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Dom Quixote/II/L

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Diz Cid Hamete, pontualíssimo esquadrinhador dos átomos desta verdadeira história, que, assim que dona Rodríguez saiu do seu aposento para ir ao quarto de D. Quixote, outra dona que ali dormia acordou e, como todas as donas são amigas de saber, de entender e de meter o nariz onde não são chamadas, foi atrás dela com tanto silêncio, que a boa da Rodríguez não a sentiu; assim que a dona a viu entrar no quarto de D. Quixote, para que não se perdesse nela o costume geral que têm as donas de ser chocalheiras, foi logo meter no bico de sua ama, a duquesa, que dona Rodríguez fora para o aposento de D. Quixote. A duquesa disse-o ao duque e pediu-lhe licença para ir com Altisidora ver o que a dona Rodríguez queria de D. Quixote. Consentiu o duque, e ambas, com grande cautela, chegaram até à porta do aposento, de forma que puderam ouvir tudo o que lá dentro se dizia; e, quando a duquesa ouviu a dona Rodríguez falar nas suas fontes, não o pôde suportar, e Altisidora ainda menos; e, cheias de cólera e desejosas de vingança, entraram de golpe no aposento e beliscaram D. Quixote e açoitaram a dona, do modo que fica narrado; porque as afrontas que ferem diretamente a formosura e presunção das mulheres, despertam nelas grande cólera e acendem o desejo da vingança. Contou a duquesa ao duque o que se tinha passado, o que muito o divertiu; e a duquesa, prosseguindo no intento de se entreter com D. Quixote, despachou o pajem que fizera o papel de Dulcinéia na história do seu desencantamento, já esquecida por Sancho Pança com as ocupações do seu governo, a Teresa Pança, com a carta de seu marido, e com outra sua, e um colar de riquíssimos corais, de presente. Diz, pois, a história, que o pajem era muito agudo e discreto, e com desejo de servir a seus amos partiu de boa vontade para a terra de Sancho; e, antes de entrar na povoação, viu num regato estarem a lavar uma grande quantidade de mulheres, a quem perguntou se lhe saberiam dizer se naquela terra vivia uma mulher chamada Teresa Pança, casada com um certo Sancho Pança, escudeiro de um cavaleiro chamado D. Quixote de la Mancha; e, ouvindo a pergunta, pôs-se em pé uma rapariguita que estava lavando, e disse:

— Essa Teresa Pança é minha mãe e esse tal Sancho é meu pai, e o cavaleiro de quem falais é nosso amo.

— Pois vinde, donzela — disse o pajem — e levai-me a casa de vossa mãe, porque lhe trago uma carta e um presente de vosso pai.

— Isso farei eu de muito boa vontade, meu senhor — respondeu a moça, que mostrava ter catorze anos de idade, pouco mais ou menos.

E, deixando a roupa que lavava à outra companheira, sem se pentear nem se calçar, que estava de pé descalço, e desgrenhada, saltou adiante da cavagaldura do pajem e disse:

— Venha Vossa Mercê, que à entrada do povo fica a nossa casa, e ali está minha mãe com muita pena de não saber há imenso tempo de meu pai.

— Pois eu trago-lhe notícias tão boas — disse o pajem — que tem que dar por elas muitas graças a Deus.

Finalmente, correndo, saltando e brincando, chegou a rapariga à povoação e, antes de entrar em casa, disse da porta a grandes brados:

— Saia, mãe Teresa, saia, saia, que vem aqui um senhor, que traz carta e outras coisas de meu pai.

A estes brados saiu Teresa, sua mãe, fiando uma maçaroca de estopa, com uma saia parda muito curta e um corpete pardo também. Não era velha ainda: mostrava passar dos quarenta; mas forte, tesa e membruda; e, vendo sua filha e o pajem a cavalo, disse:

— Que é isto, rapariga? que senhor é este?

— É um servo de D. Teresa Pança, muito senhora minha — respondeu o pajem.

E, dizendo e fazendo, arrojou-se do cavalo abaixo e foi com muita humildade pôr-se de joelhos diante da senhora Teresa, dizendo:

— Dê-me Vossa Mercê as suas mãos, senhora D. Teresa, como mulher legítima e particular do senhor D. Sancho Pança, o próprio governador da ilha denominada Barataria.

— Ai! senhor meu! tire-se daí! não faça isso — respondeu Teresa — que eu não sou nada palaciana, mas sim uma pobre lavradeira, filha de um cavador de enxada e mulher de um escudeiro andante e não de governador algum.

— Vossa Mercê — respondeu o pajem — é mulher digníssima de um governador arqui-digníssimo; e, para prova da verdade, receba Vossa Mercê esta carta e este presente.

E tirou da algibeira o colar de corais, com fechos de ouro, e deitou-lho ao pescoço; e disse:

— Esta carta é do senhor governador, e outra que trago e estes corais são da minha senhora duquesa, que a Vossa Mercê me envia.

Ficou pasmada Teresa, e sua filha igualmente; e a rapariga disse:

— Que me matem se não anda por aqui nosso amo o senhor D. Quixote, que foi naturalmente quem deu ao pai o governo e condado, que tantas vezes lhe tinha prometido.

— Assim é — disse o pajem — que em respeito ao senhor D. Quixote é que é agora o senhor Sancho governador da ilha Barataria, como se verá por esta carta.

— Leia-ma Vossa Mercê, senhor gentil-homem — disse Teresa — porque eu sei fiar, mas não sei ler.

— Nem eu tão pouco — acrescentou Sanchita — mas esperem-me aqui, que vou chamar quem a leia, ou o próprio senhor cura, ou o bacharel Sansão Carrasco, que vêm decerto de muito boa vontade, para saber notícias de meu pai.

— Não é preciso chamar ninguém — tornou o pajem — que eu não sei fiar, mas sei ler.

E leu-a toda, não se trasladando a carta para aqui, porque já é conhecida do leitor; e em seguida tirou outra da duquesa, que dizia desta maneira:

AMIGA TERESA
As prendas de bondade e de engenho de vosso marido Sancho moveram-me e obrigaram-me a pedir ao duque meu marido que lhe desse o governo de uma ilha, das muitas que possui. Tenho notícia de que governa como uma águia e com isso estou muito satisfeita, e o senhor duque também; e dou graças ao céu por não me ter enganado, escolhendo-o para esse governo; porque há-de saber a senhora Teresa que dificilmente se acha um bom governador no mundo. Aí lhe envio, minha querida, um colar de corais, com fechos de ouro; folgaria que fosse de pérolas orientais; mas quem te dá um osso não te quer ver morta; tempo virá em que nos conheçamos e comuniquemos; e Deus sabe o que está para vir. Recomende-me a Sanchita sua filha e diga-lhe da minha parte que se prepare, que tenho de a casar altamente, quando ela menos o pensar. Dizem-me que nesse sítio há bolotas graúdas: mande-me uma dúzia, que muito estimarei, por virem da sua mão; e escreva-me com largueza, dando-me novas da sua saúde e do seu bem-estar; e se precisar de alguma coisa, não tem mais que pedir, que será servida logo. E Deus ma guarde.
Deste lugar,
Sua amiga, que bem lhe quer
A DUQUESA

— Ai! — disse Teresa, ouvindo a carta — que senhora tão chã, tão boa e tão dada! com estas senhoras me matem, e não com estas fidalgas que se usam cá na terra, que pensam que, por ser fidalgas, nem o vento lhes há-de tocar, e vão à igreja de modo que parece que são umas rainhas e que têm por desonra olhar para uma lavradeira; e vede esta boa senhora, que me trata como sua igual, e igual a veja eu do mais alto campanário que há na Mancha; e, pelo que toca às bolotas, senhor meu, eu mandarei a sua senhoria um salamim das mais graúdas que por cá se encontrarem; e agora, Sanchita, trata deste senhor, cuida do seu cavalo e vai buscar verde, e corta um naco de toucinho, e tratemo-lo como a um príncipe, porque as boas novas que nos trouxe, e a boa cara que tem, tudo merecem; e, entretanto, vou eu dar às vizinhas notícia da nossa satisfação, e ao padre cura, e a mestre Nicolau, o barbeiro, que tão amigos são e têm sido de teu pai.

— Vou tratar disso, mãe — respondeu Sanchita — mas olhe que me há-de dar metade desse colar, que a senhora duquesa não é tão tola que lho mandasse todo a vossemecê.

— Pois todo é para ti, filha, mas deixa-mo trazer alguns dias, que me alegra a alma.

— Ainda mais se hão-de alegrar — disse o pajem — em vendo a trouxa que eu aqui trago, e em que vem um fato de pano verde, finíssimo, que o senhor governador só vestiu uma vez para ir à caça, e que manda para a menina Sanchita.

— Viva ele mil anos, e o enviado outro tanto — bradou Sanchita — e até dois mil, se necessário for!

Nisto, saiu Teresa de casa, com as cartas, e o colar ao pescoço, e ia tangendo as cartas, como se fossem um pandeiro; e, encontrando o cura e Sansão Carrasco, principiou a bailar e a dizer:

— Por minha fé, que não há aqui parente pobre: temos um governicho, e que se meta comigo a mais pintada fidalga, que a faço em frangalhos.

— Que é isso, Teresa Pança? que loucuras são essas e que papéis são esses?

— Não é loucura nenhuma, e isto são cartas de duquesas e de governadores, e o que trago ao pescoço são corais finos, e eu sou governadora.

— Por Deus, não vos entendemos, Teresa, nem sabemos o que dizeis.

— Aí podem ver — respondeu Teresa.

E deu-lhes as cartas.

Leu-as o cura em voz alta, e ele e Sansão olharam um para o outro, admirados do que se tinha lido; e perguntou o bacharel quem é que trouxera as cartas.

Respondeu Teresa que a acompanhassem a casa, e veriam o mensageiro, que era um mancebo lindo como um alfinete de toucar, e que lhe trazia outro presente que valia mais de outro tanto.

Tirou-lhe o cura os corais do pescoço: mirou-os e remirou-os; e, certificando-se de que eram finos, de novo pasmou, e disse:

— Pelo hábito que visto, não sei que diga nem que pense destas cartas e destes presentes: por uma parte vejo e apalpo a finura destes corais, e por outra leio que uma duquesa manda pedir duas dúzias de bolotas.

— Vamos ver o portador da carta — disse Carrasco — e ele nos explicará as dificuldades que se nos oferecem.

Acharam o pajem peneirando uma pouca de cevada para a sua cavalgadura, e Sanchita cortando um torresmo, para o fazer com ovos e dar de comer ao pajem, cuja presença e donaire satisfez muito os dois curiosos; e, depois de se terem cumprimentado cortesmente, pediu-lhe Sansão que lhe desse notícias tanto de D. Quixote como de Sancho Pança que, ainda que tinham lido as cartas de Sancho e da senhora duquesa, estavam confusos e não podiam atinar o que viria a ser isso do governo de Sancho e ainda menos de uma ilha, sendo todas, ou a maior parte das ilhas espanholas do Mediterrâneo, pertencentes a Sua Majestade.

O pajem respondeu:

— De que o senhor Sancho Pança é governador, ninguém pode duvidar; que seja ilha ou não o que ele governa, lá nisso não me intrometo, mas basta que seja um lugar de mais de mil vizinhos; e enquanto à dúvida das bolotas, digo que a duquesa minha senhora é chã e tão humilde, que não se envergonha de mandar pedir bolotas a uma lavradeira, mas às vezes mandava pedir pentes às vizinhas, porque hão-de saber Vossas Mercês que as senhoras de Aragão, apesar de serem tão principais, não são de tantas etiquetas e de tantos orgulhos como as senhoras castelhanas: tratam toda a gente com muito mais lhaneza.

Quando estavam com estas práticas, veio Sanchita com uma arregaçada de ovos e perguntou ao pajem:

— Diga-me, senhor: meu senhor pai usa calças atacadas desde que é governador?

— Nunca reparei — respondeu o pajem — mas é provável que sim.

— Ai, Deus meu! — replicou Sanchita — muito gostava eu de ver meu pai de calções! Desde que nasci que tenho esse desejo.

— Com essas coisas e com muitas outras o verá Vossa Mercê, se Deus lhe der vida — tornou o pajem.

Bem perceberam o cura e o bacharel que o pajem falava ironicamente; mas a finura dos corais e o fato de caça que Sancho enviava desfaziam todas as suposições; riram do desejo de Sanchita e ainda mais quando Teresa disse:

— Senhor cura, deite pregão, a ver se há por aí alguém que vá a Madrid ou a Toledo, para que me compre uma saia redonda e bem feita, e à moda das melhores saias que houver; porque, na verdade, tenho de honrar o governo de meu marido, tanto quanto possa; e, se me zango, vou a essa corte deitar coche como todas; quem tem marido governador pode muito bem ter coche e sustentá-lo.

— Ó mãe — disse Sanchita — prouvera a Deus que antes fosse hoje do que amanhã pela manhã, ainda que os que me vissem sentada num coche, ao lado de minha senhora mãe, dissessem: “Olhem para aquela tola, filha de um comilão de alhos, como vai sentada e estendida naquele coche, como se fosse uma papisa!” Mas elas que se danem, e ande eu no meu coche, com os pés levantados do chão. Mau ano e mau mês para quantos murmuradores há no mundo; ande eu quente e ria-se a gente. Não é verdade, minha mãe?

— Se é verdade, filha! — respondeu Teresa — e todas estas venturas, e maiores ainda, mas profetizara o meu bom Sancho; verás tu, filha, como não paras sem ser condessa, que tudo está no principiar em ser venturoso; e, como tenho ouvido dizer muitas vezes a teu bom pai (que, assim como é teu pai, é pai e mãe dos rifões), quando te derem a vaca, vem logo com a corda; quando te derem um governo, apanha-o; quando te derem um condado, agarra-o; e quando te baterem à porta com alguma boa dádiva, recebe-a ou então deita-te a dormir, e não fales à ventura, que está fazendo truz-truz à porta da tua casa.

— E que me importa a mim — acrescentou Sanchita — que digam: viu-se o diabo com botas, correu a cidade toda?

Ouvindo isto, disse o cura:

— Na verdade, creio que esta linhagem dos Panças nasceu toda com um costal de rifões metidos no corpo, e que os entorna a todas as horas e em todos os lugares.

— É verdade — tornou o pajem — e, ainda que muitos não vêm a propósito, todavia divertem; e a duquesa, minha senhora, e o duque, apreciam-nos muito.

— Pois ainda afirma, senhor meu — disse o bacharel — ser verdade isto do governo de Sancho, e haver uma duquesa no mundo que mande presentes e escreva a sua mulher? Porque nós outros, apesar de termos lido as cartas, não o acreditamos ainda e supomos que isto é mais uma das patranhas de D. Quixote, nosso patrício, que pensa que tudo sucede por encantamento; e assim, parece-me que ainda apalpo Vossa Mercê, para ver se é fantástico embaixador, ou homem de carne e osso.

— Senhores — respondeu o pajem — só sei que sou embaixador verdadeiro e que o senhor Sancho Pança é governador efetivo, e que o duque e duquesa, muito senhores meus, lhe puderam dar, e lhe deram, o tal governo, e que ouvi dizer que nesse governo se porta bizarramente o tal Sancho Pança; se nisto há encantamento ou não, Vossas Mercês o discutam lá entre si, que eu nada mais sei, pelo juramento que faço, que é pela vida de meus pais, que tenho vivos e a quem muito quero.

— Pode muito bem ser assim — replicou o bacharel — mas dubitat Augustinus.

— Duvide quem quiser — respondeu o pajem — a verdade é o que eu disse, que há-de sobrenadar sempre na mentira, como o azeite na água; e, senão, operibus credite et non verbis; venha algum de Vossas Mercês comigo e verá com os olhos o que não acredita com os ouvidos.

— A mim é que me compete ir — observou Sanchita — leve-me Vossa Mercê na garupa do seu cavalo, que irei de muito boa vontade ver meu senhor pai.

— As filhas dos governadores não podem andar sozinhas por essas estradas, mas sim com liteiras e carruagens e grande número de servos.

— Por Deus! — respondeu Sanchita — ia tão bem a cavalo numa eguazita como metida num coche; eu cá não sou melindrosa.

— Cala-te, rapariga — acudiu Teresa — que não sabes o que dizes; e este senhor tem razão, que a todo o tempo é tempo, e quando Sancho era só Sancho, eras tu Sancha, mas quando Sancho é governador, és tu senhora.

— Diz muito bem a senhora Teresa — acudiu o pajem — e dêem-me de comer e despachem-me já, porque tenciono partir esta mesma tarde.

— Quer Vossa Mercê fazer penitência comigo? — disse o cura — a senhora Teresa tem mais boa vontade do que alfaias, para servir a tão honrado hóspede.

Recusou o pajem ao princípio; mas, afinal, teve de aceder e o cura levou-o consigo com muito gosto, para poder interrogá-lo, de seu vagar, a respeito de D. Quixote e das suas façanhas. O bacharel ofereceu-se para escrever a Teresa as respostas às cartas, mas Teresa não quis que o bacharel se metesse nos seus negócios, porque o tinha por zombador; e deu um bolo e dois ovos a um menino de coro, que sabia escrever e que lhe fez duas cartas, uma para seu marido e outra para a duquesa, notadas pelo próprio bestunto dela, que não são das piores que nesta história figuram, como adiante se verá.