Dom Quixote/II/LV

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A demora, que Sancho teve no caminho, não lhe deu lugar a que nesse dia chegasse ao castelo do duque; e, quando estava a meia légua de distância, apanhou-o a noite, um pouco cerrada e escura; mas, como era de verão, não se afligiu, e desviou-se com tenção de esperar que rompesse a manhã; e quis a sua pouca ventura que, andando à busca de sítio onde melhor se acomodasse, caíram ele e o ruço numa funda e escuríssima cova que estava entre uns edifícios muito antigos, e, quando caiu encomendou-se a Deus de todo o coração, pensando que iria parar às profundas dos abismos; não foi assim, porque, a pouco mais de quatro toesas, deu fundo o ruço e Sancho ficou montado nele, sem lesão nem dano algum. Apalpou o corpo todo e respirou com força, para ver se estava são ou escalavrado nalgum sítio; e, sentindo-se bom, inteiro e católico de saúde, não se fartava de dar graças a Deus Nosso Senhor pela mercê que lhe fizera, porque, primeiro, supôs que ficara em mil pedaços. Apalpou também, com as mãos, as paredes da cova, para ver se seria possível sair dela sem ajuda de ninguém, mas achou-as todas lisas e sem relevo algum, e com isso muito se afligiu, principalmente ouvindo o ruço queixar-se terna e dolorosamente; e não se queixava o burro por vício, que, na verdade, não estava muito bem parado.

— Ai! — disse então Sancho Pança — que sucessos não pensados costumam acontecer, a cada passo, aos que vivem neste miserável mundo! Quem diria que aquele que ontem se viu entronizado governador de uma ilha, mandando os seus servos e os seus vassalos, hoje se havia de ver sepultado numa cova, sem haver quem o remedeie, nem criado, nem vassalo, que acuda em seu socorro! Aqui teremos de morrer à fome eu e o meu jumento, se não morrermos antes, ele de moído e quebrantado, e eu de pesaroso; pelo menos, não serei tão feliz como foi o meu amo D. Quixote de la Mancha, quando desceu à caverna daquele encantado Montesinos, onde achou quem o regalasse melhor do que em sua casa, que não parece senão que esteve lá de cama e mesa. Ali viu ele visões formosas e aprazíveis, e aqui verei, creio eu, sapos e cobras. Desditoso de mim: em que vieram a parar as minhas loucuras e fantasias! Daqui tirarão os meus ossos, quando o céu for servido que me descubram, descarnados, brancos e empedernidos, e com eles os do meu bom ruço, por onde talvez conhecerão quem nós somos, pelo menos os que tiverem notícia de que nunca Sancho Pança se apartou do seu jumento, nem o ruço de Sancho Pança. Outra vez digo: míseros de nós outros! que não quis a nossa triste sorte que morrêssemos na nossa pátria e entre os nossos, onde, ainda que não encontrasse remédio a nossa desgraça, não faltaria quem dela se doesse, e, na hora última do nosso pensamento, nos cerrasse os olhos! Ó companheiro e amigo meu, que mau pago te dei dos teus bons serviços! Perdoa-me e pede à fortuna, do melhor modo que souberes, que nos tire deste mísero trabalho, em que ambos estamos metidos, que eu prometo pôr-te um laurel na cabeça, que não pareças senão um poeta laureado, e dar-te as rações dobradas.

Deste modo se lamentava Sancho Pança, e o seu jumento ouvia-o, sem lhe responder palavra — tais eram o seu aperto e a sua angústia. Finalmente, tendo passado aquela noite toda em míseras queixas e lamentações, rompeu o dia, e, com a sua claridade e resplendor, viu Sancho que era completamente impossível sair daquele pouso sem o ajudarem, e principiou a lamentar-se e a dar brados, para ver se alguém o ouvia; mas, tudo era clamar no deserto, porque, em todos aqueles contornos, não havia pessoa que o pudesse ouvir; e então acabou de se dar por morto. Estava o ruço de focinho levantado e Sancho Pança conseguiu-o pô-lo em pé; mas ele mal se podia suster: e Sancho, tirando dos alforjes, que também tinham caído, um pedaço de pão, deu-o ao seu jumento e parece que lhe não soube mal; e disse-lhe Sancho, como se ele o entendesse:

— Lágrimas com pão, passageiras são.

Nisto, descobriu a um lado da cova uma abertura, por onde cabia uma pessoa, se se encolhesse muito. Correu para lá Sancho Pança, e, agachando-se, entrou e viu que por dentro era espaçosa e larga, e pôde-a ver bem, porque, pelo sítio que se podia chamar teto, entrava um raio de sol, que a descobria toda. Viu também que se dilatava e alargava por outra concavidade espaçosa, e então voltou ao sítio onde estava o jumento, e, com uma pedra, principiou a desmoronar a terra da abertura, de modo que, em pouco tempo, abriu espaço por onde o jumento pôde entrar com toda a facilidade, e, agarrando-lhe pelo cabresto, principiou a caminhar por aquela gruta adiante, para ver se achava, por outro lado, alguma saída; e umas vezes ia às escuras, outras vezes com luz, mas nunca sem medo.

— Valha-me Deus todo-poderoso! — dizia entre si — isto que para mim é desventura, melhor fora aventura para meu amo D. Quixote. Ele sim, que tomaria estas profundidades e masmorras por jardins vistosos e palácios de Galatéia, e esperaria sair desta escuridão e estreiteza para algum florido prado; mas eu, sem ventura, falto de conselho e menoscabado de ânimo, a cada passo imagino que, debaixo dos pés, se me há-de abrir de improviso outra cova mais profunda que a primeira, que acabe de me tragar, porque um mal nunca vem só.

Deste modo, e com estes pensamentos, lhe pareceu que teria caminhado pouco mais de meia légua, ao cabo da qual descobriu uma confusa claridade, que supôs ser já a do dia, e que entrava por algum lado, o que dava indício de ter saída e fim aquele caminho, que se diria ser o da outra vida.

Aqui o deixa Cid Hamete Benengeli e volta a tratar de D. Quixote, que, alvoroçado e contente, esperava que chegasse o dia da batalha que havia de travar com o sedutor da filha da dona Rodríguez, a quem tencionava desfazer o agravo que maldosamente lhe tinham feito. Sucedeu, pois, que, saindo uma manhã a ensaiar-se no que havia de fazer nesse lance, dando um repelão ou arremetida a Rocinante, chegou este a pôr os pés tanto à beira duma cova que, se D. Quixote não puxasse fortemente as rédeas ser-lhe-ia impossível não cair para dentro. Enfim, susteve-se e não caiu; e, chegando-se um pouco mais ao pé, sem se apear, mirou aquela profundeza, e, quando a estava mirando, ouviu grandes brados lá dentro, e, escutando atentamente, pôde perceber as seguintes palavras:

— Olá de riba! há aí algum cristão que me escuta? ou algum cavaleiro caritativo que se compadeça de um pecador enterrado em vida? de um desditoso governador desgovernado?

Pareceu a D. Quixote que aquela voz era a de Sancho Pança, e ficou assombrado e suspenso; e, levantando a voz o mais que pôde, disse:

— Quem está lá em baixo? quem se queixa?

— Quem há-de estar aqui, e quem se há-de queixar — responderam — senão o asno de Sancho Pança, governador, por seus pecados e por sua má fortuna, da ilha Barataria; escudeiro, que foi, do famoso cavaleiro D. Quixote de la Mancha?

Ouvindo isto, duplicou a admiração de D. Quixote, e acrescentou-se-lhe o pasmo, acudindo-lhe ao pensamento que Sancho Pança devia de ter morrido, e que era a sua alma que estava ali penando; e, levado por esta imaginação, disse:

— Esconjuro-te por tudo quanto posso esconjurar-te como cristão católico, para que me digas quem és; e, se fores alma penada, dize-me o que queres que por ti faça, que a minha profissão é favorecer e socorrer os necessitados deste mundo, e também os do outro que não podem ajudar-se a si próprios.

— De maneira — responderam — que Vossa Mercê, que me fala, deve de ser meu amo D. Quixote de la Mancha, e a mesma voz o está dizendo.

— D. Quixote sou, que tenho por profissão socorrer e ajudar os necessitados vivos e mortos: por isso, dize-me quem és, que me tens atônito; porque, se és o meu escudeiro Sancho Pança, e morreste, logo que te não levassem os diabos, e estejas, por misericórdia de Deus, no purgatório, sufrágios bastantes tem a nossa Madre Igreja Católica Romana, para te tirar das penas que padeces, e eu, pela minha parte, com ela o solicitarei, até onde chegar a minha fazenda; por isso, acaba de te declarar, e dize quem és.

— Voto a tal — responderam — e juro, pelo nascimento de quem Vossa Mercê quiser, senhor D. Quixote de la Mancha, que sou o seu escudeiro Sancho Pança, e que nunca morri nos dias da minha vida; mas, tendo deixado o meu governo, por coisas e lousas, que só com mais vagar se podem dizer, caí esta noite na cova onde estou jazendo, e o ruço comigo, que me não deixará mentir, porque, por mais sinal, está aqui ao pé de mim.

E, o que é melhor, é que parece que o jumento entendeu o que Sancho disse, porque logo principiou a zurrar com tanta força, que toda a cova retumbava.

— Famosa testemunha — disse D. Quixote; — conheço o zurrar, como se eu o tivesse dado à luz, e ouço a tua voz, meu Sancho; espera-me, que eu vou ao castelo do duque, que é daqui muito perto, e trago quem te tire dessa cova, onde, sem dúvida, os teus pecados te meteram.

— Vá Vossa Mercê — disse Sancho — e volte depressa, por amor de Deus, que já não posso suportar o ver-me aqui enterrado em vida, e estou morrendo de medo.

Deixou-o D. Quixote, e foi ao castelo contar aos duques o que sucedera a Sancho Pança, de que não pouco se maravilharam, ainda que bem perceberam que devia ter caído pela outra abertura da gruta, que ali estava feita desde tempos imemoriais; mas, não podiam imaginar como ele deixara o governo, sem serem avisados da sua vinda. Finalmente, levaram cordas e maromas, e, com muita gente e muito trabalho, tiraram o ruço e Sancho Pança daquelas trevas, para a luz do sol.

Viu-o um estudante e disse:

— Deste modo haviam de sair, dos seus governos, todos os governadores, como sai este pecador das profundas dos abismos, morto de fome, descorado e sem mealha, segundo me parece.

Ouviu-o Sancho e disse:

— Há oito dias ou dez, irmão murmurador, que entrei a governar a ilha que me deram, onde não tive uma só hora em que estivesse farto de pão: durante esse tempo, médicos me perseguiram e inimigos me amolgaram os ossos: não cobrei nem mealha; e, sendo isto assim, parece-me que não merecia sair deste modo; mas o homem põe e Deus dispõe, e o que Deus faz é sempre pelo melhor; e quando venta molha a vela; e ninguém diga: desta água não beberei; e muitos vão buscar lã e vêm tosquiados; e eu cá me entendo, e basta; e não digo mais, ainda que o poderia.

— Não te zangues, Sancho, nem te aflijas com o que ouvires, que seria um não acabar nunca: vem tu com a consciência segura, e deixa falar o mundo; querer amarrar as línguas aos mal-dizentes é o mesmo que querer pôr portas ao campo. Se o governador sai rico do seu governo, dizem que foi ladrão, e, se sai pobre, dizem que foi tolo.

— Com certeza — respondeu Sancho — que, desta vez, hão-de ter-me antes por tolo, que por ladrão.

Nestas práticas chegaram, rodeados de rapazes e de muita outra gente, ao castelo, onde já estavam nuns corredores o duque e a duquesa esperando D. Quixote e Sancho, e este não quis subir a ir ver o duque, sem meter primeiro o ruço na cavalariça, alegando que ele passara muito má noite na sua pousada; e depois subiu e, ajoelhando diante dos seus senhores, disse:

— Senhores: porque assim o quis a vossa grandeza, sem nenhum merecimento fui governar a vossa ilha Barataria, onde entrei nu, e nu de lá saio, e não perco nem ganho. Se governei bem ou mal, testemunhas tive de tudo, que dirão o que quiserem. Aclarei dúvidas, sentenciei pleitos, e morri sempre de fome, por assim o ter querido o doutor Pedro Récio, natural de Tirteafuera, médico insulano e go­ver­na­do­res­co. Aco­me­te­ram-nos inimigos de noite, e, tendo-nos posto em grande aperto, afirmam os da ilha que ficaram livres e vitoriosos, graças ao valor do meu braço: que tanta saúde lhes dê Deus, como a verdade que eles dizem. Enfim, neste tempo todo, pude tentear os encargos e as obrigações que o governar traz consigo, e entendi que os meus ombros não podiam com a carga, nem eram peso para as minhas costelas, nem frechas para a minha aljava; e assim, antes que o governo desse em terra comigo, dei eu com o governo em terra, e ontem pela manhã deixei a ilha como a encontrei, com as mesmas ruas, casas e telhados que tinha à minha chegada. Não pedi dinheiro emprestado a ninguém, nem me meti em negócios rendosos; e, ainda que tencionava fazer algumas ordenações proveitosas, não fiz nenhuma, receoso de que se não guardassem, que, para isso, tanto monta fazê-las como não as fazer. Saí, como digo, da ilha, sem mais acompanhamento que o do meu ruço: caí numa cova; vim por ela adiante, até que esta manhã, com a luz do sol, vi a saída, mas tão difícil, que, a não me deparar o céu o senhor D. Quixote, ali ficaria até ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa meus senhores, aqui está o vosso governador Sancho Pança, que, nestes dez dias de governo, só lucrou o ficar sabendo que não serve de nada ser governador de uma ilha, nem governador do mundo inteiro; e com isto os não enfado mais, e, beijando os pés a Vossas Mercês, dou um pulo do governo abaixo, e passo para o serviço de meu amo D. Quixote, que enfim, com ele, ainda que coma o pão com sobressalto, ao menos sempre me farto; e eu cá, em me fartando, pouco me importo que seja com feijões ou que seja com perdizes.

Com isto deu fim Sancho Pança à sua larga prática, temendo sempre D. Quixote que ele dissesse milhares de disparates; e, quando o viu acabar com tão poucos, deu do fundo do coração graças aos céus; e o duque abraçou Sancho e disse-lhe que lhe pesava no íntimo da alma ter ele deixado o governo tão depressa; mas que veria se lhe podia dar, no seu estado, outro ofício de menos encargo e de mais proveito. Abraçou-o a duquesa também e deu ordem que o regalassem, porque dava sinais de vir muito moído e em muito maus lençóis.