Echos de Pariz/XVII

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XVII

Carnot

 

O presidente Carnot foi assassinado em Lyão. Para desde logo caracterisar este contrasenso sangrento, eu deveria dizer que o presidente Carnot foi inverosimilmente assassinado em Lyão.

Com effeito! Que rara inverosimilhança!

O mais innocente, o mais legal, o mais irresponsavel, o mais impessoal dos chefes de Estado, morrendo de uma punhalada, como Cesar, como Henrique IV ou como Marat!

Carnot sahia, ás 9 horas da noite, do banquete que lhe offerecera a municipalidade de Lyão para assistir, no Grand-Theâtre, a uma representação de gala.

O seu landeau, aberto e desprotegido, rolava vagarosamente por entre uma multidão que o acclamava no fulgor das ruas illuminadas. Um homem, trazendo n’uma das mãos um ramo de flôres e na outra um papel enrolado á maneira d’um requerimento, saltou bruscamente, e como um gato, sobre o rebordo do landeau, tocou no peito do presidente com as flôres ou com o papel. O maire de Lyão, sentado em frente de Carnot, ainda atirou, com o punho, uma pancada á cabeça do homem, que fugira, e que alguem na turba immediatamente filara, por instincto, como um ladrão. Tanto o maire de Lyão como aquelles mais proximos, que tinham entrevisto n’um relance o salto mudo e felino, pensaram que o homem se arremessava sobre o presidente para lhe arrancar e lhe roubar a placa de diamantes da Legião de Honra! E esta ideia, a primeira, como a mais natural, que a todos acudiu, perfeitamente define o presidente da Republica. Carnot era d’esses homens que se não suppõe que possam ser accommettidos — senão para serem roubados.

Elle não tinha inimigos. Não tinha mesmo adversarios — porque não representava um partido e muito menos um principio. A Constituição reduzira a sua auctoridade a uma sombra incerta e tenue; e essa mesma parcella de auctoridade elle a exerceu sempre com uma reserva, que a muitos parecia indifferença, e a outros nullidade. Carnot passou a sua presidencia constantemente torturado e peiado pelos escrupulos pungentes da Legalidade. De certo tinha os seus gostos e as suas preferencias — mas eram preferencias de homens por homens, e nunca por ideias. Estas mesmas preferencias por estadistas do seu typo, discreto e neutro, como Mr. Loubet, Tirard e outros, tantas vezes lhe foram censuradas pelas opposições extremas, que elle terminou por immolar dentro em si esta derradeira e modesta expressão da sua força pensante. Foi então que ganhou a reputação phantasista de ser de pau. A sua vontade immovel ou immobilisada traduzia-se na rigidez hirta da sua attitude. Quasi não ousava mover um braço com receio de magoar um artigo da Constituição. Quando muito saudava e sorria. Assim pelo menos o pintavam os caricaturistas e os cancionistas. E se a historia da sua presidencia fôsse mais tarde estudada n’estas obras ligeiras do humorismo pariziense, ellas dariam ideia de um chefe de Estado cujos unicos actos historicos fôram saudar e sorrir. Carnot não era mais que a imagem ornamental e symbolica da Republica, como essa estatua de ouro da Victoria, que protegia o Imperio Romano. E o partido politico, que com um fim politico assassinasse este chefe, seria tão insensato como uma tripulação revolta que, querendo apoderar-se de um navio para lhe dar um rumo novo, decepasse expressamente e furiosamente a figura de pau esculpida na prôa.

Por isso o crime de Lyão foi logo, e sem outro exame, attribuido ao anarchismo; — porque só os anarchistas, hoje, n’esta nossa civilisação raciocinadora, utilitaria, conservam, como os selvagens, a ferocidade pueril de commetter crimes inuteis. São elles que, para destruir todo o capital oppressor, arrasam um predio qualquer de tres andares, e para demolir a burguezia auctoritaria matam a estilhas de bomba alguns empregados do commercio sentados n’um café a beber bocks. Os seus crimes nem sómente são inuteis — são ainda contraproducentes, porque vão formidavelmente fortalecer tudo quanto elles querem destruir, e indefinidamente retardam todos os progressos que elles pretendem com ancia precipitar. Esta seita, que tem por principio a suppressão de toda a auctoridade, tornou-se assim uma estupida e inconsciente fautora do abuso da auctoridade. E chegou a um ponto, que o anarchismo parece ser secretamente assalariado pelo despotismo.

O assassino de Carnot ainda se não confessou anarchista; de facto ainda não descerrou os labios senão para rosnar algumas indicações de naturalidade e residencia, n’uma rude algaravia incomprehensivel, que não é francez, nem italiano, e que se não sabe mesmo se é natural, se fingida. Mas desde logo a conclusão geral foi que havia alli um anarchista — porque só um anarchista, com aquelle obtuso fanatismo que dementa a seita, poderia esquecer quanto o assassinato de um chefe de Estado, tão legal e irresponsavel como Carnot, iria, pela natural irrupção de colera e dôr, pela unanimidade de sympathias accumuladas em torno da França e do seu governo, pelo sentimento do perigo despertado em todos os outros chefes de Estado, exacerbar por toda a parte a reacção e a perseguição, não só contra o anarchismo, mas contra os partidos avançados e de ideias justas de que elle é o filho bastardo e scelerado. Mais que nunca, d’este vez o anarchismo trabalhava furiosamente contra essa liberdade de que pretende ser a expressão suprema e perfeita; — e a sua arma não era mais do que uma nova e ensanguentada ferramenta posta, por elle, de noite, nas mãos da burguezia capitalista.

Anarchista ou não, porém, esse rapaz mysterioso, que permanece mudo n’um carcere de Lyão, fez, senão uma d’aquellas «victimas de eleição» de que fallam os Evangelhos, uma victima que todos os homens de bem podem lamentar com magoa pura e sem mescla d’outro sentimento. Carnot foi por excellencia o magistrado integro.

Sem nenhuma das qualidades brilhantes de espirito que captivam os lados imaginativos da raça franceza, elle foi todavia popular, e, apesar dos leves sorrisos que provocava o seu feitio exageradamente empertigado, o mais popular talvez de todos os chefes d’Estado n’stes ultimos cincoenta annos em França. E a razão é que elle encarnava admiravelmente todos os outros lados do temperamento francez, os do bom senso positivo, da prudente moderação, do trabalho zeloso, da probidade e da veneração pela Lei. Todos estes traços de caracter se encontram em França, principalmente na burguezia provincial; por isso Carnot era sobretudo querido nas provincias, e se podia considerar como um presidente não pariziense, mas provinciano, o que constitue, para quem conhece Pariz, um dos seus meritos, senão o seu merito maior. De certo para a sua popularidade concorreram tres grandes factos que elle pessoalmente não creou, mas a que soube presidir com perfeita dignidade e tacto: — a suppressão do boulangismo, ultimo fermento do espirito cesarista; a exposição universal de 1889; e a alliança ou festas alliadas da Russia e França. Todos estes acontecimentos, de resto, se prendiam com aquella ordem de preoccupações que n’elle eram mais vivas, da grandeza material da França e do seu predominio social na Europa. Peiado, travado pelos seus escrupulos de legalidade, em tudo o que se relacionava com a politica interna (ao contrario de Grévy que só se interessava pelo parlamentarismo pelos seus episodios) era para as relações exteriores da França, para a sua situação e gloria na Europa, que Carnot dirigia, senão uma franca iniciativa, ao menos aquella porção de iniciativa secreta de que se considerava ainda legalmente senhor. E ahi os seus serviços fôram reaes e eminentes, porque, se não teve em politica externa d’essas ideias seguidas, novas ou fortes, que outr’ora quando havia reis se chamavam «as grandes ideias do reinado», mostrou na sua conducta de chefe d’Estado, exposto á observação das chancellarias européas, tanta correcção e prudencia pacifica, e sentimento da grandeza nacional, que fez acreditar á Europa n’uma França tão digna, tão prudente, tão pacifica e tão forte na consciencia da sua grandeza, como se mostrava o chefe que ella escolhera. Por esse lado, Carnot foi um valioso cooperador da confiança da França em si mesma e da paz em toda a Europa.

Particularmente, era o mais excellente dos homens — affavel, caritativo, leal, clemente, cultivado.

A multidão que o via sempre tão teso, mettido n’uma casaca que parecia de ferro, com a barba muito negra e dura, a barra vermelha da Legião de Honra destacando sem um vinco no peitilho rigido, tendia a pensar que tudo, no homem interior, era tambem secco, rigido, duro.

A multidão enganava-se redondamente. Carnot era um brando, quasi um sentimental.

Ha assim d’estas figuras de madeira, que vivem por dentro de uma vida ignorada, que é cheia de sensibilidade e de calor affectivo.

Um jornal que sempre incondicionalmente o honrou, e que costuma pôr nas suas palavras uma sisudez ponderosa, e mesmo solemne, o Temps, resume o elogio funebre de Carnot affirmando que elle era un brave homme. A expressão assim, isolada, póde parecer familiar, talvez rasteira, mesmo laivada de vago desdem. Mas, quando junta a todas as outras que definem o seu caracter publico, logo se sente que esta as completa, as embelleza, e espalha sobre ellas como um indefinido perfume de bondade e doçura, sem as quaes nunca ha verdadeira superioridade moral. E Carnot, elle proprio, na lista extensa das suas virtudes intimas e civicas, apreciaria, mais que todas, esta, que tem um feitio tão simples, de brave homme. Na sua vida, na sua alta magistratura, foi sempre um brave homme.

E isto, no chefe eleito de uma democracia, é talvez a melhor condição — porque dos grandes genios vêm por vezes grandes males, e nunca vem senão bem de uma bondade honesta e grave.