizando com as suas maneiras, desejo não trair a uma pessoa a quem me ligo por um vínculo secreto. Vamos ao caso: é preciso que me diga quais as suas intenções, qual o seu plano de guerra; assim, cada um pode atacar por seu lado a praça, e o triunfo será do que melhor tiver empregado os seus tiros.

LUIZ - A que vem essa belicosa parábola?

PEDRO ALVES - Não compreende ?

LUIZ - Tenha a bondade de ser mais claro.

PEDRO ALVES - Mais claro ainda? Pois serei claríssimo: a viúva do coronel é uma praça sitiada.

LUIZ - Por quem?

PEDRO ALVES - Por mim, confesso. E afirmo que por nós ambos.

LUIZ - Informaram-no mal. Eu não faço a corte à viúva do coronel.

PEDRO ALVES - Creio em tudo quanto quiser, menos nisso.

LUIZ - A sua simpatia por mim vai até desmentir as minhas asserções?

PEDRO ALVES - Isso não é discutir. Deveras, não faz a corte à nossa interessante vizinha?

LUIZ - Não, as minhas atenções para com ela não passam de uma retribuição a que, como homem delicado, não me poderia furtar.

PEDRO ALVES - Pois eu faço.

LUIZ - Seja-lhe para bem! Mas a que vem isso?

PEDRO ALVES - A coisa alguma. Desde que me afiança não ter a menor intenção oculta nas suas atenções, a explicação está dada. Quanto a mim, faço-lhe a corte e digo-o bem alto. Apresento-me candidato ao seu coração e para isso mostro títulos valiosos. Dirão que sou presumido; podem dizer o que quiser.

LUIZ - Desculpe a curiosidade: quais são esses títulos?

PEDRO ALVES - A posição que a fortuna me dá, um físico que pode-se chamar belo, uma coragem capaz de afrontar todos os muros e grades possíveis e imagináveis, e para coroar a obra uma discrição de pedreiro-livre.

LUIZ - Só?

PEDRO ALVES - Acha pouco?

LUIZ - Acho.

PEDRO ALVES - Não compreendo que haja precisão de mais títulos além destes.

LUIZ - Pois há. Essa posição, esse físico, essa coragem e essa discrição, são certo apreciáveis, mas duvido que tenha valor diante de uma mulher de espírito.

PEDRO ALVES - Se a mulher de espírito for da sua opinião.

LUIZ - Sem dúvida alguma que há de ser.

PEDRO ALVES - Mas continue, quero ouvir o fim de seu discurso.

LUIZ - Onde fica no seu plano de guerra, já que aprecia este gênero de figura, onde fica, digo eu, o amor verdadeiro, a dedicação sincera, o respeito, filho de ambos, e que essa D. Clara sitiada deve inspirar?'

PEDRO ALVES - A corda em que acaba de tocar está desafinada há muito tempo e não dá som. O amor, o respeito, e a dedicação! Se o não conhecesse, diria que o senhor acaba de chegar do outro mundo.

LUIZ - Com efeito, pertenço a um mundo que não é absolutamente o seu. Não vê que tenho um ar de quem não está em terra própria e fala com uma variedade da espécie?

PEDRO ALVES - Já sei; pertence à esfera dos sonhadores e dos visionários. Conheço boa soma de seus semelhantes que me tem dado bem boas horas de riso e de satisfação. É uma tribo que se não acaba, pelo que vejo?

LUIZ - Ao que parece, não?

PEDRO ALVES - Mas é evidente que perecerá.

LUIZ - Não sei. Se eu quisesse concorrer ao bloqueio da praça em questão, era azada ocasião para julgar do esforço recíproco e vermos até que ponto a ascendência do elemento positivo exclui a influência do elemento ideal.

PEDRO ALVES - Pois experimente.

LUIZ - Não; disse-lhe já que respeito muito a viúva do coronel e estou longe de sentir por ela a paixão do amor.

PEDRO ALVES - Tanto melhor. Sempre é bom não ter pretendentes para combater. Ficamos amigos, não?

LUIZ - De certo.

PEDRO ALVES - Se eu vencer, o que dirá?

LUIZ - Direi que há certos casos em que com toda a satisfação se pode ser padrasto e direi que esse é o seu caso.

PEDRO ALVES - Oh! se a Clarinha não tiver outro padrasto se não eu...

CENA V

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Pedro Alves, Luiz, D. Clara

CLARA - Estimo bem vê-los juntos.

PEDRO ALVES - Discutíamos.

LUIZ - Aqui tem o seu leque; está intacto.

CLARA - Meu Deus, que trabalho que foi tomar. Agradeço-lhe do íntimo. É uma prenda que tenho em grande conta; foi-me dado por minha irmã Matilde, em dia de anos meus. Mas tenha cuidado; não aumente tanto a lista das minhas obrigações; a dívida pode engrossar e eu não terei por fim com que solvê-la.

LUIZ - De que dívida me fala? A dívida aqui é minha, dívida perene, que eu mal amortizo por uma gratidão sem limite. Posso eu pagá-la nunca?

CLARA - Pagar o quê?

LUIZ - Pagar estas horas de felicidade calma que a sua graciosa urbanidade me dá e que constituem os meus fios de ouro no tecido da vida.

PEDRO ALVES - Reclamo a minha parte nessa ventura.

CLARA - Meu Deus, declaram-se em justa? Não vejo senão quebrarem lanças em meu favor. Cavalheiros, ânimo, a liça está aberta, e a castelã espera o reclamo do vencedor.

LUIZ - Oh! a castelã pode quebrar o encanto do vencedor desamparando a galeria e deixando-o só com as feridas abertas no combate.

CLARA - Tão pouca fé o anima?

LUIZ - Não é a fé das pessoas que me falta, mas a fé da fortuna. Fui sempre tão mal aventurado que nem tento acreditar por momento na boa sorte.

CLARA - Isso não é natural num cavalheiro cristão.

LUIZ - O cavalheiro cristão está prestes a mourar.

CLARA - Oh!

LUIZ - O sol do oriente aquece os corações, ao passo que o de Petrópolis esfria-os.

CLARA - Estude antes o fenômeno e não vá sacrificar a sua consciência. Mas, na realidade, tem sempre encontrado a derrota nas suas pelejas?

LUIZ - A derrota foi sempre a sorte das minhas armas. Será que elas sejam mal temperadas? será que eu não as maneje bem? Não sei.

PEDRO ALVES - É talvez uma e outra coisa.

LUIZ - Também pode ser.

CLARA - Duvido.

PEDRO ALVES - Duvida?

CLARA - E sabe quais são as vantagens seus vencedores?

LUIZ - Demais até.

CLARA - Procure alcançá-las.

LUIZ - Menos isso. Quando dois adversários se medem, as mais das vezes o vencedor é sempre aquele, que à elevada qualidade de tolo reúne uma sofrível dose de presunção. A esse as palmas da vitória, a esse a boa fortuna da guerra: quer que o imite?

CLARA - Disse - as mais das vezes -confessa, pois, que há exceções.

LUIZ - Fora absurdo negá-las, mas declaro que nunca as encontrei.

CLARA - Não deve desesperar, porque a fortuna aparece quando menos se conta com ela.

LUIZ - Mas aparece às vezes tarde. Chega quando a porta está cerrada e tudo que nos cerca é silencioso e triste; Então a peregrina demorada entra como uma amiga consoladora, mas sem os entusiasmos ao coração.

CLARA - Sabe o que o perde! É a fantasia.

LUIZ - A fantasia?

CLARA - Não lhe disse a pouco que o senhor via as coisas através de um vidro de cor! É o óculo da fantasia, óculo brilhante, mas mentiroso, que transtorna o aspecto do panorama social, e que faz vê-lo pior do que é, para dar-lhe um remédio melhor do que pode ser.

PEDRO ALVES - Bravo! Deixe-me V. Excia. beijar-lhe a mão.

CLARA - Por que!

PEDRO ALVES - Pela lição que acaba de dar ao Sr. Luiz de Mello.

CLARA - Ah! por que o acusei de visionário! O nosso vizinho carece de quem lhe fale assim. Perder-se-á se continuar a viver no mundo abstrato das suas teorias platônicas.

PEDRO ALVES - Ou por outra, e mais positivamente, V. Excia. mostrou-lhe que acabou o reinado das baladas e da pasmaceira, para dar lugar ao império dos homens de juízo e dos espíritos sólidos.

LUIZ - V. Excia. toma então o partido que me é adverso!

CLARA - Eu não tomo partido nenhum.

LUIZ - Entretanto, abriu brecha aos assaltos do Sr. Pedro Alves, que se compraz em mostrar-se espírito sólido e homem de juízo.

PEDRO ALVES - E de muito juízo. Pensa que eu adoto o seu sistema de fantasia, e por assim dizer, de choradeira? Nada. o meu sistema é absolutamente oposto; emprego os meios bruscos por serem os que estão de acordo com o verdadeiro sentimento. Os da minha têmpera são assim.

LUIZ - E o caso é que são felizes.

PEDRO ALVES - Muito felizes. Temos boas armas e manejamo-las bem. Chame a isso toleima e presunção, pouco nos importa; é preciso que os vencidos tenham um desafogo.

CLARA (a Luiz de Melo) - O que diz a isto?

LUIZ - Digo que estou muito fora do meu século. O que fazer contra adversários que se contam em grande número, número infinito, a admitir a versão dos livros santos?

CLARA - Mas, realmente, não vejo que pudesse responder com vantagem.

LUIZ - E V. Excia. sanciona a teoria contrária?

CLARA - A castelã não sanciona, anima os lidadores.

LUIZ - Animação negativa para mim. V. Excia. dá-me licença?

CLARA - Onde vai?

LUIZ - Tenho uma pessoa que me espera em casa. V. Excia. janta às seis, o meu relógio marca cinco. Dá-me este primeiro quarto de hora?

CLARA - Com pesar, mas não quero tolhê-lo. Não falte.

LUIZ - Volto já.

CENA VI

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Clara, Pedro Alves

PEDRO ALVES - Estou contentíssimo.

CLARA - Por que?

PEDRO ALVES - Porque lhe demos uma lição.

CLARA - Ora, não seja mau!

PEDRO ALVES - Mau! Eu sou bom até demais. Não vê como ele me provoca a cada instante?

CLARA - Mas, quer que lhe diga uma coisa? É preciso acabar com essas provocações contínuas.

PEDRO ALVES - Pela minha parte, nada há; sabe que sou sempre procurado na minha gruta. Ora, não se toca impunemente no leão...

CLARA - Pois seja leão até à última, seja magnânimo.

PEDRO ALVES - Leão apaixonado e magnânimo? Se fosse por mim só, não duvidaria perdoar. Mas diante de V. Excia., por quem tenho presa a alma, é virtude superior às minhas forças. E, entretanto, V. Excia. obstina-se em achar-lhe razão.

CLARA - Nem sempre.

PEDRO ALVES - Mas vejamos, não é exigência minha, mas eu desejo, imploro uma decisão definitiva da minha sorte. Quando se ama como eu amo, todo o paliativo é uma tortura que se não pode sofrer!

CLARA - Com que fogo se exprime! Que ardor, que entusiasmo!

PEDRO ALVES - É sempre assim. Zombeteira!

CLARA - Mas o que quer então?

PEDRO ALVES - Franqueza.

CLARA - Mesmo contra os seus interesses?

PEDRO ALVES - Mesmo... contra tudo.

CLARA - Reflita: prefere à dubiedade da situação, uma declaração franca que lhe vá destruir as suas mais queridas ilusões?

PEDRO ALVES - Prefiro isso a não saber se sou amado ou não.

CLARA - Admiro a sua força d'alma.

PEDRO ALVES - Eu sou o primeiro a admirar-me.

CLARA - Desesperou alguma vez da sorte?

PEDRO ALVES - Nunca.

CLARA - Pois continue a confiar nela.

PEDRO ALVES - Até quando?

CLARA - Até um dia.

PEDRO ALVES - Que nunca há de chegar.

CLARA - Que está... muito breve.

PEDRO ALVES - Oh! meu Deus!

CLARA - Admirou-se?

PEDRO ALVES - Assusto-me com a idéia da felicidade. Deixe-me beijar a sua mão?

CLARA - A minha mão vale bem dois meses de espera e receio; não vale?

PEDRO ALVES (enfiando) - Vale.

CLARA (sem reparar) - Pode beijá-la! É o penhor dos esponsais.

PEDRO ALVES (consigo) - Fui longe demais! (Alto, beijando a mão de Clara). Este é o mais belo dia de minha vida!

CENA VII

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Clara, Pedro Alves, Luiz

LUIZ (entrando) - Ah!...

PEDRO ALVES - Chegou a propósito.

CLARA - Dou-lhe parte do meu casamento com o Sr. Pedro Alves.

PEDRO ALVES - O mais breve possível.

LUIZ - Os meus parabéns a ambos.

CLARA - A resolução foi um pouco súbita, mas nem por isso deixa de ser refletida.

LUIZ - Súbita, de certo, porque eu não contava com uma semelhante declaração neste momento. Quando são os desposórios?

CLARA - Pelos fins do verão, não, meu amigo?

PEDRO ALVES (com importância) - Sim, pelos fins do verão.

CLARA - Faz-nos a honra de ser uma das testemunhas?

PEDRO ALVES - Oh! isso é demais.

LUIZ - Desculpe-me, mas eu não posso. Vou fazer uma viagem.

CLARA - Até onde?

LUIZ - Pretendo abjurar em qualquer cidade mourisca e fazer depois a peregrinação da Meca. Preenchido este dever de um bom maometano, irei entre as tribos do deserto procurar a exceção que não encontrei ainda no nosso clima cristão.

CLARA - Tão longe, meu Deus! Parece-me que trabalhará debalde.

LUIZ - Vou tentar.

PEDRO ALVES - Mas tenta um sacrifício.

LUIZ - Não faz mal.

PEDRO ALVES (a Clara, baixo) - Está doido!

CLARA - Mas virá despedir-se de nós?

LUIZ - Sem dúvida. (Baixo a Pedro Alves) Curvo-me ao vencedor, mas consola-me a idéia de que, contra as suas previsões, paga as despesas da guerra. (Alto) V. Excia. dá-me licença.

CLARA - Onde vai?

LUIZ - Retiro-me para casa.

CLARA - Não fica para jantar?

LUIZ - Vou aprontar a minha bagagem.

CLARA - Leva a lembrança dos amigos no fundo das malas, não?

LUIZ - Sim, minha senhora, ao lado de alguns volumes de Alfonse Karr.