Encher tempo/VII
Lulu notou a esquivança do primo e a frieza que lhe mostrava. Certo é que nunca lhe achara a expansão, nem a ternura, que era natural exigir de um namorado. Alexandre era sóbrio de palavras e seco de sentimentos. Os olhos com que a via eram sérios, sem flama, sem viveza — “olhos de imagem”, dizia-lhe ela um dia gracejando. Mas se ele fora sempre assim, agora parecia mais frio do que nunca, e a moça procurou saber a causa daquela agravação de impassibilidade.
— Ciúmes, pensou ela.
Ciúmes de Pedro, devia dizer; mas nem ela nem a leitora precisam de nada mais para completar o pensamento. De quem seriam os ciúmes senão daquele rapaz, que se mostrava assíduo, afável, dedicado, que a tratava com esmero e afeição?
A moça riu da descoberta.
— Um quase padre! exclamou ela.
Daí a poucos dias, o Padre Sá disse ao filho de D. Emiliana que os seus negócios iam perfeitamente e que dentro de pouco tempo devia dizer adeus a quaisquer ocupações estranhas aos preparatórios eclesiásticos.
— Faça exame de consciência, disse a moça, que estava presente à conversa dos dois; e prepare-se para...
— Para casar? perguntou sorrindo o tio.
Lulu corou ouvindo aquelas palavras. Sua idéia não era casamento; era um gracejo fúnebre e tão descabido que a frase lhe morrera nos lábios. O que ela queria dizer era que Pedro se preparasse para rezar-lhe o responso. A interrupção do tio desviou-lhe o pensamento do gracejo para dirigi-lo ao primo. Corou, como disse, e refletiu um instante.
— Oh! se ele me amasse com o mesmo ardor com que este ama a Igreja! pensou ela.
Depois:
— Falemos de coisas sérias, continuou ela em voz alta. Desejo vê-lo em breve cantar uma missa ao lado de titio.
Na noite desse mesmo dia, Alexandre foi à casa do Padre Sá. Ia preocupado e pouco se demorou. O tio notou-lhe a diferença e ficou apreensivo. Conjecturou mil coisas para aquela mudança do sobrinho, sem atinar qual delas era a verdadeira. Lulu ficou igualmente triste; não digo bem, havia tristeza, mas havia outra coisa também, havia despeito; e menos o amor do que o amor-próprio começava a sentir-se ofendido.
Pedro aproveitou a primeira ocasião em que o padre saiu da sala para lhe perguntar o motivo daquela súbita melancolia.
A moça estremeceu como se acordasse sobressaltada de um sono.
— Não ouvi, murmurou ela.
— Perguntava-lhe por que motivo ficou assim pensativa.
— Um capricho, respondeu a moça.
— Um capricho satisfaz-se.
— Nem todos.
— Quase todos. Não pede decerto a lua?
— A lua... não, respondeu ela procurando sorrir e esquecer; mas alguma coisa que tem relação com ela.
— Diga o que é.
— Estava desejando... que o senhor ficasse esta noite ali fora a contemplar a lua e a fazer-lhe versos, disse ela rindo. Nunca fez versos?
— Um hexâmetro apenas.
— Não sei o que é; mas não importa. Era capaz disso?
— Suprima os versos e a coisa é fácil, respondeu Pedro sorrindo.
— Fácil! exclamou Lulu.
E depois de alguns instantes de silêncio:
Não era bem isso que eu desejava, continuou ela; mas alguma coisa análoga, algum sacrifício... tolice de moça...
Lulu ergueu-se e foi à janela para disfarçar a comoção. Pedro deixou-se ficar na cadeira. Daí a pouco, ouviram-se os passos do Padre Sá; o moço pegou num livro, abriu-o ao acaso e entrou a ler. A tristeza de Lulu foi observada pelo tio, que assentou de si para si convidar o sobrinho a uma conferência, resoluto a conhecer o estado das coisas.
— Amam-se, não há dúvida, pensava o velho; mas há alguma coisa, decerto, que não posso descobrir. É necessário sabê-lo.
Pedro demorou-se em casa do padre até depois de nove horas. A moça presidiu ao chá com a graça habitual, e um pouco mais livre das comoções daquela noite. Acabado o chá, Pedro despediu-se do velho sacerdote e da sobrinha. A moça acompanhou-o até à porta do gabinete, enquanto o tio preparava o tabuleiro das damas para a partida de costume.
— Boa noite, disse Lulu apertando a mão ao filho de D. Emiliana.
— Boa noite, respondeu ele.
E mais baixo:
— Verá hoje mesmo que lhe satisfaço o capricho.
Lulu ficou estupefata ao ouvir aquelas palavras; mas não pôde pedir maior explicação, não só porque o tio ficava a poucos passos, como porque o moço só lhe dera tempo de ouvi-lo; saíra imediatamente.
A partida de damas foi aborrecida e não durou muito. Ambos os contendores estavam preocupados de coisas sérias. Às nove e meia, despediram-se para ir dormir.
— Vê se o sono te dá melhor aspecto, disse o Padre Sá dando a mão a beijar à sobrinha.
— Estou hoje mais feia que de costume?
— Não; mais triste.
— Não é tristeza, é cansaço, respondeu a moça; dormi pouco a noite passada.
Despediram-se.
Lulu, apenas entrou no quarto, correu à janela; fê-lo com a curiosidade vaga de saber se o filho de D. Emiliana realizara a promessa de satisfazer-lhe o capricho. A praia estava deserta.
— Naturalmente! disse ela consigo. Para obedecer a uma tolice minha era necessário cometer tolice maior.
Lulu entrou, destoucou-se, deixou os vestidos, envolveu-se em um roupão e sentou-se ao pé da janela. Ali ficou cerca de meia hora absorvida em seus pensamentos; a figura de Alexandre flutuava-lhe no espírito, confundindo-se às vezes com a de Pedro. Ela comparava a assiduidade de um com a frieza do outro; frieza que ela atribuía ora a um sentimento de ciúme, ora ao amortecimento da antiga afeição. Esta mesma afeição a moça entrou a analisá-la, a estudá-la no passado sem lhe achar intensidade igual à sua. Nunca duvidara do amor de Alexandre; mas agora que o dissecava reconhecia que era um amor grave e refletido demais, sem aquela exuberância própria da mocidade e do coração.
Lulu não reparava que esta mesma segurança de vista com que apreciava o estado do coração do primo era prova de que o seu estava menos alienado pela paixão. O que ela de todo ignorava era que aquele primeiro afeto, nascido do costume, nutrido da convivência, era menos espontâneo e irresistível do que parecia. Suas alegrias e tristezas não vinham das raízes do coração, não lhe estremeciam a alma, nem a cobriam de luto.
Nisto não pensava ela; mas começou-o a sentir naquela noite, e pela primeira vez o coração pediu alguma coisa mais do que um afeto mal sentido e mal correspondido.
No meio dessas sensações vagas, sonhos indecisos, aspirações e ânsias sem objeto, ergueu-se a moça disposta a recolher-se. Ia cerrar as venezianas da janela, quando viu um vulto na praia, a passear lentamente, parando às vezes de costas para o mar. Apesar da lua, que então começava a surgir brilhante e clara, Lulu não pôde conhecer quem era, todavia as palavras de Pedro estavam-lhe na memória. Afirmou a vista; e o talhe e o andar pareceram-lhe do moço. Seria ele? A idéia era tão extravagante que a moça repeliu-a imediatamente; esperou algum tempo à janela. Quinze minutos decorreram sem que o vulto, quem quer que fosse, se retirasse dali. Tudo parecia dizer que era o filho de D. Emiliana; contudo, a moça quis prolongar a experiência; fechou a janela e retirou-se.
Meia hora decorreu — meia hora de relógio, mas uma eternidade para a alma curiosa da moça, lisonjeada com aquele ato do rapaz, lastimando e desejando o sacrifício.
— Impossível! dizia ela. É impossível que uma brincadeira... Mas aquela é a figura dele; e demais quem viria colocar-se ali, a esta hora, a passear solitário...
Lulu abriu de novo a janela; o vulto lá estava, desta vez sentado em uma pedra, fumando um charuto. Logo que ela abriu a janela, o vulto, que parecia olhar para lá, ergueu-se e entrou a passear de novo, com o mesmo passo tranqüilo de um homem disposto a velar a noite na praia. Há de ser por força um passo diferente dos outros; pelo menos, assim o achou a sobrinha do Padre Sá.
A certeza de que era o filho de D. Emiliana produziu no espírito da moça uma revolução. Que razão havia para aquele sacrifício, sacrifício incontestável, tão ridículo havia de parecer aos olhos dos outros, sacrifício solitário e estéril? Lulu acostumara-se a ver no moço um futuro padre, um homem que ia romper com todas as paixões terrenas, e surgia-lhe, quando menos esperava, uma figura de novela antiga, cumpridor exato de uma promessa fútil, obediente a um capricho manifestado por ela em uma hora de despeito.
Lulu fechou de novo a janela e dispôs-se a dormir; fê-lo por pena do rapaz; uma vez fechada a casa, era provável que o seu fiel cavalheiro se fosse deitar também, apesar do calor que fazia e da vantagem que há em passear à lua numa cálida noite de fevereiro. Foi esta a esperança; mas nem por isso a moça dormiu logo. A aventura espertara-a. Contudo, não se atreveu a erguer-se de novo, com medo de animar o sacrifício do moço.
Dormiu.
O sono não foi seguido nem tranqüilo; ela acordou dez vezes; dez vezes reconciliou o sono a muito custo. Sobre a madrugada, ergueu-se e foi à janela. Não a abriu: enfiou os olhos por uma fresta. O vulto lá estava na praia sentado, a fumar, com a cabeça nas mãos como a ampará-la de pesada que havia de estar com a longa vigília.
A leitora poderia achar extravagante a ação do rapaz, mas estou convencido de que não conseguiria mais reconciliar o sono.
Foi o que aconteceu à sobrinha do Padre Sá.