Encarnação (José de Alencar)/V

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Em meio da partida, quando servia-se o chá, Amália com um aceno do leque indicou a Henrique Teixeira uma cadeira que vagara a seu lado.

-- E o nosso folhetim?

-- Refleti, D. Amália; o melhor é falarmos de outra coisa.

-- Confessa, portanto, que seu amigo é como os outros; mais um exemplar desse compêndio já muito conhecido que se chama marido.

-- Não, senhora, não confesso; calo-me. Não devo expor à sua zombaria a vida íntima do amigo que mais prezo.

-- Esta reflexão, devia tê-la feito em princípio, doutor. Depois de haver-me aguçado a curiosidade, está na obrigação de satisfazê-la, e é o mais prudente, porque o seu silêncio compromete o seu amigo.

-- Em quê?

-- Dá-me o desejo de fazer acerca dele, e acerca dessa vida íntima que não pode ser profanada, as mais extravagantes suposições.

-- Esta razão me decide.

-- A outra devia ter a preferência, por fineza ao menos.

-- Qual outra?

-- A de não duvidar da minha discrição.

-- Perdão; eu a ofenderia se acreditasse nela. Seria suspeitar de seus dezoito anos, e fazer brancos ou grisalhos tão belos cabelos louros.

-- Entretanto há pouco pedia reserva aos meus belos cabelos louros, observou Amália com um gesto encantador.

-- Sem dúvida. A reserva que eu lhe pedia era a de contar a história tão enfeitada que já não fosse a mesma referida por mim.

-- Terei esse cuidado; e até me incumbo de ilustrá-la com retratos. Mas antes de tudo preciso conhecê-la.

-- Então quer ouvir?

-- E dispenso o prólogo.

-- Voltando da Europa, há três meses, passei os primeiros dias em casa de Carlos, que me esperava e foi buscar-me a bordo. Chegamos a São Clemente pela manhã; e depois do banho clássico, nos reunimos em uma sala, que fazia parte dos aposentos da mulher e onde esta mais assistia. Notei então que ele, algumas vezes, distraidamente, voltava-se para o sofá, permanecia por momentos com os olhos fitos na almofada de veludo a que habitualmente se recostava D. Julieta.

-- E suspirava naturalmente ou enxugava a furto uma lágrima silenciosa que lhe queimava a face? perguntou Amália com seriedade picante.

-- Não; ao contrário, sorria-se.

-- Deveras! O seu herói tem um cunho original. Estou me interessando por ele.

--A sala em que nos achávamos, e a presença de Carlos, a quem revia depois de anos de ausência, remontavam o meu pensamento aos primeiros tempos de seu casamento, em que tantas vezes nos reuníamos ali em família, ele, sua mulher e eu. Parecia-me ver ainda o talhe elegante de D. Julieta, que nos escutava, atenta, enlevada na voz do marido, e dando-nos de vez em quando, com uma observação espirituosa, o tema da conversação E essa evocação entristeceu-me. Entretanto Carlos estava contente; e no seu semblante respirava a satisfação d'alma. Supus que era o prazer da minha volta; mas não podia conciliá-lo com as recordações vivas que se estavam traindo nos seus gestos.

-- Essas recordações eram puramente cacoetes de viúvo.

-- Vai ver. Pouco depois o Abreu chamou-nos para o almoço. Carlos tomou o seu lugar do costume; eu sentei-me defronte e notei logo que havia um talher em frente à cadeira de honra, outrora ocupada pela dona da casa. Tínhamos pois uma terceira pessoa; talvez alguma velha parenta de Carlos.

-- E por que não seria alguma prima moça e bonita, que viesse tentar aquele modelo de constância? Aposto que adivinhei.

-- Não adivinhamos, nem a senhora, nem eu. O Abreu serviu-nos, e eu a convite do dono da casa almocei com apetite de viajante. Uma coisa me causou reparo. Quando Carlos incumbia-se de trinchar, depois de fazer o prato para mim, fazia outro que passava ao Abreu. Este em vez de advertir o amo da sua distração colocava o prato na cabeceira, sobre o terceiro talher intacto, e o meu amigo tirava para si nova porção; depois o criado mudava todos os três talheres.

-- Ah! percebo. Um eclipse matinal da estrela.

-- Ao jantar reproduziram-se todas estas circunstâncias que referi. A cadeira continuou vazia, sem a menor observação do dono da casa, e o talher de estado foi ainda servido duas ou três vezes. Cresceu, porém, a minha surpresa, quando na ocasião de tomarmos café, Carlos, continuando a conversa, proferiu o nome da mulher, mas de modo que parecia indicar a sua presença.

Amália deu uma risada.

-- Não é romance, então. É um conto fantástico!...

-- Estou referindo fatos de vida real. A senhora lhes dará o título que for mais do seu agrado.

-- Bem; vamos ao resto. Eu gosto mais deste gênero. Tem sua novidade.

-- Como lhe disse, passei algum tempo na companhia de Carlos; e do que observei depois, assim como de umas revelações a custo obtidas do Abreu, compreendi o que a princípio me pareceu estranho.

-- Ou por outra, compreendeu o incompreensível.

-- Para aquele marido, a mulher que ele amou estremecidamente ainda habita a casa, que ela enchia de sua graça e de sua ternura. Ele a sente perto de si, a seu lado, nas horas em que trocavam suas mútuas expansões, e nos lugares que ela preferia.

-- É poético e sublime, não se pode negar. -- Os aposentos particulares de D. Julieta estão da mesma forma por que ela os deixou. Não há ali a menor mudança; os mesmos trastes, os mesmos objetos, e cada um como ela os colocara. Ninguém ali penetra senão Carlos e o Abreu. Esse criado velho adorava a menina, que ele trouxe nos braços desde o dia de seu nascimento. Também para ele, a dona da casa ainda vive, e governa o interior.

-- Temos, pois, aqui na vizinhança um hospital de doidos! atalhou Amália.

--Não me entendeu.

-- Ora, seriamente, doutor, o senhor comprometeu-se a si e ao seu sexo. Obrigou-se a apresentar um modelo de fidelidade conjugal, e só o pôde encontrar como enfermidade. Confesse: a constância de seu amigo é apenas uma mania, e o senhor não foi sincero quando, há pouco, pretendeu convencer ao Borges.

--Tão sincero como agora. Carlos não tem o menor eclipse na sua razão calma e forte.

-- Mas como se chama essa alucinação?

-- É uma superstição a que estão sujeitos todos os que vivem pelo espírito.

-- Não sabia.

--Só não as têm os materialistas, aqueles para quem Deus é um absurdo, a pátria e a família uma comandita; gente que reduz a inteligência a um pouco de fósforo, e a virtude a uma convenção. Esses vivem fisicamente; são corpos que se transformam. Nós, porém, que nos remontamos à nossa origem divina, todos temos nossas abusões.

-- Eu não as tenho.

-- Tem, afirmo-lhe. Mas as suas abusões são risonhas e brilhantes; chamam-se esperanças. As suas orações também... Quantas vezes não acreditou a senhora, que Deus, o Criador do infinito, comovido por sua prece, alterava as leis do universo para enxugar-lhe uma lágrima, ou dar-lhe um sorriso? O que é isto senão uma superstição?

-- Bem diversa da que tem seu amigo.

--A senhora nunca perdeu uma pessoa a quem amasse. Aqueles que já sofreram esse golpe, quando visitam o túmulo que encerra as cinzas do ente querido, acreditar que ali está alguma coisa deles, a sua sombra, a sua alma quando ali não há senão pó. É o mesmo que acontece a Carlos, com uma diferença: nos outros são os vestígios materiais, é o despojo mortal, que produz aquele efeito; nele é o espírito unicamente. O que ele sente, o que vê, é a alma da mulher.

-- Chega a vê-la? disse Amália, cuja ironia nada perdoava.

-- Com os olhos d?alma. O corpo nada é e nada era para ele. Desde o momento em que D. Julieta morreu, ele a abandonou como um objeto indiferente, e não teve o menor desejo de vê-la. Isso observei eu.

-- Em todo caso, doutor, para fazer-lhe a vontade, convenho em que seu amigo será um homem de muito juízo, mas não aqui neste mundo; no da lua talvez.

-- Devo dizer-lhe que a principio também inquietou-me aquele estado; busquei um pretexto para tocar nesse ponto delicado. Carlos compreendeu-me logo e respondeu com franqueza: ?É verdade; há ocasiões em que sinto Julieta perto de mim, e em que vivo com ela, como outrora. É a sua alma que me acompanha, ou é a minha lembrança que a tem sempre viva e presente ao meu espírito? Seja o que for, isso me consola e me restitui a felicidade que perdi. Que necessidade tenho eu de investigar este mistério ou dissipar esta ilusão? Não há maior mistério e maior ilusão do que a vida; e nós vivemos sem conhecer, nem a nossa origem, nem a realidade de nossa existência?. Eis as palavras que ele me disse, e com a maior simplicidade e placidez de ânimo. A razão e a ciência não teriam outra linguagem; e quer a senhora que eu qualifique de mania essa plenitude de consciência?