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Esboço biográfico do conselheiro José Maria Velho da Silva/5

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V.

Os celebres mestres da antiguidade nos ensinam que as gerações vindouras não ficariam satisfeitas com os retratos moraes dos seus antepassados; e este é o motivo porque, depois de pintar minuciosamente o homem moral, traçam com todos os seus perfis sua parte physica.

Basearam-se para assim praticar na razão philosophica do nosso modo cie ser, que não é outra cousa mais do que um composto de espirito e materia. Esta reflecte, em geral, as condições modificativas d'aquelle: o espirito sella com profundos traços nas feições do homem a sua physiologia moral.

Um physionomista observador raras vezes erra nos seus prognosticos, se os liniamentos do rosto que estudar são d'um homem que tenha lutado com os vaivens do mundo, ou seja com o seu proprio e alheio egoismo: por isso ê mais facil decifrar o coração d^m ancião, apezar do seu costume de occultar os seus sentimentos, do que o de uma criança.


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Conheci o conselheiro José Maria Velho da Silva na idade das cãs, quando as suas paixões e as dos seus semelhantes tinham imprimido em sua physionomia profundos suicos; e conseguintemente posso fazer um retrato assás parecido com o original.

Era homem de agradavel talante, de estatura acima da regular e magro de corpo.

O todo da sua physionomia inspirava sympathia. A sua testa elevada e espaçosa denotava uma alma generosa: a sua boca regular e de não mui grossos labios revelava uma prudencia reservada : os seus olhos azues accusavam a bondade do seu coração: os seus cabellos louros manifestavam um temperamento jovial: o seu nariz de raça ibera presagiava perspicacia : e o seu sorriso franco algumas vezes, fino outras e não poucas melaílcolico accusava a sinceridade, as maneiras de cortezão e a experiencia das cousas do mundo. Seu semblante e presença inspiravam carinhoso respeito; de modo que, vendo-o, exclamava qual quer: eis-ahi um verdadeiro fidalgo.

O seu trajar esmerado sem affectação, o ar de rigorosa decencia que distinguia a sua pessoa, e um certo não sei que, só congenial a homens d'uma certa ordem, davam a ultima mão ao cavalleiro.

Este exterior era o resultado dos seus sentimentos nobres e bemfazejos. Era affavel em seu trato, circumspecto, quasi reservado na expansão da sua amizade, de caracter jovial, sabendo ser energico sem nunca ir além das raias da prudencia. Se fez respeitar e estimar pelos seus subordinados nos diversos cargos publicos que desempenhou, e entre elles contava não poucos affeiçoados.

No nosso seculo é raro encontrar um homem de natureza tão serviçal: e mesmo não é commum achar no mesmo individuo
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principios tão severos de conducta. Póde-se affirmar que era um cavalleiro em toda a extensão da palavra.

Em meio da energia e severidade do seu caracter era brando de genio, e submettia-se docilmente á razão e ás conveniencias sociaes.

A sua espaçosa fronte e a configuração de seus olhos revelavam uma prodigiosa memoria local, como a chamam os psycologistas; lia muito, observava ainda mais e seu talento natural amenizava os momentos de conversa que com elle se tinha.

Raras vezes é a natureza prodiga de todos os seus thesouros para com um só individuo: concedeu-lhe uma penetração atilada, uma intelligencia lucida, uma facilidade para assenhorear-se das difficuldades assombrosas; mas o mimoseou com um dom negativo— a modestia,— e por esta simples razão parecia amiudadas vezes acanhado e pouco eloquente, não desenvolvendo as suas idéas com a sua natural graça e fino tacto senão no seio da família ou na mais cordial intimidade.

Senhores, vou descrever o meu finado amigo, como modelo de amizade.

Para fallar das qualidades d'um homem que já não existe entre nós, é necessario tel-o conhecido, tratado com intimidade, estudado as suas acções no lar domestico e experimentado os eífeitos de seu bello coração.

José Maria Velho da Silva era amigo dedicado e sabia-o provar quando se offerecia o ensejo.

Ouvi, e pelo contexto da anecdota historica que vou esboçar, vereis se não tenho sobeja razão para assegurar que o nosso finado consocio era um exemplar de amizade.

Bossuet será meu mestre n'esta sazão. A relação da morte de Henriqueta Anna de Inglaterra, duqueza de Orleans, a
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materia do meu plagio, e a vossa benevolencia prestando attenção á minha desalinhada phrase, o panno em que consignarei a minha gratidão ao finado José Maria.

Relata-nos a historia que Henriqueta de Inglaterra, du queza de Orleans, foi atacada aos 26 annos d'idade, no palacio de St. Cloud, em 29 de Junho de 1670 d'uma colicabiliosa que arrebatou-a da terra para a eternidade.

Nos primeiros momentos de seus soffrimentos acerbos acreditou-se que estava envenenada a princeza, e foi chamado o abbade Feuillet, homem rude na sua moral, para administrar-lhe as derradeiras consolações da nossa santa religião; mas a voz severa do abbade n'aquelle lance extremo não podia consolar a duqueza, antes pelo contrario a amofinava.

Manrlou-se procurar Bossuet, varão d'uma doçura angelica, e que tinha assistido no artigo da morte sua mãe a rainha de Inglaterra: Bossuet era então bispo de Condom, ese não achava na residencia real. Bossuet tardava, e cada minuto era um novo martyrio para a real agonisante.

Por fim, Bossuet— chamado por Voltaire « le sublime Bossuet que j'ai appelé, et que j'appelle encore le seui homme eloquent parmi tant d'écrivains elegants »— chegou, e com elle a consolação para o espirito timorato de Henriqueta de Inglaterra.

« Cheia de estima por Bossuet, diz a chronica, e de reconhecimento pelos serviços espirituaes que lhe tinha feito, madama Henriqueta ordenou na sua presença, uma hora antes do seu passamento, em inglez, porém, afim de que elle não o comprehendesse, que se lhe offerecera da sua parte, depois da sua morte, um annel d'uma magnifica esmeralda, circumdada de tres preciosissimos diamantes, e que o prelado tem levado sempre desde aquella occasião. »
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A Sra. de la Fayette entregou o mimo a El-Rei Luiz XIV, e este principe cncarregou-se de enfiar, na manhãa seguinte, no dedo de Bossuet o mencionado annel, dizendolhe n'aquella conjunctura que fizesse o elogio ou a oração fúnebre em São Dionisio.

O caso foi contado em todas as partes: todos felicitaram o virtuoso e sabio prelado pela dadiva tão terna destinada á sua pessoa pela real princeza no momento de morrer; todos, porém, manifestavam tambem o pezar que lhes causava ver que Bossuet— pelas conveniencias— não pudesse recordar o facto no seu elogio funebre.

« Eh! pourquoi pas? exclamou Bossuet n'um arrebatamento de enthusiastica gratidão.

A resposta do bispo de Condom divulgou-se por todas as partes, e todo o povo esperava com anxiedade o desfecho melindroso do compromisso que acabava de arrostar o sagrado pregador.

Bossuet subiu á tribuna da verdade, Bossuet soube justificar a sua promessa; mas não se apressou a satisfazer a curiosidade do seu auditorio. Ao terminar o discurso, pagou a divida do seu reconhecimento.

Ouvi o facundo prelado ; elle explicar-vos-ha melhor do que eu o que era Henriqueta, « dans laquelle, » diz, « tout était esprit, tout était bonté. Que dirai-je de sa liberalité? Elle donnait non seulement avec joie, mais avec une hauteur d'âme qui marquait tout ensemble et le méris du don, et 1'estime de la personne. Tantot par de paroles touchantes, tantôt même par son silence elle re« levait ses présents ; etcet art de donner agréablement qu' elle a si bien pratiqué durant sa vie, 1' a suivie, je le sais, jusque entre les bras de la mort. »

Estas tres syllabas, diz o cardeal Maury, realçadas por
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um brado melancolico, em meio da narração mais tranquilla,— JE LE SAIS, bastaram para que Bossuet traçasse com tanta dignidade como comedimento a historia geralmente divulgada do annel que viam brilhar no seu dedo.

Senhores, vos contei esse triumpho do orador sagrado da França; releve-se-me agora que faça o encomio dos merecimentos que, como amigo, ornavam a alma do conselheiro José Maria Velho da Silva.

Já vos disse mais acima que era amigo dedicado, e sabia-o provar quando apparecia a occasião, prestando-se sempre a seus amigos, quando d'elle precisavam. Quantos podem repetir com Bossuet: — Eu o sei!

No seu trato com os seus amigos usou sempre da linguagem da verdade, e em repetidas occasiões soube usar d'ella, quando o exigiu a opportunidade, dirigindo-se ao Sr. Dom Pedro I.

Senhores, é tão raro que os reis ouçam a verdade da boca d'aquelles que os cortejam, que por isso consignou Plutarco á posteridade na vida de Antioco as memoraveis palavras que este monarcha dirigiu aos seus palacianos— depois de ter passado uma noite n'uma choupana, indo de montaria, onde albergou-se sem que os rusticos habitantes d'aquelle lugar o reconhecessem. Diz Plutarco que aquelles simples lavradores criticaram o seu soberano pelo deleixo que mostrava pela felicidade do povo, preferindo a caça ás vidas dos seus vassalos.

Antioco exclamou na manhãa seguinte, vendo-se festejado pelos aulicos: ἀλλὰ ἀφ᾽ ἧς ἡμέρας ἀνείληφα, πρῶτον ἐχθὲς ἀληθινῶν λόγων ἤκουσα περὶ ἐμαυτοῦ. «Desde o dia em que vos tomei ao meu serviço, hontem foi a primeira vez que ouvi fallar a meu respeito a verdade. »

Dom Pedro I ouviu a verdade algumas vezes da boca de
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José Maria, e se Antioco agradeceu no intimo do seu coração a lhaneza dos lavradores que lhe deram albergue, o primeiro imperador do Brasil foi mais além; pois, conhecendo o zelo que animava a José Maria, agraciou-o com a sua real amizade.

Era tão sincera a que professava o Duque de Bragança ao nosso finado consocio, que muitas são as cartas que lhe escreveu desde a sua sabida do Brasil até a sua prematura e lamentavel morte. Esta correspondencia— guardada com religiosa veneração pela familia Velho da Silva,— respira a maior estima, confiança, consideração e amizade da parte do duque para com seu leal e constante servidor e amigo.

Senhores, não sou supersticioso; mas a coincidencia de entregar a sua alma ao Creador o conselheiro José Maria Velho da Silva no dia anniversario da abdicação de Dom Pedro I, de quem era tão devotado amigo, é um facto digno de ponderação.

Aquelle que tantas virtudes possuia, que fora reverente filho, bom irmão, dedicado esposo, pai extremoso, cidadão exemplar e atilado cavalleiro deve ser chorado por esposa, filhos, parentes, amigos e consocios, e é uma felicidade que o céo lhe haja concedido a gloria de ver reproduzir as suas virtudes por uma prole digna do seu nome.

O conselheiro José Maria Velho da Silva deu á sua esposa D. Leonarda Maria Velho da Silva, sua viuva, dama honoraria de S. M. a imperatriz do Brasil,— perto de 34 annos d'uma felicidade inalteravel.

De seu consorcio com esta illustre senhora teve dous filhos o Dr. José Maria da Silva Velho, advogado, moço-fidalgo com exercício na casa imperial, e membro do Instituto da ordem dos advogados brazileiros, casado com D. Carolina Monteiro da Silva Velho, filha do visconde da Estrella
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trella;— e D. Marianna Velho Ribeiro de Avellar, casada com o tenente-coronel Joaquim Ribeiro de Avellar, filho do barão de Capivary.

Hei cumprido, senhores, com um dever: tenho-vos esboçado a grandes traços a vida do nosso finado consocio e meu particular amigo: acceite elle na mansão dos justos esta homenagem da minha saudosa memoria, come um mesquinho tributo de gratidão, e releve-se-me que escreva sobre a sua campa as palavras de Agis, que foram o thema d'este escripto.

« Admirandus est is qui semper,
non qui quotannis,
est justus. »

FIM.