Diva/XVI
Tinha caído numa tal prostração de ânimo, que Emília se comiserou de mim.
Uma noite veio sentar-se a meu lado, e seu olhar envolveu-me daquela ternura compassiva e protetora, que dava à sua virgem beleza um perfume de ideal maternidade.
— Como eu o tenho feito sofrer, não é verdade? me disse ela compungida. — Também eu sofro! Que natureza é a minha? Parece que tenho prazer em me contrariar e afligir a mim mesma. Mas não me queira mal, Augusto. Eu lhe prometo ser outra daqui em diante; o que perturbou nossa amizade não sucederá nunca mais.
— Deveras!... Promete repelir os seus adoradores! — Eu os afastarei tanto de mim, que nem a sombra deles se possa interpor entre nós.
— Obrigado, D. Emília! Obrigado pela senhora, unicamente; não por mim.
— Então isso lhe é indiferente.
— Vem tarde! O mal está feito.
Emília teve um dos seus gestos de rainha.
— Ah! se eu houvesse profanado a minha alma nesses arremedos de amor com que as moças se divertem antes de casar; se eu estivesse em meu quarto ou quinto namoro, quando o senhor me conheceu, talvez me julgasse digna de sua afeição. Mas eu, que procuro preservar minha alma dessa profanação, mostrando-lhe ao vivo o egoísmo, a cupidez e a baixeza que escondem as paixões improvisadas numa noite de baile e calculadas friamente no dia seguinte. Eu, que me guardo para aquele a quem amar, virgem de amor e imaculada... Sim! imaculada até dos olhares que resvalam sem penetrar-me!... Eu, não sou digna de sua estima, Augusto! Para mim, é tarde!
— Perdão, Mila!... Eu sou um insensato! Mas meu amor é uma tão pura adoração, eu a coloquei tão alto na minha veneração, que as palavras apaixonadas desses homens me pareciam denegri-la como o fumo de um torpe incenso... Loucura!... Eu devia saber que elas não chegavam ao seu coração, como não chegam a Deus as blasfêmias do ímpio!...
Emília respondeu-me com um sorriso delicioso, pousando a mão sobre a minha:
— Não me eleve tanto, para que outra vez não me deixe cair de tão alto!... Esses homens eram apenas livros para mim; às vezes tinha lido na véspera sua cópia impressa. Terá ciúmes, Augusto, dos romances que eu leio? Sofreu vendo-me no teatro assistir à representação de uma comédia?
— Já lhe supliquei meu perdão. Eu estava louco!
Ela foi nessa noite e nos dias seguintes de uma bondade inexaurível para mim. Voltamos aos nossos antigos passeios e às conversas íntimas. Eu estava outra vez terno e amante a seus pés, mas orguIhoso e contente do meu triunfo.
Emília cumprira sua palavra de um modo que eu não ousaria esperar. Apareceu ainda algumas noites em casa de D. Matilde, como para mostrar-me o modo significativo por que despedia os seus adoradores; realmente soube arredá-los a tal distância que nem um deles se animou a voltar. As horas que ali passou esteve completamente isolada, ou perto de mim e ao meu braço.
Por fim deixou de sair, e fez que cessassem as reuniões em sua própria casa, até nos domingos. Desde então parecia que ela se poupava ao mundo, e guardava toda, para entregar-se sem reserva às expansões de meu amor.
Assim voaram dois meses de felicidade.
Durante todo esse tempo, Emília foi de uma submissão e docilidade que me punha sempre atônito, e muitas vezes afligia.
Tomava para comigo uma atitude de vítima resignada e contrita; parecia que minha vontade a tiranizava, quando era eu mísero quem suportava a tirania de seus caprichos. Mas ela sentia não sei que íntimo prazer em humilhar-se aos meus olhos; e tinha o talento de, cativando-me o coração e o pensamento, insinuar que obedecia ao mínimo aceno meu.
Sucederam muitos acidentes, como o que te vou referir.
Encomendava ela à sua modista algum elegante vestido, ou comprava qualquer novidade parisiense recentemente chegada. A primeira vez que nos víamos logo me fazia alguma pergunta neste gênero:
— Qual é a cor mais de seu gosto?
Ou então:
— Acha bonita a nova moda de vestidos?
Respondia-lhe com volubilidade, sem dar grande importância à questão. Acontecia às vezes que o vestido era da cor ou da moda não preferida por mim; ela o imolava sem piedade; em folha, como estava, fazia dele presente a alguma moça, ou sepultava-o nos recantos de uma cômoda.
Entretanto o vestido era lindo; e fosse feio, que eu o achara divino, trajado por ela.
Se eu incomodava-me com estes novos caprichos de humildade, tão aversos dos anteriores suspirados no orgulho, e como eles tão imperativos, ela insistia impaciente, e não tolerava da minha parte a mínima observação. Muitas vezes por essa causa nos separamos tristes e magoados.
Em nossos mútuos devaneios, quando me cabia a vez de falar, vazando as expansões de meu coração cheio, ajoelhava todo meu ser ante o ídolo de sua graça.
Ela, antes meiga e dócil à minha palavra, já a não escutava; e abstraía-se às ferventes adorações para se refugiar em não sei que penosa e amarga cisma. O que encantara outra mulher, parecia enfastiá-la; derramava-se por seu rosto uma nuvem de tédio e desgosto.
Quase sempre esquivava-se logo, e, deixando-me só alguns instantes, rompia a conversa.