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Esboços biográficos/José Bonifácio de Andrada e Silva

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BIBLIOTHECA BRASILEIRA.
JOSE BONIFACIO DE ANDRADA E SILVA.

« De tanto patriotismo, que se doirou ao sol da liberdade; de tantos erros que a dór evangelisou no soffrimento e no leito; de tanto nome glorioso que illustrou à patria... ai!... nem ao menos as pedras das sepulturas se conhecem! A ingratidão foi apagar as inscripções da historia; o silencio do egoismo algemou a verdade; e o tempo, estragador incansavel, derrubou os altares soberbos e altaneiros, como o furacão da tempestade os cedros altivos do Libano!

« Dormi, soberbos vultos, dormi à sombra dos templos! Talvez a voz de um poeta um dia saiba cantar todas as glorias da patria, e aprende-las no vento que embalança a ramagem das florestas virgens, ou no estrepito das aguas de tanto rio gigante! »

(O Iris de S. Paulo — 1857 — artigo — Litteratura Patria — por *** (Dr. Jose' Bonifacio de Andrada e Silva.)

I.

A cidade de Santos é a patria dos filhos da liberdade, o berço dos grandes homens de nossa terra.

Seu aspecto desperta no espirito do brasileiro poderosas reminiscencias!

Ahi em suas praias aportou primeiro o avido colono, que veio plantar as quinas portuguezas no solo virgem da America.

Ahi embalaram seu berço Alexandre de Gusmão e Bartholomeu Lourenço, esses luzeiros radiantes, que brilham com fulgor peregrino na treva espessa do tempo colonial.

Ahi abrio os olhos á luz o Visconde de S. Leopoldo, esse nome tão sympathico de nossa historia, que das paginas da politica passou para as da litteratura, onde suas producções apuradas lhe asseguraram um logar eminente.

Antonio Carlos, o grande orador, Martim Francisco, o typo da severidade, tambem nasceram nessa terra, cheia de tantas recordações.

Nesse berço da liberdade o passado repousa tranquillo, symbolisado nos velhos monumentos das gerações extinctas, que o perpassar das idades respeitou, como uma pagina viva dos tempos que se foram!

Ahi, em um convento, sellado já pela mão dos seculos, longe dos vãos rumores do mundo, alveja um tumulo modesto e simples, como o dos grandes homens. Seu aspecto enche-nos de religioso recolhimento.

A fronte do brasileiro curva-se de respeito, uma lagrima lhe brota dos olhos, e seus labios balbuciam tremulos o nome de José Bonifacio de Andrada e Silva!

Repousa em paz, sombra veneranda! Ahi, nessa mansão serena dos mortos, achaste um abrigo contra as tempestades, que agitaram tua existencia! As vicissitudes humanas passaram rugindo sobre tua fronte altiva, e mataram-te a vida!

Depois de haveres enchido o velho mundo com o teu nome, engrandecido a sciencia com teu engenho poderoso; depois de haveres creado uma nacionalidade e plantado a liberdade no solo de Santa Cruz, e haveres gemido nas torturas do exilio: beijaste a terra de tua patria cuberta de luto, legaste teu nome respeitavel ás paginas da historia, e foste pedir ao chão humilde de teu berço um logar de repouso contra as amarguras da vida!

Salve! manes venerandos do fundador de minha patria! Eu te saudo!

Emquanto os idolos do dia repousam em soberbos catafalcos; emquanto suas estatuas se erguem vaidosas ás vistas da multidão, teu nome perdura tranquillo no sanctuario da morte, e o brasileiro o repete todos os dias coberto de bençãos!

A lapida, que encerra os teus ossos, é o pedestal magestoso do monumento de nossas liberdades; e o teu nome, elevado á altura de uma tradição, abre a primeira pagina da grande epopéa nacional!

II.

José Bonifacio de Andrada e Silva, nasceu na villa de Santos, no dia 13 de Junho de 1763 [1]. Foram seus pais o coronel Bonifacio José de Andrada e sua mulher D. Maria Barbara da Silva.

Concentrada então a educação da mocidade nas mãos do clero, foram seus primeiros estudos litterarios dirigidos na cidade de S. Paulo pelo virtuoso bispo D. Fr. Manoel da Ressurreição. No seio da religião balbuciou a primeira palavra de sua intelligencia. Desde logo revelou um desenvolvimento precoce, e esse amor ao estudo, que fez mais tarde sua gloria litteraria.

Ainda na tenra idade de 16 annos appareceram já os primeiros assomos de seu estro poetico; e em sua collecção de poesias figuram producções dessa primeira quadra da vida, em que os sentimentos da mocidade, virgens do contacto do mundo, exhalam-se em hymnos.

Não eram para os estreitos limites da educação colonial as largas aspirações dessa grande intelligencia.

Terminados os seus primeiros estudos, seguio, em 1783, para Portugal afim de ultimar sua educação litteraria.

Na universidade de Coimbra, onde matriculou-se, obteve os gráos de bacharel formado em direito civil e em sciencias naturaes.

Seu espirito educou-se nas tradicções da litteratura classica, e robusteceu-se com severos estudos scientificos, para os quaes desenvolveu a maior aptidão. De suas obras vê-se o immenso cabedal de conhecimentos e erudição, que este brasileiro colheu nos differentes ramos das sciencias humanas.

III.

Era ainda pelos fins do seculo passado. Sua patria conservava-se sob o peso do regimen colonial. A politica da metropole afastava cautelosamente do Brasil os talentos, que lhe podiam trazer algum desenvolvimento intellectual.

Assim José Bonifacio, apenas formado, seguio para Lisboa rodeado de merecido renome e prestigio, e com uma reputação litteraria já firmada. Esta circumstancia e a amisade do Duque de Lafões, inclito protector das lettras, deram-lhe ingresso na Academia Real de Sciencias de Lisboa, em cujo seio se reuniam as illustrações litterarias da época.

Entre os brasileiros notaveis que então representavam o Brasil perante a metropole, José Bonifacio apparece como um dos vultos mais eminentes.

A independencia da terra de Santa-Cruz preludiava-se nesse grande movimento intellectual, que abria novos horisontes aos filhos da misera colonia.

Proposto pela Academia Real de Sciencias ao governo portuguez para viajar á Europa conjunctamente com o distincto mineiro Manoel Ferreira da Camara de Bittencourt e Sá [2], José Bonifacio estremeceu de jubilo ao contemplar a brilhante perspectiva de gloria, que lhe estava reservada; e em Junho de 1790 os dous mineralogistas brasileiros deixaram Portugal para seguirem sua peregrinação scientifica pela Europa. [3]

IV.

Consummavam-se então os assombrosos acontecimentos, que ensanguentaram a ultima parte do seculo dezoito. Nada entretanto póde deter o passo aos intrepidos viajantes, que caminhavam em busca da sciencia.

A viagem de José Bonifacio foi um triumpho constante, uma pagina brilhante, que conquistou a litteratura portugueza. Por toda a parte deixava o illustre brasileiro vestigios indeleveis de sua alta intelligencia e de seu saber, ouvindo as lições dos grandes mestres e illustrando as sciencias com os seus trabalhos litterarios. Em sua longa excursão que durou dez annos percorreu a França, Allemanha, Belgica, Hollanda, Italia, Hungria, Bohemia, Suecia, Norwega, Dinamarca e Turquia.

Em Paris leu na sociedade de Historia Natural um importante trabalho seu sobre os diamantes do Brasil, que foi depois publicado nos Annaes de Chimica de Fourcroy.

Examinando as minas da Suecia e Norwega, descobrio nellas mineraes não conhecidos até então, e os descreveu em uma carta, publicada em allemão, dirigida ao engenheiro Beyer, inspector de minas em Schueeberg.

Além de algumas memorias que fez sobre diversas minas da Suecia, publicou no jornal de minas em Freiberg um importante trabalho sobre as minas de Galha.

Escreveu ainda uma memoria sob o titulo de — Viagem geognostica aos montes Euganeos no territorio de Padua, a qual foi lida na Academia de Sciencias de Lisboa em 1812.

Nos Annaes de Chimica de Fourcroy deu á luz uma memoria sobre o fluido electrico. [4]

Todos esses trabalhos, sellados com o cunho de seu immenso saber, tornavam o seu nome conhecido e grangearam-lhe brilhantes homenagens.

O lugar de inspector das minas da Norwega lhe foi offerecido. Mas José Bonifacio tinha uma patria, que aguardava seus serviços, e não lhe era dado por seus grandes talentos á mercê do estrangeiro.

As corporações scientificas das primeiras capitaes da Europa, querendo honrar o seu merito, apressaram-se em admittil-o em seu seio, e o illustre brasileiro foi recebido socio das sociedades de Historia Natural e Philosophica de Paris, da Academia Real de Sciencias de Stockolmo, da sociedade Limeana e Mineralogica de Jena, da sociedade dos Investigadores da Natureza de Berlim, da Geologica de Londres, da de Physica e Historia Natural de Genova, da Werneriana de Edimburgo, da Academia de Sciencias de Copenhague e de Turim; sendo mais tarde recebido membro da sociedade Maritima de Lisboa, e da Philosophica de Philadelphia.

Em Setembro de 1800 voltou a Portugal, coberto de gloria, rodeado de um prestigio immenso.

V.

A' frente dos negocios publicos na metropole achava-se o illustrado ministro brasileiro Conde de Linhares.

As sciencias eram honradas, as lettras protegidas, e um impulso animador notava-se nessa administração esclarecida, cuja physionomia caracteristica foi uma protecção decidida aos talentos brasileiros, então incumbidos de importantes trabalhos.

Os talentos de José Bonifacio não ficaram desaproveitados.

Voltado á Portugal, foi pelo governo incumbido de crear em Coimbra a cadeira de metalurgia, da qual foi nomeado lente, commissão que desempenhou com honra e distincção por largo tempo.

Foi ainda nomeado intendente geral das minas e metaes do reino, superintendente do rio Mondego e das obras publicas de Coimbra, e desembargador da relação do Porto.

Nem só em commissões scientificas era aproveitado o seu saber.

Reconhecendo sua pericia e aptidão, o governo o incumbira de muitos e importantes trabalhos administrativos, nos quaes provou superior actividade e dedicação.

Entre estes avulta o encanamento do rio Mondego, as sementeiras e plantações nos areaes das costas por ellas realisados em virtude de ordem do governo. [5]

Esses trabalhos, entretanto, não esgotaram sua actividade.

Todo votado á causa das sciencias naturaes e ás suas custosas investigações, fez, no outomno de 1800, com seu irmão Martim Francisco e o tenente-general Napier, uma viagem minerographica pela Extremadura até Coimbra, cujo resultado, escripto por seu irmão, appareceu em 1812.
VI.

No meio d'essas pacificas occupações scientificas e administrativas veio sorprehende-lo a invasão franceza.

A realeza portugueza fugira espavorida ante as aguias francezas, mas o patriotismo não morrera no peito d'essa nação infeliz, que contara tantas glorias em seu passado.

Do gabinete do litterato, José Bonifacio, coberto com os louros da sciencia, travou da espada, correu ao campo da batalha e á frente do corpo academico, no posto de tenente-coronel, militou com gloria contra os francezes.

Livre o solo da patria d'essa primeira invasão estrangeira, foi pelo governo nomeado intendente da policia da cidade do Porto.

Lugar difficil era esse em um tempo, em que os odios e as paixões politicas suscitadas pela invasão sopitavam debaixo das cinzas. A discordia civil dividia os animos: a perseguição se desenvolvia contra aquelles que, se dizia, haviam apoiado o estrangeiro.

José Bonifacio oppoz um paradeiro á esse fanatismo, tão funesto á causa nacional e contribuio poderosamente com sua moderação e medidas equitativas para apagar esses odios infindos.

VII.

A estrella do grande homem impalidecêra no continente europeo. Seus exercitos disseminados corriam ao seu chamado para vir defender a França invadida pelas baionetas da coalisão.

Desassombrada a peninsula iberica da presença do exercito inimigo, José Bonifacio depoz a espada, e voltou á vida pacifica do homem de lettras; e no decurso de seus trabalhos publicou importantes memorias [6] que lhe assignam um lugar distincto entre os naturalistas brasileiros.

Em 1812 foi eleito secretario perpetuo da Academia Real das sciencias de Lisboa, e n'esse caracter produzio importantes trabalhos litterarios, entre os quaes avulta o seu elogio academico da Rainha D Maria I, lido na Academia Real das Sciencias de Lisboa aos 20 de Março de 1817, onde a magestade das grandes idéas alia-se com as formas varonis de um estylo correcto e de uma linguagem pura e castiça. [7]

N'esse largo tirocinio, cheio de fecundos resultados, dividido entre as lettras e a administração activa, o pensamento da patria revoava-lhe em torno, e abria ante seus olhos a prespectiva de um porvir immenso para a terra de seu berço.

Em 1819, volvendo o ultimo adeos d'esse antigo theatro de suas glorias, em face de uma metropole, ciosa de seus direitos, José Bonifacio, em um arroubo patriotico atirava-lhe estas palavras memoraveis, que preludiáram a independencia de Brazil.

« E que paiz esse, senhores, para uma nova civilisação e para um novo assento das sciencias? Que terra para um grande e vasto imperio! Banhadas suas costas em triangulo pelas ondas do Atlantico; com um sem numero de rios caudaes e de ribeiras empoladas, que o retalham em todos os sentidos; não ha parte alguma do sertão, que não participe mais ou menos do proveito que o mar lhe pode dar para o trato mercantil e para o estabelecimento de grandes pescarias. A grande cordilheira, que o córta de norte à sul, o divide por ambas as vastas fraldas e pendores em dous mundos differentes, capazes de crear todas as producções da terra inteira......

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« de que mercês precisa? Fomentar e não empecer; basta-lhe a segurança pessoal e a liberdade sobria de imprensa, de que já gosa, e uma nova educação physica e moral: o mais pertence á natureza e ao tempo. »

N'esso anno, obtendo licença do governo da metropole, retirou-se para o Brazil, conservando todos os seus empregos.

VIII.

Sua vida litteraria ainda aqui continuou inalteravel com seus placidos encantos, com suas ambições pacificas e nobres.

Novo Cincinato, foi como um sabio modesto, habitar o seu pittoresco sitio dos Outeirinhos em Santos, todo entregue ás investigações da sciencia.

Em Março de 1820 fez com seu irmão Martim Francisco uma excursão montanistica desde Santos até a Parnahyba, cujo resultado appareceo impresso no Journal des mines de Paris.

Em attenção a seus relevantes serviços prestados á Portugal e á seus importantes trabalhos litterarios, El-Rei D. João VI. o agraciou com o titulo do conselho á 5 de Abril de 1820, unica honra que teve esse grande homem, cuja modestia e singelesa recordamos mais severos caracteres da antiga Roma.

IX.

Mas já a repercussão da revolução liberal do Porto em 1820 se fizera ouvir no Brazil, e viera agitar-lhei o corpo entorpecido, quebrando a cadea das tradições absolutistas.

Preludiavam-se então esses grandes acontecimentos, que iam confundir o nome de José Bonifacio com o mais glorioso pendão da historia de uma nação.

Compellido pelo movimento de 24 de Agosto, El-Rei D. João VI deixára o Brasil, onde residira por treze annos, desassombrado dos graves acontecimentos, que ensanguentaram a Europa.

Conseguido esse primeiro triumpho, o ciume da metropole contra o Brasil, a misera colonia de hontem, tornou-se mais exigente.

Para elevar Portugal ao seu antigo poderio julgaram as cortes conveniente restabelecer o velho regimen colonial, o monopolio commercial em proveito da metropole.

Era uma revolução, uma lucta contra a ordem de cousas inaugurada pela carta régia de 28 de Janeiro de 1808, e consolidada por efficazes medidas legislativas no largo periodo de treze annos.

A existencia da corte no Brasil emancipara-o da metropole, e abolira o systema colonial, creando a liberdade commercial.

Não é dado ao poder do homem rebellar-se contra os factos consumados, e destruir em um dia o resultado de uma situação politica e social, cimentada nos habitos do povo. As cortes não o comprehenderam, e inpensadamente abalançaram-se á lucta contra o Brasil, tentando reduzil-o á antiga dominação colonial.

Ordem foi dada ao principe regente D. Pedro para deixar o Brasil e retirar-se para Portugal.

Nova organisação foi dada aos governos provinciaes no sentido do antigo regimen; e para terminar essa obra de demolição, supprimiram-se todos os tribunaes e repartições creadas em tempo d'El-Rei.

X.

José Bonifacio occupava á esse tempo o lugar de vice-presidente da junta provisoria em S. Paulo. O general João Carlos, presidente da mesma, the deixára toda a responsabilidade da acção e dos acontecimentos.

O Brasil recebêra com indignação os decretos das côrtes. Um povo inteiro levantára-se para responder á essa provocação com a dignidade de seus direitos.

José Bonifacio, fadado para ser o libertador de sua patria, reuniu a junta provisoria, e em nome della dirigiu ao principe essa energica representação de 24 de Dezembro de 1821, que echoou no Brasil como uma fulminação poderosa, atirada á face do congresso lusitano,

«.... apenas fixamos nossa attenção sobre o primeiro decreto das côrtes, ácerca da organisação dos governos das provincias do Brasil, logo ferveu em nosso coração uma nobre indignação, porque vimos nelle exarado o systema da anarchia e da escravidão....

« Nada menos se pretende do que desunir-nos, enfraquecer-nos, e até deixar-nos em misera orphandade, arrancando do seio da grande familia brasileira o unico pai que nos restava, depois de terem esbulhado o Brasil do benefico fundador deste reino....

«.... Se V. A. Real estiver (o que não é crivel) pelo deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de Setembro, além de perder para o mundo a dignidade de homem e de principe, tornando-se escravo de um pequeno numero de desorganisadores, terá tambem que responder, perante o céo, do rio de sangue que de certo vai correr pelo Brasil, com a sua ausencia, pois seus povos, quaes tigres raivosos, acordarão de certo do somno amadornado em que o velho despotismo, e em que a astucia de um novo machiavelismo constitucional, os pretende agora conservar? »

Essas palavras continham por si sós uma revolução inteira. Era o grito omnipotente do Brasil, que se erguia como um gigante para recuperar sua liberdade.

José Bonifacio partio em pessoa para levar a representação do principe, o qual, annuindo ao voto des brasileiros, deixou-se ficar no Brasil, desobedecendo aos decretos das côrtes (9 de Janeiro.)

Desde então a lucta estava travada, e José Bonifacio, que provocára em grande parte esse desenlace, tornava-se o arbitro da situação, e o primeiro responsavel pela nova ordem de cousas.

Comprehendendo a gravidade e o alcance da revolução que se inaugurára, o principe regente demittio o seu ministerio, e por decreto de 16 de Janeiro de 1822 nomeou a José Bonifacio ministro e secretario de estado dos negocios do reino e estrangeiros. [8]
XI

Começa aqui o periodo mais brilhante da vida de José Bonifacio, aquelle que deo-lhe na historia um nome igual aos maiores homens de todas as nações.

Cumpria-lhe organisar um estado novo que surgia no mappa das nações, abalado pela mesma revolução, que o libertára.

A empresa era difficil.

As nacionalidades não appareceram ao acaso no theatro da historia.

Para que as grandes revoluções triumphem, é preciso que a rasão superior do homem de estado se apodere dos acontecimentos, do arrastamento da época e os condusa habilmente á um desenlace pacifico e duradouro.

Felizes os povos, que conseguem firmar sua independencia sem a efusão de uma gota de sangue humano!

O sabre do revolucionario póde deitar abaixo as instituições do passado, alastrar o solo de ruinas; mas levantar sobre esses restos esbroados uma situação politica, que resista ao tempo e ás provações terriveis do futuro, eis o que constitue a verdadeira gloria, eis o que firma a superioridade do homem de estado.

Subindo ao poder, como a incarnação de uma revolução, que se inaugurára, José Bonifacio soube dirigil-a habilmente; dar-lhe o triumpho por meta de sua acção, e o que é mais, pôde dizer-lhe como Deos ao occeano: « daqui não passarás! »

Não se pode dominar e conduzir mais habilmente um movimento politico, do que esse illustre brasileiro o fez em 1822. Não era uma revolução, que se desencadeava no paiz; era o systema constitucional, que se levantava sobre as ruinas do absolutismo.

Quebrando os elos, que nos prendiam á Portugal, o novo ministro, inspirado pela providencia da rasão politica; procurou rodear o principio da indepen- dencia nacional de elementos de vida e de força, que o amparassem na lucta que se ia travar, e que lhe servisse como de um ponto de apoio seguro para resistir ás eventualidades do futuro.

Esse elemento de vida, essas condições de duração; elle os foi buscar no concurso do voto popular, assentando a nova ordem de cousas na larga base da soberania nacional e da união dos brasileiros.

As cortes haviam, com suas medidas, desorganisado o paiz, e introdusido nelle a discordia e a anarchia. José Bonifacio tratou logo de chamar a um centro commum de união os animos divididos, e como primeiro passo para esse fim, defirindo aos votos das provincias de Minas, S. Paulo e Rio de Janeiro, convocou, por decreto de 16 de Fevereiro de 1822, um conselho de procuradores de provincia, com o caracter de conselheiros de estado e de representantes da provincia que os elegia.

«E dezejando eu para utilidade geral do reino unido, e particular do povo do Brazil, ir dante mão dispondo e arreigando o systema constitucional, que elle merece e eu jurei dar-lhe, formando desde já um centro de meios e de fins, com que melhor se sustente e defenda a integridade e liberdade deste fertilissimo e grandioso paiz, e se promova a sua futura felicidade.... »

Essa instituição filha da urna popular, dava ao Brazil o principio da representação politica. Era o primeiro passo dado para a convocação de uma constituinte, definitiva consagração da emancipação nacional.

Essa medida, porém, que rompia de uma vez com o passado, exigia pela audacia da concepção, muita prudencia e tino para ser executada

Era fundar a independencia, antes de proclamal-a.

Ainda esta vez José Bonifacio foi buscar na soberania popular o elemento de força e authoridadade, que era preciso para realisar esse plano tão sabiamente combinado.

Em 20 de Maio de 1822 o povo do Rio de Janeiro dirigio ao respectivo senado da camara uma representação pedindo-lhe que solicitasse do principe a convocação de uma assemblea geral constituinte para o Brazil.

Interprete fiel dos votos do povo, o senado da camara dirigio á 23 do mesmo mez ao principe uma representação solicitando a convocação d'assemblea.

A proposta do principe foi já a de um monarcha constitucional.

« Fico sciente da vontade do povo do Rio; e tão depressa saiba a das mais provincias, ou pelas camaras ou pelos procuradores geraes, então immediatamente me conformarei com os votos dos povos deste...reino »...

Instalado o conselho de procuradores de provincia dirigio no dia 3 de Junho ao principe identica representação. O ministerio conformou-se, e nesse mesmo dia lavrou-se o decreto, que outorgou ao Brazil o poder legislativo e convocou a assemblea constituinte.

A independencia estava definitivamente firmada.

XII.

Ao passo que José Bonifacio assim inaugurava o systema constitucional no paiz com a placidez do estadista, desenvolvia igualmente a maior actividade e firmeza na sustentação dos direitos do novo imperio, que ora começava a constituir-se.

No gabinete e no campo da acção sua energia não se desmentia.

No dia 15 de Fevereiro de 1822 a divisão auxiliadora portugueza ao mando do general Avilez, que resistira tenazmente á nova ordem de cousas, foi forçadamente compellida a embarcar-se para Portugal; e a revolução seguio seu curso mais desassombrada.

Em 24 de Março desse mesmo anno foi obrigada a regressar a Lisboa a esquadra que viera buscar o principe regente. A bandeira lusitana recuava espavorida ante o pendão triumphante da nacionalidade brasileira.

Para sellar essa grande obra da libertação politica do paiz, o decreto do 1º de Agosto de 1822 ordenou que fossem repellidas como inimigas, quaesquer tropas portuguezas enviadas ao Brasil: documento notavel, que proclamou sem rebuço á face do universo a independencia politica da terra de Santa Cruz.

No mesmo dia, em um manifesto solemne dirigido aos povos do Brasil, desprendia-se dos labios do principe este grito energico, que repercutio de valle em valle, como o verbo omnipotente da independencia americana; «Do Amazonas ao Prata não retumbe outro echo que não seja independencia.»

A 6 de Agosto o Brasil, quebrados os grilhões coloniaes, dirigia-se ás nações amigas já em nome de um povo livre.

A causa da liberdade estava triumphante.

XIII.

As difficuldades, porém, recresciam. Apenas quatro provincias acceitaram a nova ordem de cousas: S. Paulo, Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul. Receiosas umas, dominadas outras pelas tropas portuguezas, recusaram adherir á causa da independencia.

Não se consumam as grandes revoluções sociaes sem largos sacrificios, sem a lucta do patriotismo com as velhas idéas. O norte do imperio debatia-se presa das dissenções civis, entregue ás depredações das tropas portuguezas. O mando da metropole não podia expirar sem rodear-se de victimas. O nome de Madeira lá está escripto em letras de sangue.

Renhida lucta travou-se no paiz por largo tempo e a sabedoria do governo de então, ajudada pela energia da vontade nacional, deu-nos a victoria.

Lord Cokrane foi chamado do Chile ao serviço do Brasil. Em breve uma esquadrilha com forças sufficientes, sob seu commando sulcou as aguas do norte, e as provincias da Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Piauhy e Ceará entraram na grande communhão brasileira.

A bandeira da independencia tremulava ufana em todos os pontos da antiga colonia.

A gloria de Jasé Bonifacio ficou escripta em todos esses feitos, seu nome symbolisa na historia o grande periodo da libertação de um povo.

XIV.

Conseguido o triumpho e depostas as armas, seus olhos volveram-se de novo para os negocios internos do paiz.

Destruindo o passado, cumpria conservar o presente, organisar o futuro.

Uma revolução, por mais pacifica que seja, é sempre em seu curso seguida de incidentes, que produzem na ordem social grave oscillação.

Com a queda do passado abalam-se os espiritos, apparecem as convulções politicas.

Ao homem de estado cumpre acompanhar esses acontecimentos em sua marcha e garantir contra elles a segurança publica, firmando a paz nos espiritos.

Depois da independencia, os animos até então unidos nessa grande lucta, dividiram-se e a agitação interna apparece no paiz.

Alguns patriotas mais exaltados exigiam, que o imperador prestasse juramento previo de cumprir e fazer executar a constituição, que fizesse a constituinte. Outros porem entenderam, que tal acto importava quebra da autoridade do imperador, e que era impolitico um tal passo. As sociedades secretas trabalhavam activamente e assim accumulava-se de dia á dia vasto combustivel para uma agitação politica.

A ordem social via-se compremettida nesse movimento.

O novo imperio, sahido ha pouco do seio da revolução, trazendo ainda em suas entranhas esse germem de dissolução, vacillava, mal seguro ainda para assistir a essa lucta.

A situação era gravissima e as dissensões intestinas podiam rasgar a pagina gloriosa da independencia.

Impressionado por esses acontecimentos, assustado com o seu alcance, José Bonifacio, homem de acção e energia, tomou sobre si a responsabilidade de uma medida severa e extensa, que tem sido julgada diversamente.

Deportou os principaes cidadãos que suppunha implicados nessa combinação politica e mandou abrir uma devassa para cortar o trama dos conspiradores. [9]

Embora inspirada pelo patriotismo e praticada com puras intenções, a verdade historica attesta, que essa medida foi nimiamente severa e que cumpria haver mais moderação em uma epocha critica, em que as posições extremas, principalmente no governo, provocam reações.

Desde então uma coalisão poderosa formou-se contra o grande ministro, que entretanto media-se, como um gigante, contra as difficuldades da situação, e applicava sua attenção á organisação politica do imperio.

«Em politica não consiste a difficuldade em des truir um governo, mas sim em constituir outro novo; bellos são por sem duvida os dias do triumpho; succedem-lhes porém depois os embaraços, e menos difficultoso é vencer do que manter-se e sustentar-se: o successo é pela maior parte das vezes effeito da sorpresa; a duração unicamente constitue o que é vida e o que é força. » [10]

A grande causa da liberdade constitucional estava ganha para o paiz. Mas o pacto social, a sancção legal da revolução, não estava ainda feito.

Incumbida dessa grande missão, a constituinte abrira-se solemnemente no dia 3 de Maio de 1823.

XV.

José Bonifacio comprehendeo a gravidade da situação, a responsabilidade que lhe cabia n'essa occasião solemne e arriscada, que ia decidir dos destinos. de sua patria.

Ministro e deputado, homem do poder e homem da revolução, cumprio o seu dever com honra, harmonisando sabiamente os direitos dos povos com as exigencias da autoridade.

E' essa talvez a parte mais importante da sua vida, e aquella em que menos de accordo estão os biographos, que nol-a historiáram. [11]

Não se julgam os grandes nomes da historia sem um severo exame de seus feitos.

Cumpre não aventurar conjecturas sobre o passado, e para isso convem deixar fallar os factos, e dedusir a verdade historica dos monumentos escriptos, que uma época lega ao futuro.

No discurso de abertura da constituinte, documento solemne que proclamou os dogmas da revolução lêm-se estas palavras notaveis, que honram o publicista mais liberal:

« Espero que me ajudeis á desempenhar (a minha promessa), fazendo uma constituição sabia, justa, adequada, e executavel, dictada pela rasão, e não pelo capricho, que tenha em vista sómente a felicidade geral, que nunca póde ser grande, sem que esta constituição tenha bases sólidas, bases, que a sabedoria dos seculos tenha mostrado que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade aos povos, e toda a força necessaria ao poder executivo. Uma constituição, em que os tres poderes sejam bem divididos, de fórma que não possam arrogar direitos, que lhe não compitam; mas que sejam de tal modo organisados e harmonisados, que se lhes torne impossivel, ainda pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos, e cada vez mais concorram de mãos dadas para a felicidade geral do estado.

« A final uma constituição, que pondo barreiras inacessiveis

ao despotismo quer real quer aristocratico, quer democratico, afugente a anarchia, e plante a arvore daquella liberdade, á cuja sombra deva crescer a união, tranquilidade e independencia deste imperio. [12] »

Defendendo no seio da constituinte essas palavras do monarcha contra uma vehemente opposição, José Bonifacio, arrastado pelo ardor de suas convicções, assim exprimio-se:

« .... Que quer este povo, e para que tem trabalhado até agora tanto o governo? Para centralisar a união e prevenir as desordens, que procedem de principios revoltosos. O povo do Brazil quer uma constituição, mas não quer demagogia e anarchia; assim o tem declarado expressamente e é uma verdade de que hoje não póde duvidar-se.......

.... « Estou certo que todos nós temos em vista um só objecto: uma constituição digna do Brazil, digna do imperador e digna de nós. Queremos uma constituição, que nos dê aquella liberdade de que somos capazes, aquella liberdade que faz a felicidade do estado, e não a liberdade que dura momentos, e é sempre a causa e o fim de terriveis desordens. Que quadro nos apresenta a desgraçada America? Ha quatorze annos que se dilaceram os povos, que tendo sahido de um governo monarchico pretende estabelecer uma licenciosa liberdade, e depois de terem nadado em sangue, não são mais que victimas da desordem, da pobreza e da miseria!

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... « Emfim confiemos nos principios constitucionaes do Imperador, e procuremos com todas as forças fazer feliz a nossa patria: oxalá que eu pudesse firmar sua permanente ventura! Mas protesto á face d'assembléa e á face do povo, que não concorrerei para a formação de uma constituição demagogica [13], mas sim monarchica, e que serei o primeiro a dar ao Imperador o que realmente lhe pertence. » [14].

José Bonifacio foi um dos vultos mais proeminentes dessa famosa constituinte, que se compunha das maiores illustrações, que apresentou a geração da independencia.

Sua fronte elevava-se altiva, allumiada pelo reflexo de um passado illustre. Sua palavra autorisada, embora despida das formulas oratorias, traduzia a firmeza de seu caracter. Era antes homem de gabinete, do que de tribuna. Seus discursos são áridos e breves, porém animados e vehementes.

Os vastos conhecimentos, de que dera prova nunca desmentida durante largos annos, não podiam ser desaproveitados na feitura da nova constituição.

Apenas installada a constituinte, foi eleito membro da commissão encarregada de elaborar o respectivo projecto de constituição, da qual era relator seu irmão Antonio Carlos.

Além desse importante trabalho, em que firmou sua reputação de publicista e consummado legislador, o illustre brasileiro prestou como deputado no seio da constituinte grandes serviços á causa da organisação do novo imperio.

José Bonifacio era um homem de espirito formado, de estudos feitos, experimentado na administração, dado ao trabalho, profundo pensador politico, versado nas materias de governo.

Suas memorias revelam o vasto cabedal de conhecimentos, que adquirira na pratica dos negocios e na gestão administrativa. A instrucção publica, a cathechese de indios, a extincção do trafico e outras questões importantes já então occupavam sua attenção.

Como deputado elaborou varias memorias de subido interesse e utilidade publica, e as offereceu á constituinte para serem traduzidas em lei, as medidas por elle lembradas [15]. Em todos estes trabalhos José Bonifacio revela-se um espirito superior, de vistas largas e patrioticas. Homem de gabinete, dotado de uma vasta previsão politica, occupava-se já com a solução de questões, que ainda hoje prendem com os destinos do paiz, como uma importante these de nosso porvir.

XVI.

Mas já a estrella de José Bonifacio caminhava a passos largos para os seus dias sombrios.

A situação era cheia de difficuldades. A excessiva energia do ministro em uma crise politica, ferindo profundamente os seus inimigos, determinou o apparecimento de uma opposição vehemente, como sempre acontece. A luta travára-se mesmo no seio da Constituinte; e no dia 17 de Julho de 1823, o fundador da independencia brasileira descia do poder, legando ao futuro sua gloria symbolisada na creação de um imperio.

Armitage, o mais severo censor dos Andradas, escrevendo sob a inspiração de um adversario politico destes, rendeu homenagem ao patriotismo de José Bonifacio; e sua gloria não empallidece ante o juizo do escriptor inglez:

« As suas vistas eram extensas, e sua probidade illibada. Foi José Bonifacio quem fixou as resoluções do voluvel D. Pedro; quem lhe fez sentir o contraste entre governar um imperio nascente, ou um reino em decadencia; e quem representando-lhe a perda do Brasil como inevitavel se se retirasse; reanimou a espirante ambição deste principe e conduzio a revolução effectuada com muito pequeno sacrificio, e quasi sem derramamento de sangue. O desinteresse de José Bonifacio e de seu irmão Martim Francisco é altamente digno de elogio. Honras e riquezas estiveram a seu alcance; comtudo retiraram-se do poder sem titulos nem condecorações, e em honrosa pobreza. Muitos de seus actos são com effeito censuraveis; todavia, considerando-se o estado critico do Brasil naquella época, algumas desculpas se deve dar a seus erros. » [16].

XVII.

Descido do poder, José Bonifacio retrahio-se ao silencio, desapprovando a direcção, que, seus successores davam aos negocios publicos.

Já então um vago presentimento de seus infortunios futuros anuviara-lhe a fronte.... Que nobreza de sentimentos, que elevação de espirito respira nessa pagina intima, que a dôr arrancou-lhe no meio das pungentes angustias de suas decepções politicas?

«.... uma amavel e virtuosa companheira que tenho, um verdadeiro amigo.... e alguns bons livros são as unicas necessidades da vida, que não posso ainda escusar.

« Acolher-me ao retiro dos campos e serras, que me viram nascer, folhear alli algumas paginas do grande livro da natureza, que aprendi a decifrar com aturado e longo estudo, sempre foi uma das minhas mais doces e suspiradas esperanças, que praza ao céo possa eu vêr de qualquer modo, comtanto que seja bem cedo realisada...

« .... Cada vez mais me persuado que não nasci senão para homem de letras... No retiro do campo terei tempo (que sempre até agora me tem fugido) de dar á ultima mão á redacção das minhas longas viagens pela Europa, aos meus compendios de metalurgia e de mineralogia, e a varios opusculos e memorias de phylosophia e litteratura, fructos de larga e aturada applicação, que, se lhes não acudo já, estão em perigo de ser pasto de baratas e cupi. Senão servirem para o Brasil, como creio, servirão talvez para os doutos da Europa, que conheço e me conhecem. E que maior consolação póde tér um amante das sciencias e boas-artes, que communicar suas idéas e pensamentos á quem póde entendel-os e aproveital-os? E' um prazer puro da alma espalhar pelo mundo o fructo de seus estudos e meditações, ainda sem outra remuneração que a consciencia de fazer bem. O sabio despresa as satyras e ingratidões de animos vis, que não podem deixar de reputar-se, queiram ou não queiram, muito inferiores aos homens de virtude e de saber. [17] »

Desenganado pelas decepções, vendo desfolhar-se uma a uma todas as suas viçosas esperanças, o illustre sabio almejava refugiar-se na placida serenidade da vida litteraria contra o embate das paixões politicas.

Nem isso lhe foi dado.

Faltava-lhe ainda o ostracismo, o prestigio da proscripção para pôr em relevo seu civismo, e collocar seu nome ao lado dos maiores vultos historicos.

Em sua nobre fronte devia estampar-se o sello severo do infortunio, que assignala em todas as épocas os filhos da liberdade.

No dia 12 de Novembro de 1823 a constituinte foi dissolvida á força armada, e José Bonifacio, o homem que creára uma nacionalidade, foi violentamente preso e deportado para a França em companhia de seus irmãos. [18] A facção portugueza exultou. O sol da independencia empallideceu, e um crepe negro estendeu-se sobre a face do novo imperio.

XVIII.

Atirado ás plagas do estrangeiro, victima de cruel ingratidão, com a alma ulcerada por dôres profundas, José Bonifacio volveu de novo os olhos para o seu tão doce passado litterario, e adquirio perante a posteridade novos titulos de gloria.

Os espiritos elevados têm comsigo esse nobre apanagio a adversidade não os atterra. Longe de prostral-os, apura-lhes a intelligencia e alenta-lhes as forças abatidas.

O litterato, sobretudo aquelle que dedicou-se ao culto das idéas, nada tem a temer na terra.

Na hora suprema do infortunio apparece-lhe, para consolal-o, a inspiração da poesia, como um alivio que o céo manda nessa hora solemne aos seus predestinados.

Onde os espiritos vulgares só encontram espinhos, o poeta colhe flores e traduz suas angustias em canticos sublimes. «Nada ha como a proscripção para descobrir os mysterios do coração humano; basta que a intelligencia se concentre no seu pensar para que harmoniosas vibrem as cordas da harpa celeste, que reside n'alma; a poesia apparece sempre magestosa e sublime nas amarguradas e solemnes horas do exilio; é o anjo que esvoaça em torno, alimentando as saudades da patria com o balsamo suave e resignado da religião: é o cysne que solitario e bello, melancolico e amoroso, corta as aguas do lago, e como que pranteia a ausencia da companheira; as aguas do rio que corre placidamente, o vento que sussurra nas palmeiras, o cantico que a ave agreste das solidões echôa, como echoou nos primeiros dias da vida, na idade infantil, tudo é poesia no exilio, porque a imaginação se perde na eternidade o pensamento vôa e o homem se não prende a terra se não pelo vinculo da dor saudosa dos passados pra- zeres. » [19]

Na mocidade, em os bellos tempos de sua vida academica, José Bonifacio sacrificara as musas compondo poesias de subido estró e animação, em que apparece o grande cabedal de erudição, que possuia nas litteraturas antigas e modernas. [20]

A politica viera depois partir a cadêa brilhante de suas tradições litterarias.

Agora, porem, votado ao ostracismo pela ingratidão de sua patria, essa victima illustre refugiou-se nas recordações do passado e exhalou em hymnos sublimes as angustias supremas de sua alma.

Que nobre elevação de espirito, que dignidade altiva tranluz nessa ode sublime que elle dedicou ao poeta desterrado!

«O' lyra brasileira que inspiravas,
Com teus hymnos, no peito amor de glorias,
Tu que o pranto da esposa suspendias,
Quando ausente o guerreiro;

Ora do triste vate no desterro
Já não accendes de Mavorte o fogo:
Nem cantas os tropheos da patria amada
Com magica harmonia.

Fica pois, lyra inutil, pendurada
De secco ramo, ou temperada agora
Em tom mais brando, vai soar tristonha
Em acanhado estylo.

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Ah! Não digas, oh! zoilo, mal, do vate,
Se ainda se acolhe de Narcinda ao seio
Pois no meio dos sonhos dos amores
Tambem co'a patria sonha.

Para a molesa não nasceu o vate
Em ditosos dias chammejava
Sua alma ardente, de heroismo cheia,
Quando uma patria tinha!

A corda que cicia docemente
Sobre a dourada lyra malfadada,
Otr'ora ousou curvar arco guerreiro,
Vibrar rapida setta.

Os labios, que ora volvem molles versos,
Lá levantar souberam da vingança
Grito tremendo, a despertar a patria
Do somno amadornado!

Mas de todo acabou da patria a gloria!
Da liberdade o brado, que troava
Pelo inteiro Brasil, hoje emmudece
Entre grilhões e mortos!

Sobre suas ruinas gemem, choram,
Longe da patria os filhos foragidos:
Accusa-os de traição, porq'a a amavam
Servil, infame bando.

Ah! não digas, oh! zoilo, mal do vate,
Se aos lares seus não volta acicalado,
Subito ferro afogaria o grito
Que pela patria erguesse!

Alli da santa liberdade os filhos,
Esses poucos que restam, fugidios,
Vivem inglorios, pois as honras dão-se
A' perjuros escravos.

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Que um raio de esperança o fado accenda,
Que um relampago só penetre as trevas,
Que o seu Brasil envolvem, nesse instante
Em pé se alçará forte!

Então seu coração no altar sagrado
Da liberdade deporá ligeiro
A branda lyra; então com nova murta
Coroará a espada.

Oh! quanto é forte um vate, se nutrido
Entre perigos foi! Se denodado
Da morte os brados retumbar ouvira
Com não mudado rosto!

Que um Thrasybulo novo se levante
C'um punhado de heroes, a tyrannia
No ensaguentado throno, já instante
Cahirá aos pés exangue.

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Adeus, ó lyra; basta: já se embruscam
Cada vez mais os ares: — sombra espessa
Envolve em torno a placida ramada,
Em que teu vate geme.

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Adeus, emfim, adeus lyra piedosa!
Ah! quantas vezes o teu pobre vate
Ameigava comtigo a dôr profunda
Em desveladas noites! »

Não ha aqui esse cadenciar harmonioso, essa morbidez e suavidade de fórma, que caracterisam as creações das almas ternas e sensiveis. O pensamento, descompassado como a dôr, vasa-se em moldes incorrectos. Alguns versos são talvez asperos e daros : mas ha nas imagens e nas idéas tal firmeza e elevação de pensamento, que recordam os mais bellos modelos desse genero.

Sente-se o carpir pungente da dôr, o grito omnipotente do proscripto, que se traduz em maldição contra a patria.

Porém o poeta, como o homem justo de Horacio, tem a fronte altiva e desassombrada, e desdenha a adversidade que o tortura.

A mesma valentia de inspiração e altivez de animo revelam-se ainda em mais subido gráo na sua admiravel ode aos Bahianos:

« Altiva Musa, ó tu, que nunca insenso
Queimaste em nobre altar ao despotismo;
Nem insanos encomios proferiste
De crueis demagogos.

Ambição de poder, orgulho e fausto,
Que os servis amam tanto, nunca, ó Musa,
Accenderam teu estro — a só virtude
Soube inspirar louvores.

Na abobada do templo da Memoria
Nunca comprados cantos retumbaram
Ah! vem, ó Musa, — vem, na lyra d'ouro
Não cantarei horrores.

Arbitraria fortuna! Despresivel
Mais que essas almas vis, que a ti se humilham,
Prosterne-se á teus pés o — Brasil todo,
Eu nem curvo o joelho!

Beijem o pé, que esmaga, a mão q'açoita,
Escravos nados sem saber, sem brio;
Que o barbaro Tapuya deslumbrado
O deos do mal adora.

Não — reduzir-me a pó, roubar-me tudo,
Porém nunca aviltar-me, póde o fado
Quem a morte não teme, nada teme
Eu n'isto só confio.

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Embora nos degráos de excelso throno
Rasteje a lesma, para ver se abate
A virtude, que odeia; a mim me alenta
Do que valho a certesa !

E vós tambem, Bahianos, despresastes
Ameaças, carinhos; desfizestes
As cabalas, que perfidos urdiam
Inda no meu desterro!

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Amei a liberdade, e a independencia,
Da doce, cara patria, a quem o Luso
Opprimia sem dó, com riso e mofa.
Eis o meu crime todo!

Cingida a fronte de sangrentos louros,
Horror jámais inspirará meu nome;
Nunca a viuva ha-de pedir-me o esposo,
Nem seu pai a criança!

Nunca aspirei á flagellar humanos,
Meu nome acabe, para sempre acabe,
Si para o libertar do eterno olvido
Forem precisos crimes!

Morrerei no desterro, em terra estranha,
— Que no Brasil só vis escravos medram —
Para mim o Brasil não é mais patria,
Pois faltou á justiça.

Valles e serras, altas mattas, rios,
Nunca mais vos verei — sonhei outr'ora,
Poderia entre vós morrer contente...
Mas não-monstros o vedam.

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De estranha emulação acceso o peito,
La me ia formando a phantasia
Projectos mil para vencer mil ocios,
Para crear prodigios!

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Doces visões, fugi! Ferinas almas
Querem que em França um desterrado morra!
Já vejo o genio da certeira morte
Ir afiando a foice!

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Que o Brazil inclemente ingrato ou fraco,
A's minhas cinzas um buraco negue
Talvez tempo virá, que ainda pranteie
Por mim com dôr pungente.

Exulta, velha Europa! O novo imperio,
Obra prima do ceo, por fado impio,
Não será mais o teu rival altivo
Em commercio e marinha.

Aquelle que gigante inda no berço
Se mostrava ás nações, no berço mesmo
E' já cadaver de crueis harpyas,
De malfasejas furias!

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Rutilava então no horisonte europeo a aurora da libertação da Grecia. Foi como um raio de luz e de esperança trasido ao seio das angustias do proscripto brasileiro.

Transportado de jubilo e enthusiasmo por esse acontecimento grandioso, que rasgara perante a Europa a pagina negra da dominação turca, José Bonifacio afferrolhou no fundo do coração amargurado os males da patria, prendeo aos labios um pallido sorriso de contentamento, e em uma ode inspirada cantou a liberdade d'esse berço prestigioso da civilisação humana:

« Oh! Musa do Brazil, tempera a lyra,
Dirige o canto meo, vem inspirar-me
Accende-me na mente estro divino
De heroico assumpto digno!

Se comigo choraste os negros males,
Que a saudosa cara patria opprimem,
Da Grecia renascida altas façanhas
As lagrimas te sequem!

Se ao curvo alfange, se ao pelouro ardente
Politica malvada a Grecia rende;
As bandeiras da cruz, da liberdade,
Farpadas inda ondeiam.

Como as gotas da chuva, o sangue ensopa
Arido pó de campos devastados;
Como do funéral lugubre sino,
Gemidos mil retumbam.

Perecerás, ó Grecia, mas comtigo
Murcharão de Albion honra e renome.

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Não desmaies, porém; a divindade
Roborará teu braço; e na memoria
Gravará para exemplo, os altos feitos
Dos illustres passados.

Eis os mirrados ossos já se animam
De Melciades, lá na campa fria
Ergue a cabeça e grito dá tremendo
Para acordar os netos.

Hellenos, brada, o' vós prole divina,
Basta de escravidão, não mais opprobios!
E' tempo de quebrar grilhão pesado,
E de vingar infamias.

Se arrasastes de Troya os altos muros
Para o crime punir, que amor causára,
Então porque soffreis ha largos annos
Estupros e adulterios?

Foram assento e berço ás doutas musas
O sagrado Hellicon, Parnaso e Pindo:
Moral, sabedoria, humanidade
Fez vecejar a lyra.

Ante Hellenicas proas se acamava
Euxino, Egeo — e mil colonias iam
Levar artes e leis ás rudes plagas
E da Lybia e da Europa.

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Se Sparta ambiciosa, Athenas, Thebas,
O fratricida braço não tivessem
Em seu sangue banhado, nunca a Grecia
Curvára o collo a Roma.

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Assás sorvestes já milhões de insultos.
Já longa escravidão pagou teus crimes,
O céo tem perdoado. Eia, já cumpre
Ser Hellenos, ser homens.

Eia, gregos, jurae, mostrae ao mundo
Que sois dignos de ser quaes fostes antes:
Eia, morrei de todo, ou sêde livres. —

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...... A Grecia inteira brada:
Ou liberdade, ou morte!

As poesias de José Bonifacio tornam-se notaveis pelo vigor da inspiração, valentia do pensamento e energia da expressão.

O que haverá nas odes de Horacio mais vigoroso do que essa feliz imagem da poesia?

Nem mil estatuas de fundido bronze,
Nem marmores de Paros
Vencem as iras de Saturno idoso:
Arrasam-se pyramides soberbas,
Sotterram-se obeliscos,
Resta uma Illiada e uma Eneida resta! [21]

XIX.

Em 1829, depois de gemer sete annos no exilio, José Bonifacio retirou-se ao Brasil. [22]

Já então impalledecida a estrella do imperador declinava para o seu occaso.

Os erros politicos da administração haviam trasido o paiz á uma situação anormal. O monarcha quasi isolado no seio da nação, em flagrante antagonismo com a opinião liberal, tão poderosa nessa epocha.

Aproximavam-se os dias sombrios da revolução...

Desenganado por uma dolorosa experiencia, havendo já tocado essa quadra fria e tristemente dosoladora da velhice, o illustre proscripto beijou a terra de sua patria, quando já os acontecimentos iam dizer sua ultima palavra.

Conservou-se, nesse pouco tempo, retirado dos publicos negocios, refugiado na solidão de suas sentidas meditações, que mais ainda enlutava a tenebrosa perspectiva do futuro.

A revolução de Abril appareceu.

Nessa crise suprema que ia decidir dos destinos do imperio, na hora solemne em que a adversidade transpunha as avenidas do paço, o monarcha voltou-se para o seu velho amigo, tão injustamente maltratado por elle out'ora, nomeou-o tutor de seus filhos no Brasil, [23] e deixou para sempre a patria, que adoptára ; rasgo de grandesa de duas almas generosas, que se comprehenderam no dia do infortunio!

XX.

Então novas provações, por ventura mais pungente começaram para o illustre ancião.

Desassombrada do unico embaraço que a continha, a revolução seguio seu curso, impellida pela exaltação delirante do triumpho.

O paiz abalára-se profundamente; e a commoção dos espiritos deixava antever os perigos da situação politica.

Os Andradas haviam sempre desapprovado o movimento de 7 de Abril. D'ahi o perpetuo antagonismo em que se achavam com a nova ordem de cousas; a antipathia profunda, que lhes votou a revolução. Entretanto, na sessão de 22 de Junho de 1831, José Bonifacio tomou assento na camara como deputado pela Bahia. As suas primeiras palavras por essa occasião proferidas, devem ser aqui lembradas:

« Quem diria, Sr. presidente, que eu, velho e cançado, teria ainda a satisfação de entrar n'este recinto, e de assentar-me neste mesmo banco onde fora preso e deportado sem crime algum, quando collaborava para a factura da constituição, que o Brazil só tinha

direito de fazer! Velho e cançado, eu teria bastante motivo para me excusar da honra, que se me quiz fazer, se não fosse tambem movido pela gratidão para com a briosa provincia da Bahia, que duas vezes luctou contra as cabalas promovidas á impedir que podesse aqui levantar a voz em prol da patria. »

Em uma crise agitada como esta de 1831, a posição de José Bonifacio em frente de um governo hostil, tornava-se sobremodo difficil.

Firme em seu posto de honra, velando junto ao berço que lhe fora confiado, o tutor, olhado sempre com pela desconfiança e suspeita para a revolução, não tardou em ser arrastado pela lava encandecida das paixões politicas n'essa época de apprehensões sinistras, em que o espirito publico profundamente abalado, de tudo se arreceiava.

Suppondo-o connivente com a restauração, o governo suspendeu a José Bonifacio das funcções de tutor, arrancou-o violentamente do paço imperial, e mandou-o condusir preso, no meio da força publica, á ilha de Pequetá. [24]

XXI.

Deu-se então um d'esses espectaculos da historia antiga , em que a ingratidão nacional era a coroa de gloria dos grandes homens.

Depois de ver sua casa apedrejada pela populaça, e seu nome coberto de improperios nos asiagos dias de Dezembro de 1833, José Bonifacio, o credor da nacionalidade brasileira, foi arrastado ao escabello dos réos, e ahi respondeu á um processo, que o inculpava de traidor á patria!

Honrosamente absolvido, o illustre sabio, sobre cuja fronte cahira por mais de uma vez o raio das tempestades politicas, recolheu-se ao retiro do gabinete na ilha de Paquetá, e ali passou seus ultimos dias; rodeado de seus amigos, entregue todo aos cuidados da sciencia.

A mesma estrella, que lhe rutilára na manhã da vida, veio illuminar-lhe os derradeiros momentos da existencia.

Deos sabe as amargas decepções, a agonia lenta, porque passou esse ancião venerando, maltratado pela ingratidão de sua patria, ferido pelo ostracismo por esse mesmo povo que elle arrancára das mãos do absolutismo !.....

Vasada nas rudes provações do infortunio, sua existencia ia terminar. Os corações brasileiros cobriram-se de luto....

No dia 6 de Abril de 1838 falleceu em S. Domingos o conselheiro José Bonifacio de Andrade e Silva. [25]

Seu corpo embalsamado foi, por disposição testamentaria, remettido a Santos, onde descança na terra humilde de seu berço.

XXII.

José Bonifacio de Andrada e Silva, é o vulto grandioso de nossa independencia. Seu nome perdura eterno nas tradições do povo, e é repetido com religioso enthusiasmo por uma nação inteira. Sua vida, agitada por tantas vicissitudes, symbolisa um dos mais brilhantes episodios da liberdade.

A creação de uma nacionalidade, a organisação de um imperio, eis sua existencia.

Essa patria que temos, essa nobre liberdade que gosamos e que faz o nosso orgulho, tudo lhe devemos.

E' já tempo de quebrar o silencio criminoso da ingratidão e de perpetuar pela voz da historia os feitos brilhantes de nossos maiores.

O passado de nossa terra tem muita grandeza, para que o esqueçamos nós, os herdeiros de tantas glorias.

Todas as nações glorificam os grandes homens de sua patria. Não seremos nós os brasileiros, quem havemos de pagar o beneficio com a ingratidão.

Para riscar da face da terra o nome de José Bonifacio, fora preciso proscrever uma nacionalidade inteira!

Notas

[editar]
  1. Por engano, dizem alguns biographos, que Jose Bonifacio, nasceu no dia 13 de Julho de 1765. A seguinte certidão, que tenho em meu poder, remove toda duvida á respeito.

    Certifico e juro aos Santos Evangelhos que em o livro competente desta parochia, á fls. 28 v., acha-se o assento cujo é o theor seguinte: — Aos dezoito do mez de Junho de mil setecentos e sessenta e tres annos, nesta igreja matriz, baptisei e puz os Santos Oleos á José Antonio, innocente, filho legitimo de Bonifacio José de Andrada e de sua mulher Maria Barbara da Silva, naturaes desta villa, netto por parte paterna do coronel José Ribeiro de Andrada, natural da freguezia de S. Martinho, cabeceiras de Basto, e de sua mulher Anna da Silva Borges, natural desta villa de Santos, e pela materna netto de Gonçalo Fernandes Souto, natural da freguezia de S. Thiago, comarca de Villa Real, arcebispado de Braga, e de sua mulher Rosa de Viterbo da Silva, natural desta villa: foram padrinhos Manoel Angelo Ferreira e Ignacia Maria, mulher de Bartholomeu Julio, todos desta freguezia, O vigario, Domingos Moreira da Silva. Nada mais em dito assento á que me reporto. Santos, 11 de Junho de 1860. — O vigario, Joaquim José de Sant'Anna.

    O primitivo nome de José Bonifacio foi José Antonio, segundo verifiquei, e porisso vem assim mencionado nesta certidão, que devo á obsequiosidade do Sr. Dr. Antonio Pereira dos Santos, residente na cidade deste nome.

  2. Veja-se Historia Geral do Brasil pelo Sr. P. A. de Varnhagen, 2°, 283; e Revista do Instituto Historico, 4°, 415, e 8°, 122.
  3. Antes de começar sua viagem pela Europa, José Bonifacio apresentou á Academia Real de Sciencias de Lisboa uma Memoria sobre a pescaria da baleia, melhores processos para a extracção do seu azeite, e grande vantagem que della resulta para Portugal e seus dominios. Foi publicada na collecção de Memorias da Academia.
  4. Apezar de todas as deligencias, não pude vêr estes trabalhos que aqui menciono apoiado na autoridade do Sr. Dr. Emilio Joaquim da Silva Maia, que no seu Elogio Historico de José Bonifacio, affirma tel-os visto na collecção do autor; Revista do Instituto Historico, 8°, 116.
  5. O decreto de 14 de Maio de 1821 (Collecção Nabuco,) reconheceu os bons serviços praticados com muita intelligencia pelo Dr. José Bonifacio de Andrada e Silva, nestas commissões.
  6. Memoria sobre as minas de carvão de pedra de Portugal (datada de Lisboa, 8 de Novembro 1809;) publicada no Patriota, jornal litterario do Rio de Janeiro, 2ª subscripção 1813, n. 1, pag. 11; n. 2, pag. 21; n. 3, pag. 3.
    « Memoria sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos em Portugal: mandada publicar pela Academia Real de Sciencias de Lisboa, em 1815.
    « Memoria sobre a nova mina de ouro da outra banda do Tejo, chamada Principe Regente. » Lida em 10 de Maio de 1815 na Academia, e publicada em suas respectivas Memorias em 1817, tomo 5°, , pag. 140.)
    « Memoria minerographica sobre o districto metallifero entre os rios Alve e Zezere (1816)
    « Memoria sobre as pesquizas e lavra dos veios de chumbo de Chaeim, Souto, Veutozello e Villar de Rey na provincia de Traz-os-Montes. » Publicada nas Memorias da Academia, tomo 5°, parte 2ª, 1818, pag. 77.
  7. « Discurso, contendo a historia da Academia das Sciencias desde 25 de Junho de 1814 até 24 de Junho de 1815, por José Bonifacio de Andrada e Silva, secretario da mesma Academia; tomo 4º das Memorias, parte 2ª, pag. 1.
    Discurso historico recitado na sessão publica de 24 de Junho de 1818, pelo secretario José Bonifacio de Andrada e Silva; tomo 6º, parte 1ª, 1819, pag. 1.
    Discurso historico recitado na sessão publica de 24 de Junho de 1819 pelo secretario J. B. de A. e Silva; tomo 6°, parte 2ª. 1820, pag. 1. — Foi o ultimo: nelle despede-se de Portugal.
    Eram membros da Academia Real de Sciencias de Lisboa nesse tempo, os brasileiros:
    José Bonifacio de Andrada e Silva, secretario até 1819.
    Francisco Villela Barbosa, vice-secretario.
    Francisco de Mello Franco.
    José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho.
    Manoel Ferreira da Camara de Bittencourt Sá.
    Correspondentes:
    Balthasar da Silva Lisboa.
    Diogo de Toledo Jara Ordanhas.
    João da Silva Feijó (Ceará.)
    Guilherme Eschewege, barão de Eschewege (estrangeiro, ao serviço do Brazil.
    José Egydio Alvares de Almeida, depois Marquez de Santo Amaro.
    Manoel Jacintho Nogueira da Gama.
    Vicente José Ferreira Cardoso.
    José Lino Coutinho.
  8. Foram membros deste ministerio de 16 de Janeiro de 1822:
    Negocios do reino e estrangeiros, José Bonifacio de Andrada e Silva;
    Fazenda, Caetano Pinto de Miranda Montenegro e Martim Francisco Ribeiro de Andrada (4 Julho;)
    Guerra, Joaquim de Oliveira Alvares, Luiz Pereira da Nobrega de Souza Coutinho (27 de Junho) e João Vieira de Carvalho (28 de Outubro de 1822);
    Marinha, Manoel Antonio Farinha, conde de Sousel, Luiz da Cunha Moreira (28 de Outubro);
  9. Veja-se o decreto de 30 de Outubro de 1822, e portaria do ministerio do imperio de 11 de Novembro do anno, (collecção Nabuco, 3°, pag. 347).
  10. Plutarcho Brazileiro, pelo Sr. Dr. João Manoel Pereira da Silva, 2°, 129 (1ª eleição.)
  11. O illutrado autor do Plutarco Brazileiro (2° 129 á 133) censura José Bonifacio por adoptar tendencias ultrademocraticas e comprometter assim a cauza do poder, como ministro. Armitage, na sua Historia do Brazil (pag. 81 e 82) mutilla desapiedadamente as palavras de José Bonifacio na Constituinte, e empresta-lhe uma animada increpação contra a democracia, quando aquelle ministro só profligara a demagogia.
    Em presença destes testemunhos oppostos, deixemos fallar os documentos.
  12. Falla do throno, na abertura da constituinte, em 3 de Maio de 1823.
  13. Na Historia do Brazil de Armitage, pag. 82, está substituida esta expressão demagogica pela palavra democratica, o que altera completamente as idéas.
  14. Discurso de José Bonifacio na constituinte, na sessão de 6 de Maio de 1823; Diario da mesma, tomo , pag. 30.
  15. Na sessão de 9 de Julho, José Bonifacio offereceu á constituinte uma memoria sobre a necessidade e meios de edificar no interior do Brasil uma nova capital para assento da côrte, assembléa legislativa e dos tribunaes superiores (Diario da constituinte tomo 1° pag. 187:)
    Apontamentos sobre a civilisação dos indios bravos do imperio ão Brasil, (Diario, tomo 1º, pag. 240.) Integralmente transcripta na Revista do Instituto, tomo 12, pag. 228.
    Memoria e regimen das Universidades do imperio, offerecida no sessão de 22 de Julho (Diario, 1°. 442 ;)
    Representação á assemblea constituinte do Brasil sobre a escravatura. Publicada pelo autor em Paris em 1825. Foi traduzida para o inglez sob o titulo: Memoir addressed ot the general constituent and legislative assembly of the empire of Brasil, on Slavery. By José Bonifacio de Andrada e Silva. Translated from the portuguese by William Walton, London, 1826, in 8⁰.
    Esta memoria elaborada em 1823, não chegou a ser apresentada á constituinte pela sua prematura dissolução. Escripta em um estylo varonil e animado, revela um espirito profundamente pensador e um coração philantropico. A escravidão nunca foi combatida com argumentos mais efficazes. « Tudo, porém, se compensa nesta vida, nós tyrannisamos os escravos e os reduzimos á brutos animais e elles nos inoculam toda a sua immoralidade e todos os seus vicios. » Exclama o autor depois de descrever os males da escravidão. Termina com um projecto de lei seriamente concebido.
  16. Armitage, Historia do Brasil, pag. 90.
  17. Tamoio n° 5 de 2 de Setembro de 1823, pag. 21. Temos certesa que estas palavras, embora assignadas por pseudonimo, são de José Bonifacio. Foi isso declarado na devassa, a que se mandou proceder contra aquelle periodico.
  18. Deu-se nessa viagem da deportação um incidente notavel, que o Sr. Porto Alegre descreve nas seguintes palavras: « Os acontecimentos occorridos naquella inesperada deportação á bordo do navio que os conduzia, eu tremo de os narrar. A historia ainda não divulgou esse horrivel acontecimento, essa especie de Odyssea, esse naufragio sui generis, essas revoltas, essas traições, essas fomes e a energia de José Bonifacio, e as representações ao governo da Hespanha. Mas quando o divulgar; a posteridade ha-de tremer, como eu estremeci ao ouvi-lo da propria boca das victimas, com uma serenidade patriarchal e com aquelle amor, com que narramos os perigos do passado. (Revista do Instituto Historico, suplemento ao tomo 11, pag. 159.)
  19. Plutarcho Brasileiro do Sr. Dr. Pereira da Silva, 2º, 135.
  20. Essas poesias José Bonifacio colleccionou-as no seu desterro, e publicou-as em Bordéos em 1825 sob o titulo — Poesias avulsas de Americo Elysio. São dedicadas aos brasileiros, aos quaes o autor, no prologo, dirige estas palavras: «Que eu seja teu amigo, algumas provas já tenho disto dado; e para t'as continuar a dar no meu desterro, onde as circumstancia, me não permittem mais por ora; ouso offerecer-te estes poucos e desvairados versos — Farpados restos do traquete roto. Além das poesias originaes, figuram nesta collecção traducções em verso de Ossian, da Theogonia de Hesiodo, Olympicas de Pindaro, Noites de Young, Eclogas de Virgilio, Paraphrase dos Psalmos, etc. Os Srs. Eduardo & Henrique Laemmert fizeram uma 2ª edição (Rio de Janeiro — 1861) destas poesias, accrescentando-lhe as odes avulsas do autor e as cantigas bacchicas; edição nitida, ornada com o retrato do autor, e seguida de sua biographia.
  21. Ode á Poesia, feita em 1785.
  22. O Sr. Porto-Alegre descreve assim o feliz regresso de José Bonifacio: «Ainda me recordo da impressão que fizera sua chegada! O nome dos Andradas era um nome fascinador para toda a mocidade do meu tempo; uns descreviam as suas feições e gestos, outros recitavam de cór valentissimos trechos do orador nato, e todos lamentavam sua forçada ausencia; e eu vos asseguro, senhores, que a primeira vez que vi o veneravel José Bonifacio, beijei-lhe à mão, aquella mão tão alva e tão descarnada, que havia firmado a independencie da minha patria!
    (Revista do Instituto, supplemento ao tomo 11, pag. 159.)
  23. « Tendo maduramente reflectido sobre a posição politica deste Imperio, conhecendo quanto se faz necessaria a minha abdicação, e não desejando mais nada neste mundo senão gloria para mim e felicidade para minha patria, hei por bem, usando do direito que a Constituição me concede no cap. 5º, art. 130, nomear, como por este meu Imperial Decreto nomeio Tutor dos meus amados e presados Filhos ao muito probo, honrado e patriotico cidadão José Bonifacio de Andrada e Silva, meu verdadeiro amigo.
    « Boa-Vista, aos 6 de Abril de 1831, decimo da Independencia e do Imperio. Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brasil.
  24. Veja-se a este respeito o notavel discurso do Sr. Arcebispo da Bahia na camara dos deputados, sessão de 1834 (pag. 227 da collecção dos seus discursos parlamentares); e « Defesa do conselheiro José Bonifacio de Andrada e Silva no jury pelo desembargador Candido Ladisláo Japy-Assú. — Rio de Janeiro, 1835.
  25. O decreto de 26 de Abril de 1838, approvado por outro de 15 de Junho do mesmo anno, concedeu ás filhas de José Bonifacio uma pensão « em remuneração dos relevantes serviços pelo mesmo conselheiro prestados á causa da independencia do Imperio. »