Encarnação (José de Alencar)/XVIII
Entrando no toucador de Julieta, escassamente alumiado pela claridade que filtrava entre as laminas das rótulas, Amália tinha visto, ali sentada junto à mesa de charão, tal como lhe aparecera três meses antes a desconhecida.
Fora o abalo dessa visão que lhe causara a vertigem. Tomando a si, ainda a viu no mesmo lugar, impassível. Encheu-se de indignação e adiantou-se para expulsar de sua casa aquela indigna.
Apesar do estrépito dos móveis arrastados, a desconhecida permaneça imóvel.
Amália travou-lhe do pulso, e achou-o gelado. Era então um cadáver que tinha diante dos olhos? Não; apesar do horror que a invadiu, pôde afina conhecer a verdade.
Era uma figura de cera.
Atônita com esta descoberta, a moça lembrou-se da vez que avistara a desconhecida recostada no sofá; e correndo ao quarto de dormir lá encontrou-a no mesmo lugar, coberta com um véu de seda.
Era outra figura de cera representando a mesma mulher com a única diferença da posição. Não podendo imprimir movimento à estátua, o artista o tinha suprido com a mudança da atitude e do gesto.
Qual era, porém, essa mulher assim reproduzida? Amália não duvidava um instante que fosse Julieta, embora as figuras não no espírito a lembrança vaga que tinha da primeira esposa de Hermano.
Mas o retrato de Julieta ali estava, suspenso à parede do toucador, em um grande quadro a óleo, que representava a moca em corpo inteiro. Pela data via-se que fora tirado um ano depois de seu casamento.
Entre a estátua e o retrato havia muita afinidade de expressão; mas nos traços e contornos das feições, a diferença era sensível. Poderiam ser duas irmãs; não eram, porem, a mesma pessoa.
Hermano amara então outra mulher depois de Julieta? Amália repelia essa conjetura, que repugnava com o culto do mando pela esposa a quem primeiro se ligara.
A caixa de carvalho com preparos de flores artificiais, tinha embutido na tampa o nome de Julieta. O lenço e as roupas das figuras de cera estavam marcadas com três iniciais J. S. A.; e da mesma forma o livro que Hermano lia à noite, um volume de Spirite de Teófilo Gautier.
A perturbação que a descoberta de tais particularidades lançou no espírito de Amália, cresceu com a leitura salteada de alguns trechos daquela obra fantástica. Uma luz sinistra, como a do relâmpago, feriu c seu pensamento; compreendia enfim!
O amor de Hermano era uma demência. Não fora uma mulher que ele havia adorado, e adorava ainda; mas um fantasma, um ente de sua imaginação. Esse ideal, ele tinha encarnado em Julieta, desde o primeiro momento em que a vira.
Por que misteriosa relação se havia operado essa transfusão, ninguém o poderia explicar, senão por uma afinidade moral.
Morta Julieta, o ideal se tornara outra vez fantasia ou sonho, até que pela mesma ignora afinidade se encarnara de novo na imagem de painel do Veroneso, Ester ou Suzana, como dissera o Teixeira, referindo a visita ao Louvre.
Estas figuras, pensava Amália, são a cópia daquela imagem, a que Hermano dera o nome de Julieta por ser o da primeira encarnação viva de seu ideal. Mas elas não tinham nada de comum com a morta senão essa misteriosa relação, que transparecia em uns longes da fisionomia .
Julieta não era formosa; e toda a sua graça estava unicamente m expressão. A mulher reproduzida em cera era uma beleza estatuária que ofuscava inteiramente o retrato. Como pois tinha Hermano identificado essas duas imagens tão diversas?.
Este fenômeno só podia explicar-se por um modo. Hermano não idolatrava a forma, embora a admirasse quando ela realizava a sua imaginação . O que ele amava era uma larva, um espírito, um duende de beleza imaterial, que transportara a principio para uma mulher, depois para urna imagem e afinal para uma estátua.
Estes pensamentos trabalhavam na mente de Amália, quando recolhida a seu toucador, e atirada em uma poltrona baixa, ela cogitava sobre a cruel revelação que se fizera em sua consciência.
—Achou em mim alguma coisa que recordou Julieta ou antes t seu ideal. Foi minha voz cantando a ária da Lucia que o atraiu; mas falta-me esse encanto, essa fascinação misteriosa que um momento supôs encontrar.
Lançando um olhar ao espelho, onde se refletiam as suas forma esplêndidas, ela suspirou:
— De que vale minha beleza? Ele não a vê, não a percebe. Julieta não era bonita: seu retrato está muito parecido; agora recordo-me bem dela, de quando passeava no jardim. Entretanto ele a amou. Eu podia ser feia e muito feia; que também me amaria se eu fosse a mulher que ele criou sua imaginação.
Mas por que não seda ela sua mulher?.
Seu amor cheio de abnegação inspirou-lhe então uma resolução generosa. Sua existência, que já não tinha sedução nem fim ela a dedicada à felicidade do homem a quem amava. Adivinhara o segredo dessa criação ideal da mente enferma de Hermano, e a realizaria em si.
Deus lhe daria forças para operar essa nova encarnação. Dominando então o espírito do mando, o restituiria à razão, ao mundo, ao verdadeiro amor; e seriam felizes.
Para isso era preciso, ela bem o compreendia, fazer um sacrifício de sua personalidade; sacrifício doloroso para as almas superiores, que têm uma individualidade, e que não podem a exemplo das outras almas de estalão, despir o seu eu, e receber como a cera o molde da vulgaridade.
Ser outro, negar-se a si mesmo, suprimir-se moralmente, não se pode imaginar mais terrível suplício para uma consciência altiva; e foi a este que Amália se condenou no intento de salvar o marido ou perder-se com ele.
Decerto, naquela moça travessa, risonha, incrédula e leviana, que antes enchia de sua alegria as salas e os divertimentos, ninguém pensara encontrar um ano depois a mulher dominada pela paixão mais sublime, e capaz de um heroísmo de amor raro na vida ordinária.
Semelhante aberração não era senão aparente. Ai nesse contraste manifestava-se o efeito de uma evolução psicológica muito natural. A insensibilidade de Amália fora apenas a infância prolongada de uma alma extremosa que só muito tarde conheceu a paixão.
Em vez de gastar-se nos ensaios precoces de amor, com que as meninas antecipam a adolescência, exaltando os perfumes de sua flor, Amália preservara o coração dessa babugem e quando amou foi com todas as energias e arrojos da mulher.
Este romance de Amália, a incompreensível encarnação do delírio de um cérebro enfermo, essa admirável intuição, é que me propus contar; e agora sinto que não o conseguirei.
Como descrever a paciente eliminação de uma ama a despojar-se de sua individualidade para infundir em si o ser imaginário, filho de uma alucinação?.
Hermano voltara da cidade Encontrando-se com ele à hora do jantar, Amália notou a sua expressão esquiva e o olhar suspeitoso que lhe perscrutava a fisionomia. O Abreu sem dúvida contara que ela estivera no gabinete; e o marido receava-se dos efeitos dessa investigação.
O modo expansivo e natural com que o tratou a mulher, foi dissipando as suspeitas de Hermano, que por vezes mostrou um contentamento sincero.
Quando se levantaram da mesa, Amália, disse ao marido com meiguice:
— Eu tinha tanta vontade de conhecer Julieta!
Hermano disfarçou por delicadeza; mas insistindo a mulher e reiterando perguntas sobre as feições de Julieta, ele foi ao gabinete donde voltou com uma fotografia colorida. Era a mesma imagem do retrato a óleo.
— Como e bonita! exclamou Amália com um entusiasmo que o seu amor a obrigava a simular.
— Isso é apenas a sombra de sua beleza. Falta-lhe o olhar, o gesto, a voz.
— De que cor eram os olhos?.
— A cor... Não sei: mas o olhar ainda o sinto: era como o seu agora, Amália.
A moça corou e as pálpebras rosadas vendaram os seus belos olhos cheios de luz.
Continuaram a conversar acerca de Julieta.
Mais tarde Hermano ficou distraído, absorto. Amália sabia agora o motivo Eram os sintomas da alucinação que, em certa horas e ocasiões, desvairava o espírito do marido.
A moça foi sentar-se ao piano e abriu a ária do Fausto Hermano lhe dissera um momento antes que era uma das peças favoritas de Julieta.
Ela cantou: e o marido que já se tinha retirado, veio sentar-se outra vez a seu lado, e ficou ali preso a sua voz.
À última nota ele estremeceu e partiu. Esse canto era de Julieta que o chamava.
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