Diva/XVIII

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Pensava ter concluído esta carta, mas não, Paulo! Tornei a vê-la!

É passado um mês.

Durante ele evitei encontrar-me com Emília. Minha alma precisava desse momento de repouso entre o amor extinto e o ódio nascente.

Foi há três dias que a vi pela primeira vez depois do nosso rompimento.

Jantava eu em casa de D. Matilde. Estava encostado ao piano ouvindo Julinha tocar; a mãe chamou-a. Nessa ocasião Emília aproximou-se de mim e disse-me com o seu habitual sarcasmo:

— Já não me ama... Por que foge de mim? Tem medo?

Estávamos sós na sala.

Travei-lhe do braço e apertei-o com ímpeto brutal.

— A senhora acredita que a consciência de uma grande infâmia pode matar um homem de brio?... Pois se fosse possível que eu viesse a amá-la ainda, sinto que teria tão grande asco de mim e uma vergonha tal que me fulminaria como o raio!

Soltei-lhe o braço. Ela deixou-se cair sobre uma cadeira, e, sustendo com a outra mão o pulso magoado, esteve a olhar a nódoa roxa que deixara a pressão de meus dedos. Adejava em seus lábios um sorriso de mártir.

Eu me afastara indignado de minha própria brutalidade. Não te posso explicar o que foi isso. O sarcasmo de Emília irritou-me de uma maneira que ainda agora não compreendo. Seria porque eu ainda a amo, malgrado meu, e sua palavra me denunciara minha própria vileza?

No jantar incomodava-me muito aquela nódoa roxa. Emília estava sentada quase defronte de mim, e a cada momento seu braço volteava em torno dela, talvez que de propósito, e para mostrar a contusão.

— Mila! disse-lhe D. Matilde de longe. — O que tens no braço esquerdo?

— É verdade! acudiu Julinha. — Está roxo. Que foi isso?

— É o sinal da minha cadeia! respondeu Emília sorrindo.

— Que cadeia, Mila? perguntou D. Leocádia.

— Pois não tenho uma pulseira com a forma de um grilhão?...

— Tens, sim.

— Hoje brincando, ela cerrou-me tanto, que pensei me quebrava o pulso!...

— Não deves mais usar dela.

— Por quê? Ela é inocente; a culpa foi minha. Não foi? disse espreguiçando sobre mim o lânguido olhar.

Voltei o rosto sem responder-lhe. Eu começava a sentir uma espécie de pavor dessa menina. Havia nela a inspiração heróica e a tentação satânica que o gênio do bem ou do mal derrama sobre a humanidade pela transfusão da mulher. Em outra cena mais larga eu a julgaria capaz de vibrar o punhal de Judite ou de Macbeth.

Desde esse dia quando ela se aproxima de mim, ou mesmo de longe me envolve com seu olhar maléfico, a minha coragem vacila. A raiva que sinto de mim mesmo reflui sobre ela. Cubro-me então com o motejo ofensivo e grosseiro. Que queres, Paulo? É a coragem do desespero.

Mas ela, a incompreensível criatura, longe de ofender-se, parece deleitar-se com as explosões do meu desprezo e ressentimento.

Ainda ontem.

Conversávamos indiferentemente, quando veio a falar-se de uma moça, que amava seu primo a quem estava prometida, e de repente se casara com o filho de um rico capitalista. Já sabes; a noiva era acremente censurada; eu tomei sua defesa contra Julinha.

— Pois eu desculpo essa moça, D. Julinha: seu amor tinha talvez a coragem da morte, mas não tinha a coragem da pobreza. Há naturezas assim: os grandes sacrifícios as exaltam, os pequenos as humilham. Eu não a desculparia se ela fosse rica, e em vez de sentir o orgulho de inspirar um amor capaz de resistir a essa sedução do dinheiro, se contentasse em comprá-lo... E nem só comprá-lo; mas acenar, como os avarentos, com o seu dinheiro, para ter o prazer incompreensível de aviltar a turba de adoradores, entre os quais ela afinal escolherá um marido!... Um marido regateado!...

Emília soltou uma risada argentina; do alto de sua beleza mais que nunca altiva e radiosa atirou-me um olhar augusto. Ergueu-se, e não sei que elação deu ela com esse movimento ao seu talhe, que parecia subida a um trono.

Conservava-me de pé no mesmo lugar, com as costas apoiadas a uma árvore do jardim. Ela atravessou o espaço que nos dividia, e veio a mim feita em risos, com o passo tão doce e lento que resvalava sobre a areia, onde a orla de seu vestido mal roçava. Vendo-a aproximar-se tanto, retraí-me contra a árvore para não tocá-la.

Parou enfim: estendendo o lábio altivo, disse-me com uma voz indefinível, uma voz onde havia tudo, ódio e amor, desprezo e ternura, meiguice e sarcasmo; uma voz que parecia canto, grito e soluço ao mesmo tempo:

— Que é isso, senão amor?... Ama-me ainda e mais do que nunca!

Voltou; e agora a fímbria de seu vestido roçagando rojava pela areia, e ela olhava-a sorrindo por cima do ombro, e de propósito inclinava-se mais para enegrecê-la no pó, como se fora a minha alma abjeta que ela arrastasse assim pelo chão.

Firmei-me ao tronco da árvore com todas as minhas forças, porque o meu primeiro assomo fora terrível. Eu não sei o que seria de mim, se eu desse naquela circunstância um primeiro passo para essa moça. Fiquei ali imóvel, vendo-a de longe a voltear entre os arbustos.

De repente senti uma calma assustadora derramar-se em minha alma: era alguma coisa como uma algidez moral, reação da grande cólera.

Tive necessidade de insultar essa moça.