Encarnação (José de Alencar)/XIII
Amália, durante a longa vigília daquela noite, se compenetrara bem da situação, em que a tinham colocado os acontecimentos.
A proximidade do homem que amava, e a quem não podia pertencer; a facilidade de vê-lo a cada instante involuntariamente, ou a casa onde habitava; essa certeza de sua presença, ali, a alguns passos dela, era um suplício cruel.
Cumpria quebrar de uma vez esse elo material, já que não podiam unir-se pelos vínculos d'alma.
Amália lembrou-se a principio de passar fora da corte algumas semanas que faltavam para a viagem; mas pareceu-lhe melhor apressar de uma vez a partida para a Europa.
Com esta idéia, ergueu-se pela manhã, e saindo do seu quarto, encaminhou-se ao gabinete do pai resolvida a fazer-lhe o pedido. Foi, porem na sala de jantar que o encontrou em companhia da mãe.
Veiga abraçou a filha muito risonho; e prendendo-lhe a loura cabeça no peito, pôs-lhe diante dos olhos uma carta aberta, na qual a moça reconheceu a letra de Hermano.
Antes que ela se recobrasse da surpresa e pudesse ler a carta, D. Felícia lhe comunicara sofregamente o assunto.
Era um pedido de casamento, no qual Hermano manifestava o desejo de obter pessoalmente de Amália o seu consentimento.
— Pode vir? perguntou o pai à filha depois que esta acabou de ler a carta.
—Ainda não, respondeu Amália agitada.
— Quando? disse D Felícia.
— Quero pensar, mamãe.
A senhora, para quem Hermano agora era o homem mais sensato do mundo, fez à filha mui judiciosas observações acerca da conveniência de apressar a decisão: e não se esqueceu de citar em seu abono o conhecido anexim que dá por transtornado o casamento adiado.
Amália persistiu não obstante. e com uma razão que desarmou a mãe.
— Se é preciso que responda imediatamente, mamãe, recuso P porque desejo aceitar, que peço a liberdade de refletir. Para dispor de minha vida inteira, não são muitos alguns dias.
— Pois bem, Amália, pensa à tua vontade; mas lembra-te de que a viagem está próxima. É verdade que podese adiar, até mesmo porque o tempo não anda bom. tem havido tantos temporais. Que diz, Sr Veiga?.
O capitalista que lia os jornais, levantou os óculos para observar:
— Mas o câmbio é ótimo. A ir não devemos perder esta ocasião.
Amália hesitou durante alguns dias. Ela tinha naquela carta, lida tantas vezes, e guardada consigo, a prova cabal, além de muitas outras, do amor que Hermano lhe consagrava. Mas podia ela confiar a sua sorte desse amor?.
Hermano era uma alma nobre, um caráter leal, incapaz de iludi-la Não duvidava dele; mas duvidava de si. Receava não ter força para dominar e possuir esse coração generoso, arrancá-lo ao passado em que se havia sepultado, e ressuscitá-lo à felicidade.
Ela acreditava que o marido de Julieta ainda amava a primeira mulher e vivia de sua lembrança.
Mas esse afeto de além túmulo não podia encher-lhe a existência; e por isso aquela alma rica de paixão e mocidade se desprendia da sua idolatria para buscar no mundo uma expansão, um sentimento de que se nutrisse.
Nesse impulso, Hermano se lançara na realidade, fascinado pela beleza da desconhecida; mas, em breve a ilusão desvanecera-se. O homem regenerado pelo amor casto de Julieta não podia corromper-se numa lição impura. Passada a alucinação, tornara ao seu culto.
— Foi então que ele, desesperado pela recordação da mulher, e crendo em mim outra Julieta, começou a amar-me, pensava Amália; e talvez esse amor o tenha salvado, dando-lhe forças para reabilitar-se. Sem ele, sem um afeto que o obrigue e o ampare, não se deixará dominar ainda pela beleza fatal daquela mulher, ou de outra como ela? E poderá reerguer-se da nova queda?.
A moça decidiu então na generosidade de seu amor votar-se à guarda e arrimo desse homem infeliz pela exuberância de sua alma.
— Mas, se o amor que inspirei, e que ele sinceramente acredita sentir por mim, não for mais do que um capricho efêmero um reflexo apenas da paixão que tem por Julieta? Quando dissipar-se o encanto me perdoará ele ter profanado o culto da esposa e rompido para sempre o elo que o prendia à primeira e única mulher amada? Não terei eu sacrificado a minha vida, não para dar-lhe a felicidade, mas para fazer a sua desgraça?.
Era esse o grande problema do seu destino.. Amália bem o compreendia; e sem deliberação para resolver por si, deixava isso ao tempo esperando uma inspiração do céu. Entretanto passavam os dias aproximava-se a época da viagem; e talvez fosse esta o melhor e o único desenlace.
Toda essa hesitação, bastou um olhar para dissipá-la. Amália indo com a mãe à cidade, encontrou Hermano e não pôde resistir ao gesto de doce resignação com que ele a saudou.
É o meu destino, pensou a moça. O meu e o seu.
Respondeu ao cumprimento, parando para falar-lhe; e na despedida, ao apertar-lhe a mão disse:
—Até à noite.
Ao escurecer, quando Hermano chegou Amália o esperava no jardim. Antes que ele preferisse qualquer palavra, a moça, espontaneamente e como se continuasse um diálogo não interrompido, entregou-lhe a mão dizendo:
— Com uma condição.
— Qual?.
— Se até o último instante eu perceber o menor sinal de arrependimento ou mesmo de hesitação, fica-me o direito de restituir-lhe a liberdade.
— Duvida de meu amor, Amália? Depois de ter-lhe dado a maior prova? tornou Hermano magoado. Que conceito lhe mereço então?.
— Não! acudiu a maca vivamente. Não duvido; nem do seu amor nem da sua lealdade, Hermano P o interesse pela sua felicidade que me inquieta.
A noite as visitas receberam com a noticia do malogro da viagem à Europa, a participação ainda confidencial do próximo casamento de Amália com Hermano.
A certeza dessa união, esperada pelas pessoas que freqüentavam a família Veiga, foi bem recebida; todos felicitaram cordialmente os noivos. O Borges, porem. embora se mostrasse dos mais pressurosos em aplaudir, ia pelos vários grupos de convidados insinuando um veremos significativo.
O Teixeira que o ouviu, incomodou-se; e receou talvez o agouro daquela dúvida. Entretanto ele acabava de conversar com o amigo; e embora na sua qualidade de médico calcasse na cicatriz dessa alma para conhecer se doía-se ainda do golpe, não descobriu perplexidade no espírito de Hermano. A sua resolução era firme e calma; tinha sido friamente meditada, não provinha de um assomo de momento.
No dia seguinte começaram os preparos do casamento, que por parte de Amália já estavam adiantados. Desde a apresentação de Hermano em sua casa D. Felícia. vira nele o marido que tanto desejava para a filha e por isso a pretexto de arranjos de viagem, o que ela tinha encomendado às costureiras e modistas era um rico enxoval de noiva, já quase pronto.
Por parte do noivo também não havia muito que fazer. A casa estava pronta; e não faltava senão a pintura, pois ainda conservava a primitiva que recebera por ocasião do primeiro casamento. Isso e a substituição dos móveis era negócio para um mês.
Amália acompanhou de longe e com indiferença esses pormenores domésticos, que têm geralmente um especial encanto para os noivos, como primícias que são da vida conjugal, e flores de uma primavera casta e serena.
A moça tinha outra preocupação mais séria que absorvia a sua solicitude. Observava o noivo e estudava a sua alma, atenta ao menor sintoma de desfalecimento que porventura se manifestasse na sua resolução O que ela temia sobretudo era um erro fatal.
— Se depois de unidos para sempre a sua alma separar-se de mim, eu serei um obstáculo, um tormento para sua existência. Longe, nunca mais deixará de amar-me; entretanto como meu marido, pode até odiar-me.
Esta reflexão íntima revela o que se passava em Amália. O seu tempo de noiva, que para as outras é o idílio suave de um amor partilhado, para ela foi todo cheio de inquietações, de sustos e de graves pensamentos.
Ela velava sobre o seu futuro guardando-se para mais tarde gozar sem receios de sua felicidade, se Deus a abençoasse.
Poucos dias antes da época marcada para o casamento, D. Felícia. a pedido do noivo fez com a filha uma visita à casa que já se achava preparada. Nessa ocasião Amália foi assaltada por uma idéia que ainda não lhe tinha ocorrido, e que a fez estremecer.
A mãe falara do seu toucador e quarto de dormir. Estas palavras desenharam em seu espírito pela primeira vez a realidade doméstica de sua futura posição naquela casa. Ela vinha substituir outra mulher que ali fora dona e senhora antes dela.
Seus aposentos seriam os mesmos aposentos de Julieta, fechados desde a morte desta e respeitados durante cinco anos como um santuário?.
E teria ela, Amália, a coragem de profaná-los como o fizera uma dessas mulheres, que não conhecem a santidade da família?.