Encher tempo/IX

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A noite seguinte foi de amargura para Lulu, que ouviu ao primo dizer baixinho ao filho de D. Emiliana:

— Preciso falar-lhe.

— Pronto.

— A sós.

— Quando quiser.

— Esta mesma noite.

Pedro fez um gesto de assentimento.

O tom da voz de Alexandre não revelava cólera; todavia, como ele dizia gravemente as coisas mais simples, Lulu estremeceu ao ouvir aquele curto diálogo e teve medo. Que haveria entre os dois logo que dali saíssem? Receosa de algum ato de vingança, a moça tratou nessa noite o primo com tamanha afabilidade que as esperanças do Padre Sá renasceram, e Pedro cuidou ter perdidas todas as que ele tinha. Ela tentou prolongar a visita dos dois; mas reconheceu que era inútil o meio e que, uma vez saídos dali, qualquer que fosse a hora, podia dar-se o que ela receava.

Teve outra idéia. Saiu repentinamente da sala e foi direto a tia Mônica.

— Tia Mônica, disse a moça; venho pedir-lhe um grande favor.

— Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.

— Quando meu primo sair daqui com o senhor Pedro você vai acompanhá-los.

— Jesus! Para que?

— Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por socorro se houver algum perigo.

— Mas...

— Por alma de minha mãe, suplicou Lulu.

— Mas não sei...

Lulu não ouviu o resto; correu à sala. Os dois rapazes, já de pé, faziam as suas despedidas ao padre e despediram-se dela até ao dia seguinte; este dia seguinte ecoou funebremente no espírito da moça.

Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada compreendendo daquilo, e entretanto, cheia do desejo de obedecer à vontade de sinhá moça.

O Padre Sá estava mais jovial do que nunca. Logo que ficou a sós com a sobrinha, disse-lhe dois gracejos paternais, que ela ouviu com um sorriso à flor dos lábios; e o serão acabou logo depois.

Lulu recolheu-se ao quarto, sabe Deus e imagina o leitor com que medos no coração. Ajoelhou diante de uma imagem da Virgem e orou fervorosamente... por Pedro? Não, por um e outro, pela vida e paz dos dois moços. O que não se sabe é se pediu alguma coisa mais. Provavelmente, não; o maior perigo naquela ocasião era aquele.

A oração pacificou-lhe a alma; recurso poderoso que só conhecem as almas crentes e os corações devotos. Aquietada, esperou a volta de tia Mônica. As horas, entretanto, correram lentas, e desesperadoras. A moça não saiu da janela salvo duas ou três vezes para vir de novo ajoelhar-se diante da imagem. Meia-noite bateu e começou a primeira hora do dia seguinte sem que o vulto da boa preta aparecesse ou o som de seus passos interrompesse o silêncio da noite.

O coração da moça não pôde resistir mais; as lágrimas brotaram dela ardentes, precipitadas e ela atirou-se à cama toda entregue ao seu desespero. Sua imaginação pintava-lhe os quadros mais tristes; e pela primeira vez sentiu ela toda a intensidade do novo sentimento que a dominava.

Era uma hora, quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras da rua. Lulu adivinhou o passo da tia Mônica; foi à janela; um vulto aproximava-se da porta, parou, abriu cautelosamente com a chave que levava e entrou. A moça respirou, mas à primeira incerteza sucedia uma segunda. Era muito ver a preta de volta; restava saber o que acontecera.

Tia Mônica subiu as escadas, e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora esperar ali.

— Então? perguntou esta.

A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o quarto da moça.

— Ah! sinhá Lulu, que noite! exclamou tia Mônica.

— Mas diga, diga, que aconteceu?

A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada, e velha, e quase mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era exigir muito da pobre Mônica, que além da idade, tinha o sestro de narrar pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da conversação. Gastou, portanto, a tia Mônica dez compridíssimos minutos em dizer que nada ouvira aos dois rapazes desde que dali saíra; que os acompanhara até ao Largo da Imperatriz e subira com eles até a um terço da ladeira do Livramento, onde morava Alexandre, em cuja casa ambos entraram e se fecharam por dentro. Ali ficou, do lado de fora, cerca de meia hora; mas não os vendo sair, perdeu as esperanças e voltou para a Gamboa.

— Fui e vim com o credo na boca, terminou tia Mônica; e dou graças à Virgem Santíssima por me ver aqui sã e salva.

Pouco sabia a moça; ainda assim aquietou-se-lhe o espírito. Tia Mônica era um tanto curiosa, e em prêmio do seu trabalho achou natural saber a razão daquela excursão noturna.

— Oh! não me pergunte nada, tia Mônica! respondeu Lulu; amanhã lhe direi tudo.

— Já sei mais ou menos o que é, disse a preta; negócio de paixãozinha de moça. Não faz mal; eu adivinhei tudo...

— Tudo? perguntou maquinalmente a sobrinha do Padre Sá.

— Há muito tempo; continuou tia Mônica; há seis meses.

— Ah!

— Seu primo de vosmecê...

— Oh! cale-se!

— Está bom, não digo mais nada. Só lhe digo que espere em Nossa Senhora, que é boa mãe e há de fazê-la feliz.

— Deus a ouça!

— Agora sua preta velha vai dormir...

— Vá, tia Mônica; Deus lhe pague!

Neste momento, ouviu-se no corredor o ruído de uns passos que se afastavam cautelosamente.

— Que foi? disse Lulu.

— Não sei... Abrenúncio! Ouviu alguma coisa?

A moça foi resolutamente à porta, abriu-a; o corredor estava escuro. Tia Mônica saiu com a vela e não viu nada. Deram-se as boas noites; a moça voltou ao seu leito, onde, sobre a madrugada, conseguiu enfim dormir. Tia Mônica dormiu logo o sono dos anjos, ia eu dizer, e o digo porque ela foi verdadeira angélica naquela aventurosa noite.