Encarnação (José de Alencar)/XVII
Era tarde quando Amália acordou Deitada ainda e envolta nas alvuras de suas roupas de linho, entrou a olhar amorosamente os objetos que a cercavam, os móveis, as decorações da parede, as árvores do jardim que ensombravam as janelas.
Tinha saudades deste sonhado ninho de seu amor, onde, se não havia achado a ventura, fruira tão doces momentos de enlevo conversando com seu Hermano.
E agora era preciso e com eles as ilusões de uma de que lhe fugira quando a supunha segura. Sua esperança despedia-se de todos estes companheiros de solidão, que lhe haviam sorriso nos primeiros dias.
Hermano desde muito cedo andava na chácara. Ao entrar em casa viu a mulher sentada na sala, a cismar. Ela revolvia as dolorosas impressões da véspera, para fortalecer-se em sua primeira resolução.
Vendo o mando que parara indeciso, enviou-lhe o seu melancólico e resignado sorriso.
Hermano aproximouse então e disse-lhe impetuosamente com uma voz sufocada:
— Sou um miserável, Amália; sacrifiqueia-a indignamente. Amei com paixão, jurei fazer a sua felicidade, que era a minha, uni o meu ar, seu destino: e eu não me pertencia, não era livre, não podia dispor de mim! Sou um miserável!.. Trai a minha primeira mulher, e à segunda enganei!....
— Não me enganou, Hermano; afaste semelhante idéia. Eu sabia o que se passava em seu espírito e previ o que veio acontecer. Se alguém errou, fui eu que me iludi numa esperança falaz, mas tão grata. que ainda me deixaria enlevar por ela se fosse possível.
— Sabia, Amália?... Mas por que não me repeliu? E eu, cego que estava, roubei-lhe a felicidade, a existência inteira!
— Tinha esse direito. Ela lhe pertencia.
Hermano afastou-se arrebatadamente com um gesto de desespero Amália foi a ele com o pensamento de acalmar essa agitação e de convencê-lo da necessidade de uma separação que aplacada os seus escrúpulos, e pouparia a ela novos e cruéis martírios.
O marido, porém, voltara para dizer-lhe:
— Não se aflija, Amália!.. Cometi uma perfídia, mas não passou de uma alucinação!... A minha honra e a minha lealdade não me abandonaram ainda e espero em Deus que não me hão de desamparar nua cá. Juro restituir-lhe intata a sua liberdade que eu tive a desgraça de comprometer. Resigne-se por alguns dias a este constrangimento. Ele cessará, deixando-a outra vez senhora de si.
— É sobre isto mesmo que desejava falar-lhe, Hermano. Refleti, penso que uma separação é necessária para o sossego de ambos. De vemos porém fazê-la de modo que não nos fique mal. O meio é que eu não sei. Se fosse possível!... Lembrei-me que na Europa, com a viagens, ninguém suspeitada, nem mesmo mamãe.
— Oh! ninguém suspeitará! . Terei o cuidado de ocultar! Tomarão por um incidente um acaso!
Hermano, preferindo estas palavras com um tom equívoco e um sorriso pungente, deixou a moça entregue a suas tristes reflexões.
A princípio ela não penetrou o verdadeiro sentido daquela resposta do mando. Pensou que ele se referia apenas ao pretexto da separação prometendo achar um que poupasse desgosto à família e não desse azar à maledicência.
Mas aquele estranho sorriso, e a qualificação de acidente dada pelo marido ao fato que devia desligá-los, lançou em seu espírito uma dúvida cruel. Que pretendia ele fazer então, simuladamente, para que os outro o atribuíssem a uma casualidade?....
Amália ergueu-se, trêmula de horror. Adivinhara! Hermano tinha resolvido matar-se. Era essa a significação daquele juramento que fizer de restituir-lhe a liberdade Para não expor a reputação dela, de sua esposa, é que prometia levar a efeito o plano sinistro de modo que ninguém desconfiasse do suicídio.
Ansiosa buscou o marido; mas este se havia recolhido ao gabinete onde ela não animou a entrar.
Imagine-se o que devia sofrer, pensando que naquele mesmo instante em que tremia atenta ao menor rumor, ele, Hermano, talvez carregava o revólver, armava-o e... despedaçava a cabeça com um tiro!
Nessa aflição foi ate a porta do gabinete para escutar, e volveu mais tranqüila lembrando-se de que o marido lhe falara em uma demora de alguns dias. Tornou, porém, assaltada de novos terrores, e chegou a bater.
Hermano abriu. Encontrando Amália, saiu. fechou vivamente a porta sobre si, e dirigiu-se com a moça para a sala próxima. Sua expressão era calma e natural; ninguém diria que ele ocultava um desígnio funesto.
Essa placidez aquietou a agitação da moça que para não toldar novamente o animo do marido absteve-se de revelar o seu terror. Hermano como se nada houvesse ocorrido entre ambos, passou a conversar acerca de coisas indiferentes, lembrando à mulher vários divertimentos, que ela recusou.
Na continuação da conversa, Amália confiada nessa tranqüilidade, e querendo de uma vez acabar com a sua inquietação, perguntou ao marido de que meio se tinha lembrado para realizar a separação.
— O meio? disse ele. Só há um, Amália.
— Qual?.
— A morte.
— Então, é verdade, quer matar-se? exclamou a moça com desespero, e travando das mãos do marido, como para retê-lo junto a si.
— Já sou um morto Metade do meu ser há cinco anos desceu à sepultura. A outra metade que ficou neste mundo, para expiação de suas culpas, não teria perturbado a sua felicidade, se estivesse reunida àquela e restituída ao pó.
— Mas eu não quero que morra, Hermano! Deu-me sua vida; ela me pertence; a mim também.
— Não a podia dar, Amália! Não lhe confessei já que sou indigno, que a enganei?.
— Pois bem! Esta união é nula; não existe. Mas a culpa é toda minha: carregarei com ela. Direi a minha mãe que arrependi-me, que não tinha propensão para o casamento, que não sei fazer a felicidade de meu marido... Direi o que for preciso, contanto que viva, Hermano!
— Para quê, Amália, se a amo, e não posso e não devo amá-la! respondeu o marido.
— Também eu o amo; mas não penso em matar-me!
Hermano sorriu:
— Não preciso matar-me; basta morrer.
— Jura-me que não atentará contra sua vida?.
— Já disse, Amália. Não careço do suicídio. Para que soprar a luz, se ela apaga-se por si?.
·— Mas dê-me sempre esse juramento para sossegar o meu coração.
— Juro.
— Por ela?... Por Julieta?.
— Sim.
Estas cenas abalaram profundamente o espírito de Amália. que abandonou a idéia de separar-se do mando, naquelas circunstâncias, deixando-o sob a influência de tão sinistros pensamentos. Apesar da confiança de Hermano, o juramento deste não lhe dissipara as apreenções. Não suspeitava um ardil; mas temia uma fatalidade.
Até ali, o recato tão natural em uma noiva, e ainda aumentado pela reserva do mando, lhe tolhia a liberdade na própria casa em que devia ser dona. Nunca se animara a penetrar no aposento de Hermano nem se lembrara disso.
Agora, porém, sua posição. Tinha o dever de guardar e defender a vida do marido; e para isso carecia de toda sua vigilância e solicitude. Era mais que tempo de assumir a sua autoridade doméstica sem a qual não poderia isentar-se da grave responsabilidade de esposa.
Assim, quando no dia seguinte Hermano foi à cidade, ela depois de haver obtido dele a promessa de voltar cedo e de o ter acompanhado com os olhos até perdê-lo de vista, saiu da janela resolvida a ensaiar o seu papel de dona de casa.
Abreu, conforme o costume, acabava de arranjar o aposento do amo, e ia sair fechando a porta para guardar a chave no bolso, quando Amália entrou. Passado o seu espanto, o velho decidiu-se a ficar de guarda à moça, que se sentara em uma cadeira de balanço.
Esse intento, porém, frustrou-se.
— Pode retirar-se, Abreu, disse a senhora com um tom brando, mas firme.
O ex-furriel estremeceu, como se outrora o seu capitão lhe desse uma ordem contrária ao detalhe;' e ficou imóvel.
— Não ouviu?.
Aquela interrogação e o olhar que a acompanhara, expulsaram o criado do gabinete. Ficando só, Amália fechou-se por dentro e começou a sua investigação.. Temia que o marido tivesse armas ocultas ou veneno. O que achou foram algumas chaves de aço, dourado, enfiadas em um aro de prata.
Adivinhou de que aposentos eram estas chaves, e abrindo com uma delas a porta de comunicação, passou ao toucador de Julieta. As janelas cerradas deixavam o interior em um tênue crepúsculo.
Ao dar o primeiro passo, Amália recuou e presa de súbita vertigem, cairia, se as mãos não agarrassem convulsivamente as cortinas da poda.
Instantes depois, recolhendo-se precipitadamente ao seu quarto a moça caia de joelhos, banhada em lágrimas e murmurando:
— Louco!.. Louco, meu Deus!....