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Encarnação (José de Alencar)/II

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Na chácara contígua à do Sr. Veiga, pelo lado esquerdo, morava um desses homens que o povo designa com o nome de esquisitos.

Os amigos o chamavam Carlos; os estranhos tratavam-no por Sr. Hermano; ele, porém, costumava assinar-se H. de Aguiar.

Para merecer do vulgo a qualificação de esquisito, basta às vezes sair da trilha batida; mas o Sr. Hermano tinha com efeito hábitos e ações que excitavam o reparo e lhe davam certo cunho de originalidade.

Não se lhe conhecia profissão; sabia-se entretanto que era abastado, pois além da chácara de sua residência, possuía apólices e prédios na cidade.

Sua casa vivia constantemente fechada na frente, e tinha o aspecto de uma morada em vacância pela ausência do dono. Quem olhava pela grade do portão, sempre trancado, não descobria outro indicio de habitação a não ser o fumo da chaminé.

Todavia nas raras vezes em que soava a grossa campa da entrada, aparecia logo um velho criado, todo vestido de preto, que introduzia a visita com uma cortesia respeitosa mas fria e taciturna.

O dono da casa costumava ir à cidade três vezes na semana, para tratar de seus negócios, ou talvez para não se isolar totalmente do mundo de que já vivia tão apartado. Também saia de passeio, a pé ou a cavalo pelos arrabaldes.

Certas ocasiões mostrava-se afável, polido, atencioso e expansivo, retribuindo os cumprimentos que recebia, e dirigindo-os as pessoas de seu conhecimento. Era então um modelo do homem de boa sociedade e fina educação.

Outros dias estava de tal modo concentrado que passava pelas ruas como um incógnito; não falava a ninguém; não fazia caso das pessoas de maior consideração e a quem acatava. Se algum amigo vinha-lhe ao encontro, recebia-o sem parar com a mascara muda e impassível da abstração, e logo o despachava com um aperto de mão automático.

Estas alternativas sucediam-se por fases; duravam semanas e meses. A fisionomia denunciava logo a conjunção desse espírito com o mundo. Havia nele, como em todos nós, dois homens, o íntimo e o social; a diferença é que nele as duas faces revezavam-se, enquanto que nos outros elas de ordinário são fixas e formam o direito e o avesso do indivíduo.

Ainda mesmo nos seus dias de misantropia o semblante do Sr. Hermano era tão modesto e sereno que ninguém via na sua desatenção orgulho ou falta de civilidade.

Atribuíam estas desigualdades de caráter ao gênio e não se ofendiam com elas. Em geral os vizinhos e conhecidos o saudavam sempre cordialmente, embora ele passasse sem olhá-los.

Do que poucos sabiam, e só alguns amigos se lembravam, era da primeira mocidade de Hermano, quando ele passava por um dos mais brilhantes cavalheiros dos salões fluminenses. Sua graça natural, o primor de suas maneiras, e as seduções do seu espírito, o distinguiam entre todos como um tipo de elegância.

Eram os arrebóis dessa esplêndida mocidade que ele ainda mostrava nos seus momentos de expansão, quando desprendia-se da constante preocupação.

Um dia, no meio de seus triunfos, quando a sua estrela mais brilhava, correu a noticia de que Hermano estava para casar-se, o que não devia surpreender em sua idade. Foi, porém, geral a admiração quando se soube que D. Julieta, a moça por quem se apaixonara a ponto de sacrificar-lhe a liberdade. não era rica nem bonita.

Ninguém esperava que ele, nas condições de pretender as filhas dos primeiros capitalistas e de escolher entre as mais aristocráticas belezas da corte, fizesse um casamento tão desvantajoso.

D. Julieta não freqüentava a alta sociedade; mas algumas pessoas da creme' a tinham encontrado por vezes em partidas familiares; e essas compreenderam a repentina que ela tinha inspirado ao noivo.

Como estátua a moça era um esboço imperfeito, ainda mesmo com as correções que aplica o molde de um traje elegante, ou a feliz disposição dos enfeites.

Imagine-se que um cinzel inspirado idealizava esse esboço e dava às linhas do perfil a harmonia que lhes negara a natureza. Tal seria, não o retrato de Julieta. mas o tipo que sua pessoa refletia na imaginação do artista a quem servisse de modelo.

Havia em seu olhar, em sua voz, em seus movimentos, inflexões maviosas, mas de tão vivo relevo que se esculpiam como se tomassem corpo. Depois de apagar-se o gesto, sentia-se ainda a sua doce impressão no vulto a que animara.

O espírito fino, meigo e gentil de Julieta não tinha expansões brilhantes. Era modesto, e às vezes tímido. Entretanto o que ela dela por mais simples que fosse, trazia o calor de uma emoção intima. Sua palavra exalava os perfumes de uma alma em flor.

Ao seu lado e conversando com ela, um homem de rigor estético poderia esquivar-se ao enlevo que infundia a suprema distinção dessa moça, e notar em suas feições e em seu talhe a ausência da beleza plástica

Mas apartando-se dela e perdendo-a de vista, raro era o que não levava na fantasia um ideal suave e gracioso, que ofuscava a imagem das mais radiantes formosuras de salão.

O primeiro encontro de Hermano com a noiva explica bem a influência que ela devia exercer em sua vida.

Ao sair do teatro lembrou-se do convite que recebera para uma partida em casa de pessoa de sua amizade, a quem devia atenções. Dirigiu-se para lá, com a intenção apenas de fazer ato de presença.

Quando entrou no saguão, cantava uma senhora a ária da Lúcia de Lammemor. A voz, que não era extensa, comoveu-o. Parou para escutar; e viu desenhar-se em seu espírito a imagem esbelta e vaporosa da virgem que o amor enlouquecera.

Terminado o canto, subiu. Havia na sala muitas senhoras algumas de seu conhecimento, outras que via pela primeira vez. Notou entre estas uma moça alva, de cabelos negros; era Julieta. Sem que lho dissessem, por uma rápida intuição adivinhou que fora ela a intérprete inspirada da música de Donizetti.

Teve pois uma decepção Ele imaginara sempre uma Lúcia loura como a filha das nevoentas montanhas da Escócia; e vinha achar a sua cópia em um tipo tão oposto.

Hermano demorou-se mais do que tencionara; ficou até o fim da partida. Por mais de uma vez aproximou-se de Julieta e conversou com ela Quando se recolheu, cantava mentalmente o Bell'anima, que ouvira executado por Mirati; e pensava que talvez Lúcia apesar de escocesa, tivesse cabelos pretos como a Maria Stuart de Walter Scott .

Julieta era filha de um coronel reformado de nosso exercito, que servira por algum tempo em Goiás Na sua primeira expedição para aquela província acompanhou-o a mulher apesar de estar mui próxima a dar à luz. A menina nascera em viagem.

Uma escrava que o oficial trazia, fatigada das jornadas, mal podia acudir à senhora

Foi pois o furriel Abreu que serviu de ama-seca a menina, e tal amizade tomou-lhe que não quis mais separar-se dela. Completando o tempo de serviço obteve baixa e ficou em companhia do oficial agregado

Hermano freqüentou a casa do coronel Soares. Pouco mais de mês depois do seu primeiro encontro com Julieta manifestou-lhe os seus sentimentos, que aliás já eram conhecidos da moça, e pediu-lhe um consentimento, que tinha razão de esperar.

Ela ficou um momento pensativa; depois disse com o tom grave de uma convicção profunda

— O casamento é uma fatalidade.

Como Hermano interrogava-lhe o semblante para conhecer o sentido de suas palavras, ela acrescentou:

— Meu marido há de pertencer-me de corpo e alma, como eu a ele, e para sempre. É assim que entendo o casamento.

— Penso da mesma maneira.

— Para sempre é eternamente.

— Compreendi todo o seu pensamento, Julieta. e não imagina o meu júbilo por encontrar tão perfeita identidade de sentimentos na mulher a quem amo. Sempre acreditei que o casamento não deve ser uma simples união social, mas a formação da alma criadora e mãe, da alma perfeita, de que nós não somos senão as parcelas esparsas. Essa alma uma vez formada, só Deus a pode dividir e mutilar.

O casamento realizou-se pouco tempo depois; e os noivos foram morar na casa de São Clemente, a qual tinha sido preparada com esmero para recebê-los.

Abreu acompanhou sua filha de criação. Ele a tinha recebido em seus braços ao nascer, e contava não deixá-la senão quando Deus o chamasse.