Discurso de António Cândido (29 de agosto de 1887)
Meus Senhores,
O ilustre presidente do Ateneu apresentou-me a esta assembleia com tão encarecidas palavras de simpatia e de louvor que eu não posso deixar de pôr aqui, em primeiro lugar, a expressão do meu mais extremado reconhecimento pela sua bondade e pela sua gentileza.
Não valho o que as suas nobres palavras dizem. A mais de meio caminho da vida, não pratiquei ainda um acto que fosse útil aos outros. A ciência não me deve uma verdade; a arte conta-me entre os que a amam, não entre os que a professam. Pouco maleável, mas sem a têmpera dos que podem e sabem lutar, nem vou na corrente geral, nem consigo opor-me a ela eficazmente! E nesta consciência do que sou, até penso ás vezes que melhor fora não ter nascido...
É grande superioridade não querer enganar-me?! É coragem heróica dizer o que todos sentem?! Não tenho outro talento; não exercito outra virtude.
Mas fico muito contente com as palavras que me foram consagradas. Se não exaltam o meu orgulho, consolam a vaidade do meu coração; irá guardá-las por isso a minha memória, que é fiel.
E, cumprido este dever de gratidão e de sinceridade, proponho-vos já, meus senhores, o assunto da minha conferência. É a Moral na Política. Poderia eleger outro, mais fácil, mais ameno, mais aberto às iluminações do sentimento, sempre gratas ao espírito peninsular; entendi, porém, que era este o mais útil e oportuno emprego da minha palavra. Se quisesse apenas entreter-vos, ser agradável à sensibilidade estética do vosso espírito, sei bem o que havia de fazer... Mas há tempo para tudo, meus senhores; e, se me não engano, soou a hora de meditarmos seriamente sobre as graves condições actuais da nossa vida social e política.
Não trago aqui a vestidura estreita dum partido, nem a só inspiração da história interna do nosso país; habituei-me a ver, em questões desta ordem, a nação por sobre os partidos e a civilização por cima dos Estados. O que não quer dizer que me não impressione principalmente com o que se passa em volta de mim, ou que perca de vista os interesses da pátria, que eu, com o meu coração ordinariamente triste, não amo menos do que outros com o seu alegre entusiasmo, optimista e feliz ...
Poderei apenas esboçar as linhas e os contornos de assunto tão complexo, tão profundo, tão difícil e melindroso como observação actual, quase impossível de resolver como problema sociológico... Mas fragmentos de verdade são verdades; e no Porto, como em solo feracíssimo, as boas sementes germinam sempre.
Antes do estabelecimento do regime liberal, o problema da moral politica era extremamente simples. A multidão obedecia a um senhor, que possuía e exercitava todos os direitos. A submissão e a lealdade eram portanto as únicas virtudes necessárias aos povos.
Estas virtudes, de grande simplicidade, assumiram, por vezes, uma forma soberanamente bela. A passividade do coração tem os seus poemas; a escravidão voluntária pode ser heróica. Mas, para o maior número de vontades, o dever de se submeter e conservar-se leal não custava muito... Toda a intensidade moral estava do lado dos imperantes; e estes, impostos à obediência dos povos por sinais do céu - mediante o voo das aves, como no monte Capitolino, ou mediante uma sagração pontifícia, como nas velhas catedrais - encontravam sempre meio de fazer coincidir, na consciência, o dever com o seu interesse. As responsabilidades, como eram só perante Deus, não lhes embaraçavam grandemente o pensamento nem a acção.
É certo que se procurava formar, na melhor educação moral, o ânimo e a vontade dos príncipes. Na remota antiguidade vê-se Aristóteles ao lado de Alexandre, e Séneca ao pé de Nero; em séculos mas próximos, nunca deixou de haver preceptores eméritos ao lado dos que tinham a herdar o ceptro e a coroa.
É também certo que se empregavam todos os meios para radicar nos povos o respeito e a veneração mais rendida pelos poderes do Estado, e que a religião e a política dispunham, para esse fim, de recursos numerosos e valentes. Mas a complicação desses meios nascia doutra causa, que não das dificuldades teóricas da doutrina consagrada. Se na consciência havia a fé e se no Estado havia a força, exercia-se o governo sem embaraços, o rei fazia a felicidade do seu povo, e, para além do universo visível, Deus inspirava sempre o melhor...
Tudo isto mudou inteiramente em menos de cem anos. Cada homem foi levantado a cidadão; cada cidadão teve a sua parte na governação do Estado. E daí resultou que todo o homem, além da sua moral como individuo, como membro de urna família e como fiel de uma comunhão religiosa, precisou da moral própria da sua nova situação, da moral política, que é melindrosíssima e de uma dificuldade enorme.
Aonde havia de procurá-la? De onde havia de vir-lhe? Não a tinha o Cristianismo, que educou admiravelmente, sob outros aspectos, a melhor parte do género humano.
É evidente que, nos seus princípios, se encontram alguns fundamentos de toda a virtude politica; é inegável que a purificação das almas, que ele recomenda, prepara e facilita toda a acção exterior. Mas, considerando a vida como transição fugaz para fins sobrenaturais, como provação, dolorosa e sombria, dum destino que vai todo para a eternidade o Cristianismo não tinha, não podia ter, normas prefixas para a existência militante, activíssima, que é a própria essência da liberdade. Leiam o sermão da montanha e a Imitação de Cristo. O espiritualismo mais extremo absorve aí todas as potências da alma e da vida. Segundo Jesus, a actividade exterior do homem só deve ser tanta como a das aves do céu e como a dos lírios do monte; segundo Gerson, que repete o Eclesiastes, a suma sabedoria consiste em nos endereçarmos, pelo desprezo do mundo, aos reinos celestes...
Quero eu dizer que o sentimento religioso seja indiferente, inútil, para a liberdade? Não. Não há vida feliz, individual ou colectiva, sem ideal; é neste éter das almas, neste divino ambiente, que se formam e movem o amor, a fé, a abnegação, o entusiasmo pelo bem, a dedicação tenaz, a lealdade completa, todos os brandos sentimentos que constituem a nobreza da nossa espécie, e nunca foi possível apertar e conter nas fórmulas estreitas do egoísmo animal... E a religião foi, e é, o supremo idealismo dos povos.
Como prova de que se constrói solidamente na política, quando a religião serve de cimento, citar-vos-ei apenas, meus senhores, a fundação e a prosperidade dos Estados Unidos, impossíveis sem o espírito fervoroso dos puritanos, e a emancipação da Holanda, que Marnix e Guilherme de Orange não teriam realizado sem a fé profunda dos gueux.
Um dos mais belos períodos da história humana foi aquele em que se inaugurou a transição dramática do antigo sistema para o actual regime da liberdade. É ainda recente. Os nossos pais foram agentes ou testemunhas dessa transição. O que fascinou, encantou os povos foi a ilusão imensa – formosíssima ilusão! - que fez crer que a felicidade social podia resultar, imediata e perfeita, da simples acção das leis! Certas palavras tiveram então o maior prestígio que pode haver nos sons articulados da nossa língua. A poesia lírica, esta adorável faculdade que conserva sempre no género humano, ainda nas velhas idades, a sua antiga alma infantil e moça; a poesia lírica tomou para si, como assunto, a emancipação da liberdade humana, e cantou-a fervorosamente.
A himnologia da revolução liberal em todos os povos é um capítulo interessante, curiosíssimo, que está por escrever. Vós ainda ouvistes o que se cantava, dentro dos muros desta cidade, nos memoráveis dias do cerco...
Mas não foi somente no coração popular, naturalmente ingénuo, que o entusiasmo pela aparência das coisas chegou ao sublime desvairamento em que é possível a germinação conjunta da poesia e do heroísmo. Os primeiros efeitos da mutação política perturbaram e iludiram até os melhores espíritos. Pensou-se, escreveu-se que a liberdade era escola de si própria e um curso permanente de moral política! Stuart Mill, que morreu há poucos anos, Laveleye, que vive ainda, tiveram esta convicção, e sustentaram-na vigorosa mente...
Não era, não podia ser. E não tardou que a esperança caísse, desfeita... A alma dos povos, como a alma dos indivíduos, agitada e sacudida por uma comoção violenta; transfigura-se, ilumina-se, sente em si um deus interior, vê intuitivamente mil coisas que eram obscuras... Depois a vibração acaba, o entusiasmo arrefece, as coisas entram no seu curso normal, irregular e lento... e vê-se então que em matéria de costumes não se edifica levemente, não se edifica depressa.
A demonstração disto é fácil, mas dolorosa: dolorosa para a minha sensibilidade, que tem o grave defeito de se retrair ante o conspecto das inferioridades humanas e de sofrer profundamente com a inanidade e tristeza de muitas coisas... Afirma-se, por isto, que sou pessimista! Não é exacto. Os pessimistas têm a voluptuosidade do mal, que eu nunca senti. Creio que a História é uma grande edificação moral, e daí resulta a minha fé profunda no Bem. Do homem de hoje e de sempre sei dizer que me merece admiração e piedade, os dois sentimentos ao mesmo tempo, por que ele não é ange nem bête, segundo o belo pensamento de Pascal.
Os povos modernos não têm a verdadeira compreensão do Estado, meus senhores. Não é a da Grécia e de Roma, como insinua a educação clássica; também não é como a formula e propõe uma certa escola mística. É menos intensa do que aquela; é mais positiva e complicada do que esta.
Em vez de criado e imposto por um poder estranho, o Estado resulta duma lei imanente nos agrupamentos sociais; em vez de ser um acidente no destino humano, de muito secundária importância, ele é esta instituição orgânica, complexa, multiforme, quase omnipotente, que nos envolve por todos os lados, que toma conta de nós antes de nascermos e nem à beira da sepultura nos deixa, que influi na nossa liberdade, que actua na nossa consciência, que tem a seu cargo defender-nos a propriedade e a vida, que, como um grande navio no imenso mar do tempo, nos leva inteiramente para o futuro, com boa ou má fortuna.
Se isto fosse entendido assim, os interesses do Estado andariam, como andam, pospostos na consciência pública, com infinita distância, aos interesses individuais e aos interesses familiares?!
Desta justa compreensão do Estado resulta que a intervenção na política, intervenção de boa fé, não é mera faculdade que possa exercer-se ou não, como se queira, sem desastradas consequências. É uma faculdade segundo a lei, mas é um dever segundo a consciência. Quem o julga assim?!
A justiça e a utilidade geral reclamam que os mais dignos tenham a preeminência das honras e o comando efectivo das sociedades. O Corão diz num versículo, que vi citado não sei por quem: - O governo que nomeia um homem para um emprego, havendo nos seus estados outro homem melhor, peca contra o Estado e contra Deus. Quem se impressiona já, neste nosso mundo de Cristo, com a exaltação, predisposta ou improvisada, de tantos que têm apenas, na sede do talento, a habilidade da intriga, e no lugar do coração... um espaço vazio?!
Distingue-se, e convictamente, entre dignidade pessoal e dignidade política! Pode esta escorrer sangue, ferida pela justiça mais evidente, que isso não impede a outra de se ostentar e impor eficazmente, com o mais exagerado melindre. Como se a honra não fosse indivisível e simples! Como se na consciência moral pudesse haver soluções de continuidade...
Não há nada mais melindroso do que a reputação do homem de Estado. E com toda a razão. Eu sei que não pode provar-se uma acusação de improbidade pessoal contra qualquer dos homens eminentes, que superintendem nas coisas públicas da Europa; mas tenho pensado muitas vezes com tristeza que sendo honrados, como quero acreditar, nem sempre se preocupam muito de o parecer!
A política económica foi uma das mais belas inspirações do nosso tempo. Meter todos os interesses da grande multidão numa fórmula constituída, em partes iguais, de justiça e de sentimento, é um ideal soberbo! Mas as grandes ideias precisam de grandes homens; e, em vez disso, é a política de negócios, sem intenção e sem alcance, a que está de cima neste momento! A finança egoísta, exploradora, insaciável, triunfa em toda a linha. Na tribuna não ressoam já as grandes palavras que apaixonaram e comoveram a geração que nos precedeu; as vozes que mais valem são as que retinem, como metais, no cálculo de operações fabulosas... A França esperava ainda há pouco, ansiosamente, o anunciado discurso do seu primeiro-ministro. Disse muitas coisas úteis... Mas procura-se em vão, naquela multidão de palavras, um pensamento, uma frase que tenha podido consolar a velha alma gaulesa, tão generosamente idealista! Ora assim como a extinção do fogo sagrado, que ardia perenemente em cada altar doméstico, na Grécia em Roma, pressagiava uma desgraça irremediável - eu não considero de bom agouro este descendimento rápido do coração e do espírito, esta feição pequeninamente industrial que a política assume, e com que tenta e seduz o maior número...
Não continuo... É destes elementos, e de outros semelhantes, que se forma a opinião, isto é, a moral dominante. E a opinião é, para as almas, como o ar atmosférico para os corpos. Vivifica ou mata. Depende isso da sua composição.
Tem-se procurado remediar este mal, universalmente sentido, aperfeiçoando de dia para dia, de hora para hora, as leis políticas e administrativas, na ingénua suposição de que elas formam os costumes; e é positivamente assombroso o que se tem feito neste sentido! Nas escolas e nos partidos não se trabalha noutra coisa há meio século... O que a razão tirou de si mesma! O que a fantasia pode tecer no seu tear de marfim!
Tomemos um exemplo; e seja o mais fácil.
A política moderna é essencialmente, indestructivelmente representativa; a representação da vontade popular no governo realiza-se por meio do voto. A respeito da natureza, da extensão e da forma do voto quem poderá aí repetir o que se tem ideado e o que se tem experimentado?!
Há a teoria do voto como direito natural, de todos, e a que o restringe à capacidade social de cada um. A primeira teoria abrange os que entendem que só o homem pode e sabe intervir no governo das sociedades, e os que sustentam que também as mulheres devem trazer à política a contribuição da sua encantadora psicologia; a segunda tem a escola dos que põem a capacidade eleitoral na instrução mais ou menos complexa, e a dos que a assentam unicamente no censo da propriedade. Temos o sufrágio directo, o sufrágio em dois graus, e ainda em três e em quatro. Há a lista dum só nome e a lista de muitos nomes. Há o sistema da simples representação das maiorias e o que também dá às minorias a sua representação proporcional: este conta, pelo menos, doze processos diferentes, quase todos experimentados na Europa e na América. Sobre o modo de garantir o genuíno recenseamento dos eleitores e o apuramento definitivo das eleições, já não há que fazer! Depois de se esgotar tudo o que a administração graciosa e contenciosa podia produzir, recorreu-se ao poder judicial para que aplicasse a esses factos a apertada forma dos julgamentos civis e criminais...
E que se conseguiu com tudo isto? Em que melhoraram os costumes públicos com tanta perfeição jurídica nas leis da liberdade eleitoral? A boca da urna começou, por ventura, a ser a boca da verdade!
Pelo que se passa no nosso país, podemos responder a estas perguntas com inteiro conhecimento de causa.
Nós temos a melhor lei eleitoral do mundo; as da constitucional Inglaterra e da França republicana ficam a grande distância da nossa. As doutrinas dos melhores publicistas foram aqui legisladas mal apareceram nos livros; e, o que é singular, tudo se fez com a mais, edificante unanimidade dos homens públicos e dos partidos! Até para a última demão nesta obra houve acordo expresso e amorável nos que eram, na véspera, inimigos jurados e truculentos... E tudo ficou como era antes, se não ficou pior.
A abstenção eleitoral é cada vez mais importante pelo número e pela qualidade dos que se abstêm. Os costumes públicos descem, baixam a olhos vistos. O desalento e a indiferença invadem e vencem quase toda a gente...
Não se debela uma doença combatendo apenas os seus sintomas. O mal de que padece a sociedade política portuguesa, de que padece toda a civilização política actual, não é dos que podem ser curados por meio de reformas engenhosas, preparadas nas secretarias de estado, e caldeadas depois na verbosidade parlamentar. Com a nossa Carta de 1826, com a primeira lei eleitoral que tivemos, com o Código Administrativo de 1842, poderíamos nós ser, politicamente, o povo mais feliz da Europa; como a França o poderia ser com a Carta de Luís XVIII; como o é a Alemanha com o império quase absoluto e com a sua chancelaria de ferro.
É preciso refazer o homem interior, desmoralizado pela lição contraditória dos livros e dos factos, pela desastrosa influição da doutrina quase sempre falsa e dos exemplos terrivelmente contagiosos; é urgente restabelecer a justiça, a eterna justiça simples e eficaz, nos sentimentos da opinião e nos factos do poder. Sem isto a teoria é vã e a prática é mortal.
O parlamento deveria servir para o julgamento efectivo dos homens e dos seus actos; mas, para isso, seria preciso que se sentisse ali a opinião pública – que o parlamento não fosse ou não parecesse, pela solidão em que está, uma como tenda isolada no meio isolada no meio de um deserto...
A tribuna antiga prestava para este fim; lá a politica e a Justiça andaram sempre intimamente ligadas. Mas quem se lembrou já de transformar a tribuna moderna em lugar de acusação directa dos que prevaricam contra o Estado?... A indignação dos acusados, o interesse dos seus cúmplices e a cobardia dos outros esmagariam o que se atrevesse a tanto; e passava-se logo à ordem do dia, que bem poderia ser a nova importante divisão dum círculo sertanejo nas suas assembleias eleitorais... Desde que, nas câmaras, é impossível ou perigoso julgar os homens sob o restrito aspecto da sua dignidade pessoal, que impressão vos faz a paixão política, furiosa e atroadora, manifestada nas pequeninas coisas que lá se discutem?! A minha... nem a quero dizer!
A civilização política dos nossos dias tem esta sombra espessa; e quando a contemplo, abstraindo do que me cerca, de tantas virtudes do nosso tempo, que são evidentes, do imenso progresso que se tem realizado em tantas coisas, chego a sentir a poesia do passado, numa espécie de impressão nostálgica... Mas esta ilusão da minha alma dura pouco, e atribuo logo à imaginação o lugar que lhe pertence. Nunca houve tanta bondade no mundo, e a bondade é a lei suprema da vida. Existem no coração dos povos inefáveis correntes de simpatia social; o que falta apenas é a unidade, ideal e tangível que as reúna e represente a todas. Nunca se soube tanto! Consola, faz bem pensar que, a esta hora, milhares de fantasias, enamoradas da arte, se embebem no azul da inspiração estética, e milhares de cérebros arrancam tenazmente, aos problemas mais cerrados, os máximos segredos da vida; e que a ciência positiva, como uma coluna de diamante, cresce, sobe de dia para dia... Quem desadora o sol porque tem manchas?! Como há-de negar-se a civilização porque tem sombras?! Se a minha atenção recai principalmente sobre uma delas, é porque é a maior de todas, e a que posso contemplar mais vezes e mais de perto.
O absolutismo não pôde educar-nos para a liberdade; o Cristianismo, preparando as almas para a receberem, não a organiza, não a disciplina; é insensato dizer-se que a democracia é escola de si própria; ninguém espera, que desçam da montanha, entre relâmpagos e trovões, as tábuas de uma nova lei; está por aparecer, pela primeira vez, a escola de filosofia de que a verdade irrompa, em leito largo e profundo, como um grande rio fecundante de toda a humana consciência!
Havemos, por isso, de descrer de nós? Havemos de desesperar do futuro? Não. A Humanidade tem sempre em si um grande reservatório de forças, de que nem sequer se suspeita nas quadras menos expressivas da sua existência; e há um sentido profundo e completo nestas palavras escritas por alguém: A História tem dias tristes, mas não tem dias estéreis, destituídos de interesse.
É certo que o nível moral da política tem bailado. É um grave mal, mas não é um mal irremediável. Cumpram o seu dever os que o conhecem. Podem poucos salvar a muitos. Há contágio no mal, mas há simpatia no bem. Esta fase, tão mórbida, tão desalentadora, há-de passar, cedendo, a outra melhor. Como?... Quando?... Ainda, no nosso tempo?... Não sei. Mas uma das mais belas faculdades da organização humana é a de sentir e praticar o dever, sem a visão directa do seu fim útil.
A nossa educação, a educação de todo o mundo ocidental, é essencialmente revolucionária. As épocas da nossa história foram sempre assinaladas por movimentos bruscos, por transições, violentas e rápidas, dum para outro estado religioso, político e civil. Isto faz que nós sucumbamos, abatidos e descorçoados, diante de qualquer grande dificuldade, e fiquemos depois, esterilmente, à espera duma revolução que nos impulsione ou dum Messias que nos salve.
Não é bom. O espírito positivo do nosso tempo é cada vez mais incompatível com esses processos, só possíveis noutra compreensão do mundo, metafísica ou mística...
A política forma, entre nós e lá fora uma classe. Em vez de ser a natureza social de todo o homem, é a profissão de alguns. Profissão e indústria quase sempre... Em geral vão para aí os que têm a ganhar, e não os que têm que perder. Erro gravíssimo! O ganho duns é pura perda dos outros... Se a maioria da nossa sociedade se resolver a intervir nas coisas públicas, e levar para lá as virtudes que ainda tem, já o mal, de que nos queixamos todos, ficará atenuado, diminuído. Deve intervir. Além de tudo o mais, é uma alta obrigação de patriotismo; a história de todos os tempos ensina que a independência dos pequenos povos depende essencialmente do seu regime interno.
Li há pouco um livro de Jules Simon. Destina-se, em grande parte, a combater a apatia moral, a abstenção sistemática dos conservadores franceses; e o que ele diz é, em muito ponto, aplicável a nós.
Escreve palavras de ouro o velho publicista, que é hoje, incontestadamente, uma das mais belas figuras do mundo.
Céptico em mil pequenas coisas, como quem já mede um largo estádio de observação pessoal no período mais inconsistente que ainda houve, mas fiel à Liberdade e à Pátria, que tem amado sempre; com este acre pessimismo, que é inevitável, que se exala de tudo, mas com uma grande bondade, natural e calma, que é do seu temperamento, e também do génio literário em que o seu vasto espírito se educou - Júlio Simon é um dos maiores mestres da nossa raça neste século, e eu amo a sua autoridade como segurança de acerto e justiça nas minhas opiniões
Combatendo a atitude expectante dos conservadores franceses, ele refere um velho apólogo de Platão, que não resisto a resumir aqui. É a moralidade e o remate de tudo o que disse.
Navegava uma barca pelo mar. Os marinheiros mataram o capitão, e deitaram-no às ondas; depois guerrearam entre si, desesperadamente, disputando o leme. Os passageiros, que eram pessoas gradas e ricas, sentados comodamente, riam daquela fúria insana, e contemplavam com imenso gosto a sua própria sabedoria... Ninguém notara ainda o, estado do Céu.
De repente, levanta-se o vento, encrespa-se o mar, desencadeia-se uma temerosa tempestade, e a barca, com todos que estavam dentro, vai para o fundo...
Vindo aqui, ao seio do Ateneu Comercial do Porto, tão admirável por tudo, dizer sinceramente o que me preocupa neste momento, eu quis, meus senhores ao contrário do que sucede no apólogo de Platão - chamar a atenção dalguns espíritos para o estado do céu. Poderá duvidar-se de que haja sério motivo de receio; mas também não consta de naufrágio determinado por excesso de prudência...