Encarnação (José de Alencar)/XII
Guiado pelo aceno de D Felícia, Hermano dirigia-se ao gabinete do Sr. Veiga, que tinha por costume fazer diariamente a sua caixa particular antes do chá.
Ninguém ouvira na sala o breve diálogo dos dois namorados; e menos a pergunta que Amália transmitira à mãe, calando aliás a verdadeira intenção que Hermano lhe havia dado. Mas as pessoas presentes suspeitavam que se tratava do pedido formal de um casamento, que todas já previam.
Quanto a D. Felícia, tinha certeza do fato. A confusão da filha e o alvoroço que se traia na voz e nas palpitações do seio, revelavam bem o sentido da pergunta de Hermano e a significação do seu ato.
Amália, para esquivar-se à curiosidade geral que lhe interrogava a atitude e a expressão da fisionomia, fora sentar-se ao piano; e tocava com um brio nervoso. para dissimular na agitação do exercício musical e na excitação da fadiga os sobressaltos involuntários bem como os rubores que lhe abrasavam as faces e o colo.
Pelo seu gosto se teria retirado da sala; mas Hermano devia ressentir-se dessa ausência, e ela mesma não podia privar-se da sua presença pelo resto da noite. Sair para voltar depois da decisão era expor-se ainda mais ao reparo.
Durou meia hora a expectativa.
Ouviu-se abrir a porta do gabinete e todos os olhos volveram-se para o corredor, com exceção dos de Amália que se abaixaram a pretexto de decifrar uma frase.
Ela não viu nada, nem ali, nem no papel, nem em torno; tinha uma névoa nos olhos. Ouviu, porém, uma voz comovida pronunciar seu nome e sentiu que lhe apertavam a mão.
Quando recobrou-se desse soçobro e ergueu-se correndo a sala com o olhar, Hermano partia.
Voltara ele do gabinete grave e sombrio; despedira-se de Amália e da dona da casa com um aperto de mão, cortejara as outras pessoas e retirou-se sem uma explicação daquele procedimento estranho.
Fora tal a surpresa, que ninguém, nem D. Felícia, tivera a presença de espírito necessária para fazer a menor observação. Não havia para este fato senão uma interpretação: e foi a que todos lhe deram imediatamente, apesar de a considerarem inadmissível. Hermano tinha sofrido uma repulsa do Sr. Veiga.
Mas como era isso possível, sabia-se do desejo que tinha o capitalista de casar a filha; e dos avanços que a família fazia ao pretendente, e tão a contento da moça?.
D. Felícia foi ao encontro do marido que entrava na sala e perguntou-lhe a meia voz, com sofreguidão, o que se havia passado com Hermano.
— Nada, respondeu o Sr. Veiga mais admirado do tom do que da pergunta. Ofereceu-me recomendações para a Europa e prometeu dar-me algumas informações úteis para a viagem.
— Só? perguntou a senhora.
— Só.
O pasmo foi geral. D. Felícia não se pôde conter.
— Não se precisa das suas informações; ele que as guarde e nos livre de sua presença.
O Borges encartou a sua mofina:
— Eu sempre o tive por maluco.
O Sr. Veiga dissera a verdade. Quando Hermano estava no gabinete, o capitalista estava no meio de uma adição.
Para não perder o trabalho começado, e usando já da liberdade de futuro sogro; pediu ao hóspede o favor de esperar um instante, dois minutos, enquanto fechava a conta.
Mal sabia ele que estes dois minutos iam decidir da felicidade da filha.
Hermano esperou, com a emoção que assalta todo homem de caráter ao tomar grande responsabilidade. Não era a primeira vez que tinha essa emoção. Lembrou-se do momento em que pedira a mão de Julieta. O passado, que parecia morto, ressurgiu e apoderou-se dele.
Ficou estupefato, vendo-se ali naquela casa e encontrando-se nessa última fase de sua existência, que ele se espantava de ter vivido. Parecia-lhe sonho esse período. Não compreendia como ele, o marido de Julieta, acreditara que pudesse nunca substitui-la por outra mulher.
O capitalista concluiu a sua conta e voltou-se para a visita. Trocaram algumas palavras sobre o calor que tinha feito durante o dia, e calaram -se.
— Está próxima a sua viagem à Europa? disse Hermano depois de uma pausa.
— E verdade! Daqui a dois meses.
— Sabe que já fiz esta viagem? Posso dar-lhe algumas informações úteis.
Hermano falou um quarto de hora sobre Paris e Londres sem consciência do que dizia; o Sr Veiga ainda absorvido nas suas parcelas de caixa não lhe prestou a menor atenção; e assim terminaram a entrevista.
Os convidados compreenderam a conveniência de retirarem-se mais cedo; o que, porem os decidiu a usar dessa atenção foi o desejo de espalharem logo, naquela mesma noite, a noticia do rompimento, pois outra coisa não era o que se acabava de pensar.
O Teixeira que chegara tarde, quis atenuar o procedimento do amigo, e teve com D. Felícia longa explicação.
Parece que tocou nas excentricidades do viúvo atribuindo a elas a sua hesitação, o que a senhora moralizou com esta exclamação:
— Então bem diz o Borges. E um maluco e foi uma felicidade que eu o descobrisse, antes de dar-lhe minha filha.
Amália tinha-se recolhido. A mãe foi achá-la pensativa:
— Tu sabes quanto desejo ver-te casada, Amália; mas antes fiques toda a vida solteira, do que teres a desgraça de aturar um doido.
— A sua doidice, mamãe, também eu a tenho. Ele ama!....
— A ti? perguntou D. Felícia com ironia.
— A mim também; mas não me ama bastante para fazer-me sua mulher.
— Não te faltam maridos.
Amália, durante as suas breves relações com Hermano, costumava à tarde sentar-se no jardim, em um caramanchão que ficava perto da grade, mas oculto pelas trepadeiras. Ali viam-se de passagem, conversavam um instante, e separavam-se para de novo reunirem-se à noite na sala.
Passados os primeiros dias depois do rompimento, a moça tornou a esse hábito, talvez na esperança de que ele facilitasse a aproximação de Hermano. Ela adivinhara a razão que havia determinado a súbita mudança do amante; mas queria ouvi-la de seus lábios.
Com efeito uma tarde, ao escurecer, ouviu o rangido da areia sob os passos de alguém que se aproximava; não ergueu os olhos do livro, mas pressentiu que era ele; e não se enganava.
— Não venho pedir-lhe perdão. Não o mereço; e a senhora não pode e não deve conceder. Desejo, porém que saiba a causa do meu procedimento, para que não duvide um instante de si e do respeito e admiração que me inspirou Quer ouvir-me?.
— Fale, murmurou a moça comovida.
— No momento de ligar para sempre o seu ao meu destino, hesitei; apoderou-se de mim um grande tenor. Tive medo de fazer a sua infelicidade.
— Por quê?.
Hermano concentrou-se um momento.
— Quem possui a sua beleza e a sua alma, tem o direito de ser amado exclusivamente, sem reservas e sem partilhas. A senhora não pode ser a simples companheira do homem a quem se unir. P preciso que esse homem lhe pertença, que viva inteiramente de sua afeição, que se consagre todo à sua felicidade. Se ele tivesse uma idéia, uma preocupação, uma reminiscência, que o disputasse ao seu amor cometeria uma infidelidade; e a senhora havia de exprobrar-lhe o tê-la enganado. Podia eu, conhecendo-a como a conheço, sacrificar o seu futuro, que deve ser tão brilhante?.
Amália pousou os seus belos olhos no semblante de Hermano.
— Tem razão, disse ela docemente. O meu amor não basta para encher tão completamente a sua vida, que não haja lugar nela para outra afeição. Desde que o passado ainda vive em sua alma, o que iria eu fazer senão perturbar a tranqüilidade de seu espírito e profanar as suas recordações? É melhor assim; guardaremos pura e sem ressaibo a lembrança desses poucos dias que vivemos juntos.
Ela ergueu-se, estendendo a mão ao amante.
— Adeus, Hermano.
— Amália!... Talvez.— Não façamos do nosso amor um galanteio de sala. Já esqueceu Julieta e poderia esquecê-la nunca?.
Hermano não respondeu.
— Bem vê que é impossível.
A moça afastou-se lentamente Hermano entrou na sua chácara, e sentou-se no primeiro banco A lua vinha assomando no horizonte.
Ouviram-se prelúdios de piano; e uma nota melancólica e suavíssima cortou o silêncio da noite.
Era a voz de Amália que soluçava o Addio del passato da Traviata .
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