Esboço biográfico do conselheiro José Maria Velho da Silva/4
Corriam os dias de 1831, e com elles ia melhorando o estado de saude de José Maria Velho da Silva; de sorte que
em fins do mesmo anno já podia entregar-se ás suas tarefas de gabinete.
Não tardou muito tempo a ser chamado á vida activa; porque tendo-se resolvido a liquidação do primitivo banco do Brasil, em 1832, foi o nosso consocio eleito espontaneamente pela assemblèa geral dos accionistas, membro da commissão de liquidação, e nomeado presidente da mesma: em cujo cargo se lhe offereceu o ensejo de mostrar os conhecimentos especiaes que possuia sobre a matéria, e ao mesmo tempo a energia do seu caracter que tudo arrostava quando tratava-se de direitos adquiridos.
Immensas difficuldades tinham que superar tanto elle como os seus collegas; todas, porém, foram vencidas conseguindo era prol dos accionistas as maiores vantagens possiveis.
Uma das qualidades mais proeminentes do nosso modesto consocio era a energia e a severidade do seu caracter em todos os lances, quer publicos quer privados da sua vida, quando estava convencido de que militava a razão em favor das suas acções ou dos seus pensamentos.
A mencionada commissão liquidadora durou muitos annos, e só separou-se d'ella José Maria Velho da Silva, quando foi chamado em 1846 por S. M. o Imperador o Senhor D. Pedro II, felizmente reinante, para occupar o cargo de mordomo da imperial casa. Sendo na supramencionada época de pouco momento e de quasi nenhuma demora o que ficava a fazer -—pois que o mais importante tinha-se já conseguido, e não podendo continuar na commissão liquidadora pelas razões allegadas, convocou José Maria Velho da Silva, então já conselheiro, a assemblèa geral dos accionistas do banco com o fim de pedir a sua exoneração.
Obteve-a, e juntamente com ella uma manifestação espontaneae summamente honrosa da parte da assembléa geral, pelos importantes serviços que fizera na commissão de que elle era presidente.
« A gloria de ter obrado bem é o premio dos generosos » diz Plutarco; e de facto, é o unico galardão dos homens justos: não padece dúvida que o finado conselheiro Velho da Silva saboreou este prazer depois de terminada a sua commissão.
Voltemos sobre as nossas pégadas, e vejamos o que lhe aconteceu durante a minoridade do nosso monarcha.
Releve-se-me que repita ainda uma vez mais as memoraveis palavras de Agis: «admirandus est is qui semper, non qui quotannis est justus » porque digno d'ellas é o nosso finado amigo e consocio.
A lealdade do seu procedimento para com o primeiro imperador o collocou n'uma esphera mui elevada perante os seus concidadãos; de sorte que não é para estranhar que o vejamos no futuro exercer altas e honrosas funcções no paço do seu joven monarcha.
Senhores, seja-me permittido dizer-vos, sem offensa da verdade, que nos palacios reaesé tão difficil preservar-se da ogeriza dos seus contemporaneos, como arduo é o empenho de tirar a mão illesa d'um espinhoso sarçal, onde em vez d'encontrar um ninho de colibris, topamos com um cortiço de abelhas.
Muitas qualidades são necessarias para não desagradar n'esses altos salões, e um só defeito basta para perder o prestigio de que goza o aulico entre seus companheiros.
Um grande tino, uma completa abnegação, uma requintada prudencia, um absoluto predominio sobre si mesmo, uma fidalguia reservada, um conhecimento minucioso da etiqueta e do ceremonial, um silencio eloquente, uma verbosidadede meias palavras, uma continuada lembrança das funcções que se exercem, uma franqueza trajada de dignidade, um ar modesto sem affeclação, uma exactidão de chronometro, um rosto semelhante a um espelho onde reverberam todos os affectos do animo alheio, um querer sem vontade, e uma vontade inerte são entre outros os dotes principaes d'um cortezão,
O que n'um homem particular è uma virtude, seria tal vez n'um palaciano um vicio.
Se accrescentarmos ao que fica dito que as casas dos reis menores são mais expostas para seus criados do que as dos verdadeiros reinantes, formareis uma idéa aproximativa da rectidão do caracter de José Maria Velho da Silva, que viveu por muitos annos nas antesalas dos paços e mereceu antes e depois da sua morte a epigraphe « maximus « est, qui justissimus et modestissimus. »
O marquez de Itanhaem, então tutor, reconhecendo os merecimentos, a lealdade, o zelo e as acrisoladas virtudes e solida intelligencia do fidalgo-cavalleiro do primeiro reina do, o nomeou em 12 de Jullio de 1837 para o commando da imperial guarda de archeiros, cargo que exerceu com dedicação e intelligencia por espaço de 9 annos até que fez d'elle entrega nas mãos do marquez de Gantagallo que era o commandante effectivo.
Folheem-se os livros dos archivos da casa imperial, e a leitura d'esses escriptos dará a entender as reformas uteis por elle estabelecidas na economia d'esse distincto corpo: cujos serviços foram remunerados, pela sua importancia e opportunidade, com o titulo que lhe foi concedido de commandante honorario d'essa mesma guarda.
José Maria Velho da Silva chegou a occupar o lugar em que o vimos collocndo nos derradeiros dias da sua vida pordegráos, e conquistando, por assim dizer, a confiança dos seus reis com o seu comportamento.
Ha certas carreiras improvisadas que são materia de justo receio para os pensadores.
A natureza, mestra eterna dos homens, nos apresenta quotidianamente exemplos luminosos da verdade que acabo de emittir. Uma arvore empinada com mesquinhas raizes é derribada pelo menor sopro dos alisios intertropicaes: um edifício sem solidos alicerces, ao cabo de poucos annos, é um acervo de ruinas: para que as plantas e as arvores ostentem as suas mimosas flores e deliciosos fructos passam na fecunda escuridão da terra por diversas transformações. .
Não terá escapado á vossa intelligente penetração que José Maria, desde 1826 até 1840 passou por todos os de gráos da honrosa serventia dos nossos monarchas. Quatorze annos de dedicação e bons serviços prestados á imperial familia do Brasil eram credores d'uma posição elevada.
Acabava o joven principe Dom Pedro II de ser declarado maior de idade e de tomaras rédeas do governo em 18 de Julho de 1840, quando em 2 de Agosto do mesmo anno nomeou a José Maria veador da casa imperial em recompensa dos serviços que fizera ao monarcha menor.
Em 4 de Abril de 1845 foi condecorado pela munificencia imperial com a commenda da ordem da Rosa.
N'este mesmo anno— 13 de Setembro foi determinada a viagem de SS. MM. II. ás provincias do Sul do imperio, e n'esta occasião foi José Maria escolhido d'entre seus collegas veadores para servir na viagem a S. M. a Imperatriz.
Desnecessario é dizer-vos que, durante esta imperial jornada, mostrou-se tão gentilhomem quão esmerado servidor.Achava-se de regresso ao seio da sua familia, cujos membros lhe eram tão caros, e por cuja ventura tanto se interessou durante a sua existencia, tendo presente a sentença de Pelopidas « prcefectum decet non tam sui, quàm suorum cu« ram habere, » começando a inteirar-se dos seus nego cios particulares, quando foi ainda uma vez retirado da vida de familia.
A 22 de Maio de 1846 foi nomeado porteiro da imperial camara, guarda-joias e mordomo interino da imperial casa, obtendo por essa occasião o titulo do conselho de S. M. o imperador.
Administrou o conselheiro José Maria Velho da Silva o patrimonio e a casa imperial, durante oito annos e sete mezes, comaquelle zelo e consagração que o tornaram um modelo destas virtudes toda a sua vida. O primeiro dote d'um bom economo é a ordem na gerencia d'um palacio, d'uma nação, d'uma sociedade particular, d'uma casa privada; n'esta parte distinguiu-se o nosso finado consocio d'um modo mui notavel. Narra-nos a historia, senhores, que Cesar Augusto maravilhou-se em extremo quando ouviu dizer que Alexandre o Magno não sabia o que lhe competia fazer no restante dos seus dias, depois de ter conquistado muitos reinos aos 32 annos d'idade, e exclamou: « ignorava Alexandre que é « negocio de maior monta por ordem n'um imperio do que « conquistal-o ?
De facto, senhores, cingindo-nos ao nosso caso, de que aproveita ter á nossa discripção as riquezas de Cresso, se não sabemos por ordem na sua administração ?
O conselheiro José Maria Velho da Silva ordenou de tal sorte as despezas e as rendas da casa imperial, que ahi tendes ainda os livros da mordomia, para dar uma prova irrefragaveldo seu espirito de ordem e da sua sisuda administração.
As casas dos reis não são como as dos particulares: o que parece luxo n'estas é mesquinhez n'aquellas: e eis-ahi a difficuldade com que tem que lutar os administradores dos patrimonios reaes, devendo conciliar a ordem economica com o esplendor e a dignidade das augustas familias.
No nosso paiz é quiçá mais difficultoso do que nas antigas e opulentas monarchias fazer o milagre da conciliação d'estas duas cousas; porque os nossos monarchas, e a sua augusta familia são pobres, comparados com o que exige a realeza: o nosso economo, porém, soube casar tão acertadamente a ordem com o brilhantismo da coroa que teve aventura de agradar, com sua intelligente e fiel administração, tanto a S. M. o imperador como a S. M. a imperatriz, merecendo sempre o melhor e o mais distincto trato quer de SS. MM. II. quer de SS. AA.
Foi o conselheiro José Maria Velho da Silva tão zeloso do cumprimento de seu cargo de mordomo da casa imperial que esqueceu os seus proprios interesses até o ponto de encontrar-se mais reduzida a sua fortuna particular de pois de deixar a mordomia do que quando d'ella se encarregou oito annos e sete mezes antes.
Em Janeiro de 1855 fez entrega do honroso cargo, que exercera interinamente, ao proprietario d'elle, o conselheiro Paulo Barbosa da Silva que, de volta da sua viagem á Europa, reassumiu as funcções de mordomo da imperial casa.
Antes de entrar com o nosso finado consocio no retiro da sua vida privada, é meu dever dizer-vos que José Maria tratou seus subordinados, durante a sua administração como diz o Ecclesiastico no capitulo 32, verso 1º que é convenienteque faça um alto funccionario: « Rectorem te posue runt t Nolti extolli : esto in illis quasi unus ex ipsis. »
Interrogai as testemunhas da sua administração; fallai aos seus collegas e inferiores; perguntai a todos elles se José Maria não foi sempre o typo d'um perfeito cavalleiro nas suas maneiras, no seu trato, nas suas palavras, nas suas acções, nos seus mais simples movimentos. Eis-ahi a razão genuina porque conseguiu, e ainda hoje goza, do premio que o mesmo Ecclesiastico promette no verso 3o do mesmo capitulo 32, « ut lœteris propter illos, et ornamentum gratise accipias coronam, et dignationem consequaris corrogationis. »
Aos sessenta annos d^dade retirou-se o conselheiro José Maria Velho da Silva á vida de familia, e não exerceu mais funcções algumas publicas ; sendo que foi aposentado em 5 de Março de 1851 como deputado do tribunal da junta do commercio com todas as honras, em attenção a ter sido reformada aquella repartição debaixo de differentes bases e com outras attribuições, tomando a denominação de tribunal do commercio.
Eis-aqui o momento azado para dar uma resposta á pergunta que nos foi feita algumas paginas mais acima ácerca de qual era o credo politico do nosso distincto e fallecido consocio.
Senhores, vou transcrever as palavras d'um philosopho do seculo XVIII, cujo theor parecerá a muitos uma heresia politica; mas repetil-as-hei, e acredito de boa fé que me não acoimareis de heterodoxo. « Si je voulais raconter tous les maux qu'ont fait au monde tous les systèmes monar« chiques, démocratiques ou aristocratiques, je dirais des choses effrayables. »
Releve-se-me que parodie esta verdadeira sentença: Seeu vos quizesse contar todos os males que tem feito ao mundo o que chama-se no nosso seculo politica, dizia cousas espantosas.
São tantas e tão grandes as catastrophes originadas nos nossos dias da ditosa politica, que eu desejaria que voltassemos á Republique de Bodin, á Polxlique tirée de l'Ecrilure Saint de Bossuet, ao Telemaco de Fénélon, e ao PetitCarême de Massillon. Porém os meus desejos nos tempos que alcançamos, desgraçadamente, são estereis; porque, segundo a phrase de Pitt, depois da revolução franceza o fanatismo religioso das idades remotas foi substituido pelo fanatismo politico.
Hoje é quasi uma deshonra para a generalidade dos homens não pertencer a uma fracção politica, esquecendo que as almas elevadas não devem pertencer a outro lado politico que ao da propria nacionalidade.
O conselheiro José Maria Velho da Silva professava o seu credo politico, não admitte duvida; consta-me que seus amigos mais Íntimos eram liberaes: e, se a memoria não me atraiçoa, foi, em Maio ou Junho de 1848, apresentado pelos seus correligionarios na lista triplice para a senatoria— segundo resa o Correio Mercantil d'aquelle tempo; elle, porém, não annuiu aos votos dos seus amigos, e conseguintemente riscaram o seu nome do papel por não contrariar a determinação que tão seriamente lhes mostrara de não acceitar tão honroso cargo.
E sabeis porque não quiz jámais entrar nas lutas pacificas e illustradas para uns, e estereis para outros, da politica do seu paiz? Ouvi, pois, e confessai comigo que o nosso finado consocio reunia á uma abnegação quasi santa uma prudencia mui acrisolada.
Dizia elle, e repitiu-me amiudadas vezes: tenho a minhaopinião guardada no intimo da alma: não a tenho manifestado desde a abdicação do primeiro imperador até agora: tenho perdido muito terreno, politicamente fallando; mas não faz mal: porque a razão e a experiencia me dictam que assim procedo conscienciosamente. Os servidores dos reis não devem ter in forô externô partido algum; para que nunca pareçam as suas proprias opiniões serem o echo dados salões do monarcha a quem servem.
E se quer ainda maior abnegação, mais requintado patriotismo, mais acendrada dedicação a seu soberano?
Senhores, eu já vos disse que o conselheiro José Maria Velho da Silva era máximo, porque era justíssimo e modestíssimo.
Sem mais pretenções do que as de cavalleiro virtuoso e bom cidadão, depois de entregar a mordomia ao seu illustrado proprietario, atirou-se com toda a sua alma aos cuidados que constantemente lhe mereceu a sua familia, e empregou-se na administração da sua modesta fortuna.
Quasi que desfallecem as minhas forças n'este derradeiro momento; porque na verdade honrava-me de ser seu amigo; mas tirarei vigor da mesma fraqueza, e esboçarvos-hei em poucas mas saudosas palavras o melancolico painel de seu passamento.
Gozava o conselheiro José Maria Velho da Silva d'uma robustez e saude como talvez nunca tinha experimentado: acabava de levar a sua esposa, perigosamente doente, para Petropolis por conselho dos facultativos: parecia que os annos e as tribulações tornavam-se mezes e prazeres, quando foi na rua, em passeio, accommettido por uma congestâo cerebral, da qual, máogrado os esforços da sciencia e os cuidados incessantes e dedicados da sua familia e de nume
rosos amigos, succumbiu a 7 de Abril do anno passado, ás2 horas da tarde, depois dos maiores sofírimenlos supportadoscoma resignação d'um verdadeiro justo.
Um marido tão exemplar, um pai tão extremoso, um amigo tão dedicado, um servidor dos nossos reis tão cavalleiro, um cidadão tão probo, um brasileiro tão amante das glorias patrias não podia deixar de ser chorado depois de morto, e acatado durante a sua vida por todos os que tiveram a dita de tratal-o.
Perguntai aos moradores de Petropolis quem morreo a 7 de Abril de 1860, e responder-vos-hão até os meninos dos collegios: « Qui semper et non qui quotannis fuit justus. »