Echos de Pariz/XVIII

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XVIII

A morte e o funeral de Carnot

 

Pariz, sentado nos terraços dos cafés, bebendo aos goles, devagar, limonada ou xarope de grozelha e soda, enxuga a testa e repousa das emoções por que passou n’esta semana, sob 35 graus calor (á sombra). Que emoções, com effeito, tão atropelladas, tão desencontradas, desde essa manhã de segunda-feira em que cada um de nós foi accordado quasi violentamente pelo seu criado, que, sem abrir as vidraças, espalhando logo na penumbra da alcova um pouco do assombro e do horror que invadira a cidade, exclamava ou balbuciava: — «O snr. Carnot foi assassinado em Lyão!» Depois d’isto não era possivel, nem readormecer, nem preguiçar. Pariz inteiro, sem banho, quasi sem almoço, desceu á rua, como Athenas nos grandes dias civicos, e ficou na rua durante uma semana, fallando alto e comprando vorazmente jornaes. Tantos jornaes arrebatava e logo arremessava, que á noute macadam e asphalto desappareciam sob uma camada de lixo impresso, o mais triste de todos os lixos.

Esta multidão tão sobreexcitada interiormente, conservava todavia uma compostura calma, semelhante á de um publico n’um theatro, que, enquanto os heroes agonisam no tablado, se sente perfeitamente seguro, e seguras, em torno d’elle a vida e a ordem da cidade. É que a morte Carnot só affectou realmente a imaginação de Pariz. Era como uma tragedia, improvisada um forte genio tragico, representada inesperadamente uma noite em Lyão, e de que os jornaes viessem contando os lances de sangue e luto.

O punhal do italiano, escandido entre flôres, á boa maneira italiana da Renascença, não ferira, ferindo Carnot, nenhum d’esses interesses que são para o homem, individualmente, como pedaços da sua propria carne, ou para a sociedade como o cimento de onde depende a sua estabilidade. O bem estar mais intimo do cidadão, hoje, não se altera com as catastrophes soffridas por aquelles que os governam: e o Estado não soffre uma arranhadura, quando o seu chefe morre d’uma punhalada. Outr’ora, a suppressão violenta do chefe causava um abalo universal, uma tumultuosa deslocação de interesses, quasi uma transformação de costumes. Quando Henrique IV é assassinado na rua de la Ferronnerie, como Carnot, toda a França, horas depois, segundo a viva expressão de Michelet, ficou revirada de dentro para fóra como uma luva. A laboriosa obra do reinado desaba bruscamente: o thesouro amontoado por Sully é esbanjado ao vento; todas as construcções, por falta de dinheiro, se interrompem; todas as grandes manufacturas se fecham, e os operarios vagueiam famintos; a trama das allianças, tao habilmente urdida, n’um instante está desfeita — e ahi temos em breve a guerra dos Trinta Annos! Aquelle rei morto levava comsigo para o tumulo o pão, a paz, a posição, as vaidades de milhares de vasallos. Por isso em Pariz foi terrivel a desolação. Como diz ainda Michelet, cada cidadão se considerou pessoalmente perdido: e nas casas, como uma desgraça domestica, as mulheres gritavam arrepellando os cabellos!

Com a perda do snr. Carnot, assassinado como Henrique IV, nenhum cidadão (superfluo é lembrar) se considera perdido: e as mulheres, em vez de arrepellar o cabello, põem mais cuidado em o pentear, para assistirem, com uma curiosidade ligeira, á festa dos funeraes.

Não ha obras interrompidas, nem operarios despedidos. Pelo contrario! O trabalho cresce. Os jardineiros, os floristas, os fabricantes de corôas, embolsam mais de tres milhões de francos. O assassinato do chefe do Estado anima o commercio. De facto, não ha nada mudado em França — apenas um bom francez de menos.

Isto não prova a fraqueza das instituições monarchicas, porque depois de Henrique IV morto houve logo Luiz XIII posto, e o throno de França, com as mesmas flôres de liz, ainda durou triumphalmente dous seculos. Mostra apenas que hoje Estado já não está todo contido dentro do chefe — e que o chefe é apenas o remate decorativo do Estado, podendo ser bruscamente derrubado por uma rajada de crime, sem que o edificio que elle rematava, se abale, e nem por um momento diminua, ou se modifique, ou sequer se interrompa, a vida intensa que circula dentro do edificio e que o torna vivo. O regicidio deixou assim de ser uma tragedia politica — para se tornar simplesmente uma tragedia domestica, que no povo não póde interessar mais que a imaginação.

O que Pariz durante esta semana sentiu (além de uma compaixão natural pelo bom homem morto e pela admiravel viuva), foi uma curiosidade feroz do detalhe tragico. Os jornaes concorreram para exaltar esta curiosidade, menos pelas cousas dolorosas que vinham contando, como pela maneira terrifica com que as annunciaram, em typo disforme, lettras de tres pollegadas, de um negrume sinistro, enchendo toda uma folha, e na sua mudez mais estridentes que gritos! São estas letras de descomedido espalhafato, imitadas da America e exageradas como toda a imitação interesseira, que exacerbam a sensibilidade moderna. As pestes, as guerras, as quedas de imperios, eram outr’ora narradas pelos jornaes no seu typo miudo e ordinario e a noticia das catastrophes entrava no nosso espirito de um modo manso e discreto, sem produzir n’elle alvorotos violentos. Agora, estas lettras espaventosas invadem com pavor o nosso pobre cerebro; e á maneira de touros que se precipitam dentro d’um templo, põem a quieta assembléa das nossas ideias em confusão e terror. Uma tarde d’esta semana, nos boulevards, um jornal astuto e videiro, a Cocarde, appareceu ostentando na sua primeira pagina, larga como uma pagina da Gazeta, estas duas linhas unicas, n’um typo despropositado, sem precedentes, que se avistava a uma milha: — «O embaixador de França foi assassinado em Roma!» — Vi mulheres, ao receberem nos olhos desprevenidos este tremendo berro typographico, quasi desmaiarem: e por onde passavam os vendedores, agitando o cartaz pavoroso, a multidão redemoinhava, como sob um grande vento de medo e colera!

Assim, durante a longa semana, andou vehementemente sacudida a nossa imaginação.

De resto a tragedia de Lyão era bem propria a agitar as imaginações mais ronceiras e dormentes. Raramente o destino ou o acaso (se é que o destino se conservou indifferente) envolveu um regicidio em scenario mais commovente, de contrastes mais patheticos, accumulando n’elle uma tal profusão de detalhes horriveis na sua trivialidade, e quasi medonhamente grotescos através do seu horror. Essa noite parece composta por Shakespeare e retocada aqui e além, depois, por Hoffmann. Quem jámais a saberá e a contará em toda a sua miuda realidade? E que contraste intenso já, em que o mais doce e ordeiro dos homens assim findasse na mais cruenta e atabalhoada das tragedias! Carnot morre com um requinte dramatico que faltou a Cesar! Vêde logo o scenario! Não é a sala grave do senado, onde os punhaes se erguem com a serenidade raciocinada de uma votação — mas a rua illuminada de uma cidade em festas, n’uma noite de gala. Todas essas flammulas, e bandeiras, e rutilantes arcos de gaz, e festões multicores de lanternas chinezas, e fogos esparsos de Bengala, e escudos de luz, e palanques, e orchestras são para celebrar o homem que passa no seu landeau, e saúda, e sorri. Uma multidão sincera, de uma boa sinceridade provinciana, para quem esse homem, com a placa e gran-cruz da Legião de Honra, cercado de couraceiros, encarna realmente a magestade da França, grita — «Viva Carnot! Viva Carnot!» E de repente a magestade da França cáe para cima das almofadas do coche, com a face descomposta, livida! Foi um qualquer, surdindo das profundidades da plebe, com os sapatos rotos, uma velha jaqueta de panno côr de mel, que, n’um relance, lhe enterrou um punhal no ventre. Punhalada quasi impessoal, em que o braço não é mais do que a prolongação inconsciente da lamina de ferro, e que vem debaixo, de longe, de muito longe, das camadas escuras do proletariado esfaimado... E o landeau lá vae, lá foge a galope, entre o ancioso tropear da escolta, levando o chefe de Estado que se escoa em sangue. O Estado, recentemente para o proteger, gastára mais um milhão de francos em reforçar a policia!

Oh! esta sinistra fuga para o palacio da prefeitura, do landeau da côrte tornado bruscamente carro d’hospital! Já para dentro saltára um cirurgião, que, de mangas arregaçadas, tendo desabotoado as calças do presidente, palpava a ferida, vedava o sangue com os lenços emprestados pelos lacaios. E assim galopa um quarto d’hora furiosamente, sob as bandeiras, os arcos de luxo e as grinaldas de luzes. Um mero cidadão seria logo transportado, e em braços, ao pateo d’uma casa, ao balcão d’uma botica. Mas o presidente tem de recolher ao palacio, ainda que se esvaia em sangue, porque, mesmo n’uma Republica, é severa a regra do Protocollo! Nas ruas, a multidão, que nada sabe da punhalada e vê passar entre os couraceiros o landeau d’Estado, onde vagamente se agitam e brilham plumas e dragonas de generaes, bate as palmas festivas, acclama Carnot! Mas em cima, nas janellas, a gente que as enche tem uma visão estranha, terrivel, quasi burlesca — o chefe do Estado estendido, com a gran-cruz, a placa de diamantes da Legião de Honra e o ventre nú, a fralda da camisa fluctuando, já tingida de sangue! Visão espantosa que passa entre ovações — ao clarão dos fogos de Bengala, sob o estalar dos foguetes. Passa, desapparece, n’um galope de cavalleiros, deixando apenas o sulco arrepiador d’aquella fralda branca e sangrenta!

Á porta do palacio da Prefeitura a confusão é tão grande que dous reporters, sofregos de se envolverem n’um acontecimento historico, se apoderam do corpo do presidente e o arrancam do landeau, um agarrando uma perna, outro um braço. Começa o penoso, hesitante transporte através das escadarias e passagens da prefeitura, um palacio novo, mal conhecida ainda, estreiado n’esses dias de gala.

Logo no primeiro patamar ha um embaraço angustioso... O presidente só devia recolher tarde, depois da representação de gala no Grand Theâtre; toda a criadagem, com tres horas livres, abalara para as festas, para os fogos da Exposição: — e as luzes estavam apagadas, todos os corredores em trevas! E ninguem tinha um phosphoro! O ferido, desmaiado, arrefece, perde o sangue. E a anciedade toda é por um phosphoro. Emfim, lá dardeja ao fundo um bico de gaz. O corpo do presidente é pousado sobre a colcha de seda do seu leito de ceremonia.

Mas, através das portas escancaradas da prefeitura, penetrara uma immensa turba, que atulhava os corredores, invadia o quarto, estorvava os serviços dos cirurgiões. Foi necessario que acudisse policia e tropa para rechassar, através do palacio, aquella multidão, tomada de uma curiosidade furiosa, e onde auctoridades, magistrados, ministros se debatiam, berravam, repellidos no longo rôlo. Um magote mais tenaz, em que havia senhoras, permaneceu fincado deante da porta do quarto lamentavel. Não ha nada, já notou Victor Hugo, que mais aguce a curiosidade do que um muro, uma porta fechada, por traz da qual se está passando alguma cousa de irreparavel.

Quando essa desejada porta se abria, dando passagem a algum general com bacias ou pannos ensanguentados, todos, homens e senhoras, se empurravam, se esticavam para contemplar o chefe do Estado no seu leito, ainda de casaca, ainda de gran-cruz, com o ventre nú, as pernas núas...

Assim morria, n’esta desordem, o mais decoroso dos chefes de Estado.

Cesar, ao cahir, deu um grande movimento á toga para se tapar todo, n’uma suprema decencia: — e em torno d’elle não havia senão os brancos marmores do senado deserto, e ao fundo um personagem consular, muito velho, muito gordo, que adormecera, nada percebera do feito supremo e continuava resonando, com o labio pendente, emquanto esfriava o corpo gasto do vencedor das Gallias e se mudava a ordem do mundo.

Emfim o presidente está morto, lavado, vestido, com a sua casaca, as suas insignias — e apertando na mão já hirta um par novo de luvas brancas. Defunto, Carnot parece manter aquella correcção official que fôra o seu cuidado durante a vida. Para comparecer na presença de Deus, como chefe de Estado, elle tem a sua placa de diamantes, a sua gran-cruz, e na mão as suas luvas novas. Estas luvas d’além da campa, muita gente as acha estranhas! Ellas são todavia do velho ceremonial funerario de França. Os reis de França eram enterrados com luvas. O grande cavalleiro Roldão, ao morrer em Roncesvalles, tira, no derradeiro arranco, o seu guante de escamas de ferro e entrega-o ao archanjo S. Miguel, que ao lado esperava para conduzir ao Senhor o alto paladino da christandade. Era da etiqueta feudal, nos tempos Carlovingios, que o vassallo, ao penetrar no solar do seu suzerano, despisse o guante da mão direita e o abandonasse a um pagem.

Roldão não esquece este acto de vassalagem. Ao transpor as portas do céu, que é o solar de Deus, suzerano absoluto, elle tira o guante e gravemente o entrega ao archanjo, como a um pagem celeste.

Todos sabem, porque bons livros o contam, como Deus acolheu o cavalleiro perfeito e lhe chamou, sorrindo, seu filho. Assim, através das edades, a tradição liga Carnot a Roldão.

Considerae tambem como é dramatico o modo escondido e calado com que regressou a Pariz o corpo de Carnot. Na gare não havia uma auctoridade, um ministro, ninguem do grande pessoal do Estado, quando o comboio que trazia o cadaver, appareceu, sem um signal, sem um apito, sem um rumor, deslisando funebre e mudamente, como um fantasma de comboio, vago e coberto de crepes. D’uma portinhola sahiu, no mesmo silencio, Mme Carnot, vestida como na vespera, quando correra a Lyon, com um chapéo enfeitado de flôres vermelhas. Mettem o caixão á pressa n’um carro sem solemnidade civil e religiosa; e á pressa, n’um trote fugidio, através das ruas mais desertas, onde clareava a madrugada, levam-n’o para o Elyseu. O morto como que é recolhido ás occultas ao seu palacio, para se installar methodicamente na sua capella ardente, e depois, quando não faltasse uma colgadura nem um tocheiro, abertas as portas, e com a sumptuosidade que lhe competia, receber as supremas honras funeraes. Atraz d’elle, pelas ruas desertas, (segundo contam) só o acompanhou um fiacre, com vadios e mulheres nocturnas, fumando cigarros, de perna estendida. Estranho remate de uma noitada estroina — seguir n’um fiacre o cadaver d’um chefe de Estado!

Ao outro dia, porém, com a luz, começaram a pompa e o luto publico. Mas então cessam tambem os lances inesperados e melodramaticos. Tudo se torna regular, fixo e pautado pelo protocollo. Hoje Pariz desfila, com curiosidade e emoção, ante o ataúde do presidente, posto em capella, no devido luxo de flôres e de luzes, coberto com a tricolor. Amanhã Pariz, n’uma curiosidade crescente, mas já dimiunida a emoção, fará densas alas ao presidente que passa para o Pantheon.

Funeraes magnificos, de certo — mas de uma magnificencia muito cerceada pela sobriedade do gosto francez e pela simplicidade official da democracia. A democracia officialmente, usa casaca de panno preto: — e o severo gosto, em França, não permitte n’estas pompas outro luxo, além do luxo das flôres. Tudo o que outr’ora na antiguidade, e depois na Renascença, fazia o esplendor das ceremonias funebres — a sumptuosidade dos trajes, as sêdas negras cahindo dos balcões, os incensadores fumegando, os coros dolentes, os corceis ricamente ajaezados, as insignias symbolicas, os trophéos, os andores, os estandartes, os carros de deslumbrante architectura, a riqueza patricia, as criadagens agaloadas, e o incomparavel fausto da Egreja com os seus baculos, as suas mitras, as suas purpuras, as suas casulas de ouro — toda essa magnificencia esthetica aqui falta. Um pobre carpinteiro de Florença ou Roma, da Florença dos Medicis ou da Roma de Leão X, nunca acreditaria, contemplando esta procissão funeral, que uma opulenta e artistica nação estava fazendo a apotheose do seu chefe assassinado. Todavia a França, dentro das restricções impostas pela sobriedade do seu gosto e pela simplicidade da sua democracia, prestou a Carnot, largamente, todas as homenagens e preitos symbolicos. As flores que lhe offertou, foram incontaveis, custaram mais de tres milhões de francos, e durante todo um dia perfumaram o vasto ar de Pariz. E toda a França organisada, desde os corpos d’estado até aos clubs gymnasticos, acompanhou o seu feretro ao Pantheon, que a patria reconhecida reserva aos Grandes Homens.

Mas essas flôres uniformemente arranjadas em corôas, e accumuladas sobre carros, ou conduzidas isoladamente em andores, algumas enormes, de dous metros de diametro, e semelhando bolas pintadas de côres vistosas, não podiam formar, na sua uniformidade dogmatica, um quadro de belleza: só impressionavam pela abundancia, pela ideia mercantil dos milhões gastos, e em breve murchos.

E a França toda atraz, era apenas uma infinita e cerrada fila de casacas pretas. Interminavelmente passavam na irradiação do sol de julho as casacas negras. Aqui, além, por vezes, um grupo de embaixadores, as fardas d’um estado-maior, os juizes com as suas bécas escarlates destacavam, n’uma mancha fugitiva de brilho e côr. Mas logo se prolongavam, se eternisavam as calças pretas, as casacas pretas, marchando em cadencia. Nos olhos pesados, no espirito meio entorpecido, não restava por fim senão á impressão dormente d’um mudo e lutuoso perpassar de fato preto.

E aos olhos cançados, ao espirito adormentado, voltava, para embotar mais a emoção artistica d’esta pompa, a memoria de outras pompas, a de Thiers, a de Gambetta, a de Victor Hugo, em que tambem assim marchavam, em longas milhas, calças pretas, casacas pretas.

Uma novidade, porém, e singular, impressionava n’estes funeraes de Carnot: — e era que, atraz do feretro, coberto com a bandeira tricolor, se entreviam n’um carro batinas e sobrepellizes de padres. Depois, á frente dos embaixadores, marchava o nuncio do papa, nas suas grandes vestes rôxas. E por todo o prestito, mesmo misturadas aos uniformes, appareciam, aqui, além, sotainas de padres. Novidade consideravel! E então se attentava mais em que esta tragedia do presidente assassinado fôra realmente, toda ella, em todos os seus actos, seguida e ministrada pela Egreja. Carnot moribundo recebeu os santos oleos das mãos do arcebispo de Lyon.

Na capella ardente, entre os generaes que o guardam, rezam padres, e freiras desfiam os seus grossos rosarios. Ao pé do caixão ha um hyssope, n’uma caldeira com que Pariz, ao desfilar, asperge as pregas da bandeira que cobre o corpo, de modo que ao fim do dia a tricolor está toda orvalhada de agua benta. É o cura da Magdalena, de cruz alçada, com o seu clero, que vem ao pateo do Elyseu fazer a entrega do corpo, segundo o velho ritual de Pariz. Agora aqui vão padres atraz do carro funerario. Toda esta pompa marcha para Notre-Dame. Ás portas da antiga çathedral, o arcebispo de Pariz reza os responsos finaes, e do pulpito, como nos tempos de Bossuet, faz a oração funebre do presidente da Republica. Os radicaes, livres-pensadores, entraram na sombria nave, e de joelhos, por decencia, abalados por vagas memorias, baixaram a cabeça ao levantar da hostia. E depois outros padres irão ao Pantheon, desconsagrado pela Republica, para rebenzer o jazigo do presidente, que é ao lado do jazigo de Voltaire!

Estranhas vicissitudes! Carnot morto, leva atraz de si pelas ruas de Pariz o radicalismo compungido — e é para os altares que o vae levando.

Conheço uma velha gravura allegorica do seculo XVI, em que, atraz d’um cortejo, e tambem funerario, se vê um personagem de cornos, de pés de bode, que, todo torcido, com o rabo vexadamente mettido entre as pernas pelludas, vem rosnando e roendo as unhas, n’uma evidente mostra de humilhação e rancor. É o diabo. Pois tambem n’este cortejo derradeiro de Carnot, me pareceu avistar, lá ao longe, o nosso velho amigo, o jacobinismo, de barrete phrygio, com a face, o ar pelintra, roendo as unhas, horrendamente humilhado.

Toda esta semana, com effeito, tem sido para elle de humilhações. Mas o desventurado já as não conta! Desdenhado pela sciencia, mais desdenhado ainda pela philosophia, rechassado pelas lettras, abominado pela arte, espancado pela mocidade no pateo das escolas, troçado pelos caricaturistas, apupado pela plebe, esse pobre jacobinismo, tornado um objecto de escandalo e tedio, anda ahi mais escorraçado n’este fim do seculo XIX, do que o diabo, nos fins do seculo XVIII, nas vesperas da sua morte. A sua maior humilhação, porém, vem de que a França, a França que o produziu, e que ainda hoje, de certo modo, o produz, n’este mesmo dia dos funeraes, e pela voz d’um dos seus melhores espiritos, o declarou, com aviltante desdem — um producto de exportação!

Oh! empertigados manes de Robespierre! O jacobinismo declarado em Pariz — producto de exportação! Tal é a fragilidade das seitas. Sic transit gloria diaboli.

 
FIM