Diva/XVII

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Foi ontem.

Deixara Emília na véspera descontente por causa de um dos nossos conflitos de submissão recíproca.

Achei-a porém já esquecida dessa pequena contrariedade, e satisfeita. Contudo, tinha certa gravidade no olhar e na fronte que anunciava o peso de muitos pensamentos ali concentrados.

Falou com sua graça costumada; falou do passado, recordando de leve as fases por que passara nosso amor. Era sua história íntima, o romance de sua alma, que ela esboçava a traços finos e delicados.

Depois de comparar sua existência anterior tão agitada com o atual isolamento e tranqüilidade, fixou-me nos olhos, enquanto me dirigia com a voz lenta estas palavras:

— Está satisfeito? Não foi cegamente obedecido?

— Oh! Mila! Obedecido, não! Não me atrevia a pedir tanto... É uma graça que me concedeu... e eu a recebi de joelhos!...

— Ah! fez ela com uma expressão indefinível de tédio.

Geraldo entrava nesse momento. Depois de apertar-me a mão:

— Diz-me uma coisa, Amaral? Por que razão proibiste a Mila de sair de casa?

— Ora, Geraldo! respondi eu enfadado. Nunca hás de ter juízo.

— Foi ela quem me disse!...

— D. Emília?...

— E tu acreditaste! disse Mila ao irmão com um riso irônico.

Isto passava-se ontem.

Hoje à tarde, chegando à sua casa, achei o carro à porta e ela na sala pronta para sair; só esperava por D. Leocádia.

— Vai sair? perguntei-lhe triste.

— Não vê? respondeu correndo os olhos pelo seu trajo.

— Volta cedo?

— Não! Vamos ao teatro.

— Ah!... Tinha-me... prometido não, mas habituado já a vê-la longe do mundo, bonita e risonha só para mim!...

— É verdade; mas os hábitos sempre continuados ao final trazem a monotonia.

Tive um terror pânico. Ouvindo as palavras desdenhosas de Emília e vendo-a calçar as luvas, não sei que alucinação foi a minha; se me afigurou que essa moça ia outra vez ser-me arrebatada pela vertigem do mundo; que eu a ia perder, e agora para sempre.

— Mila, não sei que tristeza profunda me causa esta sua ida ao teatro... É uma esquisitice minha!... Que coisa mais simples do que ir ao teatro?... Mas... Não compreendo este temor... Eu lhe suplico!... Antes de partir dê-me coragem! Diga-me essa palavra que eu espero há tanto tempo!

Ela esquivou a mão, que eu procurava, vestindo-se da dignidade fria que a envolvia às vezes como túnica de gelo.

— Tem muita pressa de ouvir essa palavra!... Há de querer também um juramento solene... que firme seus direitos... Poderá então impor-me sua vontade, e que remédio terei eu se não sujeitar-me!... Mas ainda é cedo. Espere, meu senhor!

Súbita e profunda revolução se operou em mim; subjugado por ela eu apenas pude pronunciar uma frase; mas que profusão de sentimentos, que riqueza de paixão, a alma não verte numa só palavra, mesmo vulgar!...

— Basta, senhora!

Não sei se minha voz ecoou n`alma de Emília, como ressoava na minha; era o grito de uma paixão na agonia.

Emília caminhou para mim, absorta em dolorosa emoção: senti sua mão pousar no meu ombro, os seus olhos nos meus, o seu hálito nas minhas faces, a sua palavra caindo a uma e uma no meu cérebro. Mas eu estava tão profundamente mergulhado em mim mesmo que não compreendia naquele instante nem o que olhava, nem o que ouvia.

— Augusto! Seu amor é um nobre e santo amor, como eu pedia a Deus que me desse a fortuna de inspirar!... Responder-lhe com uma dessas afeições banais a que o coração reserva apenas as horas vagas que deixam o cálculo e a vaidade, seria uma profanação indigna!... Espero e lhe peço que espere, para não causar por um engano a sua e minha desgraça; para não ser obrigada a dizer-lhe um dia: "Eu me iludi! Esta vida que lhe dei, não a podia dar, não me pertencia, mas àquele de quem a roubei e agora a reclama! Traí a um, menti ao outro; falhei meu destino; só me resta morrer!" Eis por que eu lhe digo que espere.

Calou-se um instante.

— Talvez me iluda!... Há horas em que duvido ainda como outrora. Quero esperar um ano ainda... Acha muito? Para decidir de duas existências?... Se daqui a um ano eu conhecer que não amo, a esta mesma hora, no lugar onde o senhor estiver, eu irei dizer-lhe: "Deus negou-me a ventura de amar; mas o senhor me ama; se a minha vida é necessária à sua felicidade, tome-a; eu lhe dou com prazer; eu lhe pertenço, sem amor, mas cheia de dedicação!" Ouviu, Augusto?... Quer um juramento?

— É inútil! Eu já a não amo!

Fui sincero nesse momento. Aquele sarcasmo com que Emília respondera à minha súplica, o egoísmo frio que ela revelara, tinham traspassado minha alma, e escoado o amor até a última gota. Eu acabava de ver, a nu, o aleijão repulsivo daquele coração de moça.

— Acredite — repeti com desprezo. — Acabou, e já nem me lembro que amei! Está agora tão longe de mim esse passado!...

Ela mostrou uma ligeira perturbação; mas imediatamente sua altivez a serenou. Então, Paulo, passou-se o que só pode compreender quem viu essa mulher sublime. Fez-se nela como um jubileu de graça e luz. Aquela radiante formosura expandiu-se vertendo de si nova e mais esplêndida formosura. Imagina uma apoteose da beleza.

Emília assim transfigurada teve um sublime gesto de dúvida.

— É impossível!...

D. Leocádia entrava. Despedi-me e parti.

São duas horas da noite. Tive a coragem de não aparecer no teatro. Lembrando-me que Emília lá estava e desenhando em meu espírito a imagem de sua fulgurante beleza, achei-me calmo; perscrutei meu coração, e encontrei-o forte.

Realmente já não amo essa mulher, ou se a amo ainda, seme1hante afeição está sepultada debaixo de outras paixões que acabarão por aniquilá-la completamente.

O que eu sinto agora é só um desejo frio de vingar-me e pagar a Emília desprezo por desprezo.

Eis a história do meu primeiro e talvez único amor, Paulo; precisava derramar no teu seio as lágrimas que ainda neste momento afogam meu coração.