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Diva/XIII

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Havia no tratamento de Emília uma variação incompreensível.

Às vezes era uma ternura suave e compassiva, como se ela quisesse consolar-me por não ser amado; outras vezes parecia que a minha paixão a irritava. Tinha então o coração áspero e a palavra acre; mas era justamente nessas ocasiões de tormenta que eu via cintilar em seus olhos um raio de amor, e sentia vibrarem as cordas frementes de sua alma.

Uma noite pedi-lhe que não dançasse mais com o Barbosinha; não que eu tivesse ciúmes de semelhante fátuo; mas era ele desses homens ridículos cujo contato mancha uma senhora. Emília recusou, e eu voltei despeitado.

No dia seguinte encontrei-a agastada comigo: — Não consinto mais que me ame!... disse-me ela voltando as costas.

Poucos instantes depois, passou pelo braço do Barbosinha e lançou-me este desafio:

— Tire-me do braço dele, se quiser!...

Emília tinha sobretudo um zelo excessivo de sua espontaneidade. Receava ela que a menor graça feita às minhas súplicas valesse como uma prova de amor? Quando lhe pedia alguma coisa, mesmo pequena e insignificante, dessas que a moça a mais austera pode conceder a um indiferente, ela recusava sempre, e com tal firmeza, que me tirava a coragem de insistir.

Se eu me agastava, escarnecia de mim; se me resignava e esquecia sua recusa, vinha espontaneamente com uma singela mas altiva dignidade conceder-me alguma prova de afeição, tal que eu nunca me animara a esperar.

Lembra-me de uma vez que, insistindo eu por um botão de rosa, que ela tinha nos cabelos, Emília conservou-o no seu penteado por muitos dias até secar; como se achasse um prazer infinito em prolongar assim tacitamente a sua recusa. Dias depois, sem que eu lhe pedisse, de improviso, deu-me o seu retrato.

— Guarde-o para lembrar-se de mim!

Depois da noite em que estivemos juntos à borda do lago, Emília parecia evitar-me. Tinha decorrido uma semana. Eram oito horas da manhã; manhã de inverno, coberta de espessa cerração, que peneirava no ar uma garoa finíssima.

Resolvido a não ir à cidade senão mais tarde, estava eu sentado à janela, donde avistava a casa de Duarte. Esperando ver Emília passar na varanda e cortejar-me de longe, como às vezes costumava, eu refletia sem querer sobre esse caráter original de moça.

De repente sou arrancado às minhas reflexões por uma chuva de bogarins; e ouço perto o gorjeio de um riso melodioso, que os ecos de minha alma tanto conheciam. Emília estava defronte, além da cerca de espinheiros que dividia o meu jardim da sua chácara. Uma capa de casemira escura cobria-lhe quase todo o vestido, e o capuz meio erguido moldurava graciosamente seu rosto divino.

O exercício lhe avivara o saboroso encarnado das faces, onde tremulavam algumas gotas da chuva. Seus olhos negros saltitavam de prazer, como dois colibris voando ao meu encontro. Curvava-se para colher os botões de bogarim que me atirava; e tão suaves eram as flexões desse talhe, que apesar das largas roupagens percebia-se a doce vibração do movimento revelado exteriormente por um harmonioso ondulado.

Eu devera já estar habituado aos caprichos dessa moça; mas tudo quanto ela fazia era tão desusado, que me levava de surpresa em surpresa. Assim, correndo ao seu encontro, não achei palavras, mas unicamente sorrisos para acolhê-la.

— Está admirado de me ver aqui? disse ela. — Não gosto de ser contrariada, nem mesmo pelo céu. Acordei hoje com uma alegria de passarinho! Tinha saudade das árvores!... Abri a minha janela; estava chovendo. Ora! Para que se inventaram as capas e os guarda-chuvas? Vi-o de lá pensativo... Em que estava pensando?

— É preciso perguntar-me? Em que penso eu sempre e a todas as horas?

— Em mim?... Pois aqui estou!

— Que imprudência!...

— Deveras!

— Oh! não me chame de ingrato para a felicidade! Mas se ela deve custar-lhe o menor dissabor!... não a quero! Podia alguém vê-la!...

— Eu não me escondo!... respondeu Emília com altivez.

Depois, velando-se de súbita melancolia, acrescentou com um sorriso:

— Não tenha cuidado. Eu sou rica; não me comprometo.

— Que significam estas palavras, D. Emília?

— Vamos nós agora discutir aqui, de um e outro lado da cerca?... atalhou ela rindo francamente. — Já não me lembra o que disse! Mas, com efeito, o senhor é bem pouco amável! Nem sequer ainda me convidou para entrar!

— Eu não me animava!

— Foi bom então que me animasse eu, do contrário ficaríamos aqui, à chuva! Está bem! Faça-me o favor de abaixar a cabeça.

Tirou o seu lenço, e vendou-me com ele. Depois calcando a mão sobre o meu ombro, percebi que ela saltava a cerca. Creio que sua botina resvalando pelos galhos úmidos do espinheiro lhe traiu o elance, porque senti no meu peito a doce pressão de seu talhe.

Repeliu-me logo. Ouvindo o ai que soltaram seus lábios, arranquei o lenço arrebatadamente, e surpreendi seu olhar... Que olhar, meu Deus!... A voragem de uma alma revolta pela paixão, e abrindo-se para tragar a vítima!

Mas foi tão instantâneo, que eu não posso afirmar que vi. Já ela se tinha afastado bruscamente dilacerando entre os dedos os renovos das plantas, que sua mão trêmula encontrava na passagem. O capuz lhe descera, deixando a cabeça exposta à chuva e à brisa cortante.

Depois de algumas voltas pelo jardim voltou calma, serena e risonha; dirigiu-se à porta, indicando-me com um aceno gracioso que a seguisse. Na sala de jantar onde entramos, estava uma cafeteira; ela encheu uma xícara e bebeu dois ou três goles frios e sem açúcar.

— Ah! Aqui é o gabinete, onde se estuda! disse parando no lumiar. — Pode-se entrar?

Eu tinha vergonha da minha modesta habitação, que não era digna daquela honra. Confuso, acompanhava quase como um autômato a ela, que vagava de um para outro lado, naturalmente, sem o menor vexame. Meu gabinete de trabalho era nesse tempo muito pobre; o que havia de melhor estava na cidade. Emília correu a estante com os olhos, lendo o título das poucas obras literárias, com esse tom afetuoso com que saudamos antigos amigos.

— O senhor nunca fez versos?

— Quem é que não os fez aos dezoito anos?

— Eu!... Tenho dezoito anos e nunca fiz um só.

— Inspira-os, que é melhor.

— Obrigada! Já lhe inspirei alguns?

— A senhora... D. Emília?...

— A senhora... Por que não me chama Mila? É como me tratam os que me querem bem.

— E Mila chamará Augusto?

— Está entendido! Não é como lhe chamam seus amigos?

— Meus amigos me tratam por tu — disse eu sorrindo.

— Isso não! Quando eu disser tu, é porque não existe mais eu em mim. Porém responda! Já lhe inspirei algum verso?...

— Quantos, meu Deus!

— Mostre-me! Quero ver!

— Mas eu não escrevi! Para quê? Eles não diriam tudo que eu sinto.

— Pois agora há de escrevê-los para mim: sim, Augusto?

— Não, Mila. Eu já não sei, ou antes nunca soube fazer versos. Quando se começa a vida, sente-se essa veleidade; é natural. É o tempo das flores, dos sorrisos e dos cantos. Isso passa.

— Mas por que não há de escrever ainda? Se não quer ser poeta, seja escritor. Não tem ambições? Não ama a glória?

— Amo; a glória da minha profissão, a única a que devo e posso hoje aspirar. É uma glória obscura e desconhecida, bem sei. Nossos triunfos, não os obtemos na praça ou no teatro, diante da multidão que aplaude; mas lá, no recôndito de uma casa, no aposento silencioso, onde geme a criatura. Só Deus os contempla, só ele os recompensa. O mundo e aqueles mesmos a quem salvamos, nos pagam, mas nem nos agradecem às vezes. Foi a natureza, dizem eles. Mas os reveses, esses pesam sobre nós. É uma glória amarga, Emília, a que me coube em partilha.

— Quem lhe impede de aspirar a outras?

— A minha consciência. Quando me dediquei à medicina não busquei só um meio de vida; votei-me a um sacerdócio. Sinto que a minha aptidão é essa; fugir a ela fora mentir à minha missão neste mundo.

— Tem razão! A verdadeira glória deve de ser essa; fazer o bem. Eu é que sou uma louca! Mas já gostava da medicina; agora vou gostar ainda mais.

E para confirmar seu dito, Emília começou a examinar os instrumentos e livros com uma travessura infantil, roçando por eles de leve a ponta dos dedos, como se os acariciasse. O acaso deparou-lhe um atlas de anatomia; pousando então a ponta da unha rosada sobre o título, voltou-se para mim sorrindo:

— Quero ver o coração! Onde está?

E afastou-se enquanto eu folheava o atlas para mostrar-lhe a estampa que ela pedira. Esteve a olhar muito tempo; afinal murmurou:

— Quando eu morrer, Augusto, há de examinar o meu... Para ver se é diferente!

— Que idéia!... Deixe isso, Mila! retorqui fechando os livros e instrumentos nos armários. — Sinto não ter em minha casa objetos mais alegres para distraí-la. A minha profissão é triste, já lhe disse, bem triste! Vive das misérias do próximo. Suas alegrias são sempre travadas de dores!... Afinal nos habituamos. Mas enquanto não chega essa indiferença, que dúvidas! E quando chega, que aridez! Por isso, Emília, eu sinto a necessidade de um santo amor, que me proteja contra a descrença, e me preserve a alma desse terrível contágio do materialismo.

Emília me ouvira comovida. Ergueu-me a fronte, para que eu recebesse o meigo sorriso, cheio de ternura, que ela me queria embeber n'alma.

— O que lhe disse eu naquela noite?... Espere! Talvez não espere muito tempo! Envolvendo-se na sua capa, fugiu por entre as árvores.

Depois dessas mútuas expansões e das nossas entrevistas solitárias, depois sobretudo da promessa que ela me fizera partindo, parecia natural que eu fosse crescendo na afeição de Emília; porém esta moça era cada vez mais incompreensível. Os dias que seguiram tratou-me com bastante frieza: e uma tarde com desdém até.

Achei-a lendo uma folha de pequeno papel bordado que me pareceu carta: pensei que fosse da prima. Ela nem ergueu os olhos para cumprimentarme; e respondeu com uma simples inclinação da fronte. Sentei-me; dirigi-lhe por vezes a palavra sem obter mais resposta que um sim ou não; afinal conhecendo que ela estava preocupada, esperei calado pelo seu bel-prazer.

Emília leu e releu, talvez já esquecida da minha presença; dobrando o papel, que meteu no bolso, começou a passear pela sala, visivelmente distraída. Por momentos soltava débeis modulações de alguma ária; depois fugia-lhe pelos lábios um sorriso misterioso, desses que se sorriem sem consciência, verdadeiras esfinges d'alma.

Não me pude mais conter:

— Adeus, D. Emília. Vejo que minha presença começa a incomodá-la: é tempo de torná-la mais rara e menos importuna.

— Ah! Já cansou de esperar? respondeu com um ligeiro riso de mofa.

— Já perdi a esperança, confesso-lhe. Já; porque enfim compreendo o que se passa em seu espírito.

— Queria que me dissesse isso! Ficaria sabendo.

— Dir-lhe-ei; por que não? A senhora é de uma bondade extrema e cuida que eu tenho direito à sua gratidão. Conheceu que eu a amava, que esse amor era minha felicidade e minha vida. Pareceu-lhe que recusar-me em troca sua afeição era o mesmo que recusá-la a um pai, a um irmão. Quis amar-me, porque é boa; fez todo o possível para isso, mas debalde... O amor nasce de si mesmo, de repente, sem que o suspeitem. Se ele viesse quando o chamamos e desaparecesse à vontade, não era o que é, uma fatalidade. Iludiu-se, D. Emília. O homem a quem há de amar, a senhora não o conhece, nem o viu talvez. Quando aparecer, não lhe dará tempo de interrogar-se. Seu coração palpitará por si mesmo, e a senhora sentirá que ama, sem saber como, nem quando, começou a amar!

— Talvez isso seja verdade para outras; para mim asseguro-lhe que não. O amor, como eu sonho e espero, há de ser a minha vida inteira; portanto parece-me que tenho o direito e até o dever de conhecê-lo antes de entregar-me a ele sem reserva e para todo o sempre.

— É outra ilusão sua! O amor tem a crença ingênua da eternidade; quem o sente acredita sinceramente que ele não se extinguirá nunca. Eu não tive a felicidade de lhe inspirar essa fé sublime; portanto que esperança posso ter? O melhor talvez fosse retirar-me, porque à força de querer violentar seu coração, Emília, talvez acabe odiando-me!...

— Odiando-o?... exclamou Emília assustada. — Como lhe veio semelhante pensamento?

— Não me disse já uma vez?

— Cale-se! atalhou ela com inexplicável pavor.

Emília ficou algum tempo muda e pálida, absorta na estranha emoção.

— Augusto!... disse-me ela afinal, e com terna melancolia. — Não tem razão. Quem me fez acreditar no amor? Quem me deu a fé e a esperança nelle?... Lembro-mé! Antes de conhecel-e, eu duvidava.

Essa palavra e um sorriso bastarão para serenar minha alma.