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Esfinge (Coelho Neto)/II

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Uma manhã, em alvoroço alviçareiro, Alfredo entrou-me pelo quarto muito risonho e, ainda à porta, arquejando, anunciou que o inglês ia almoçar em baixo, conosco.

Fora ele quem levara o recado. Miss Barkley ficara comovida: cobrira a mesa de flores, fizera subir do jardim tinas de plantas e andava a rondar o cozinheiro, combinando pratos, recomendando o tempero das carnes e a frescura dos ovos e da alface para que soubessem bem ao homem difícil. Duas garrafas de champagne esfriavam a geladeira e aquele suor que o alagava, empastando-lhe o cabelo, era da corrida em que fora ao largo do Machado, procurar costeletas de carneiro e frutas para a sobremesa.

— Mas então... à mesa comum? Indaguei com interesse e incredulidade, e Alfredo, com a vassoura e um pano debaixo do braço, afirmou:

— Sim, senhor. E já lá está, desde cedo, à varanda, com um livro.

Que pena não ser domingo para que todos gozassem a surpresa. Como haviam de sentir, ao saberem o grande caso, Basílio, Péricles, Brandt, Penalva, Chrispim e os dois inseparáveis irmãos. E Miss Fanny, coitada! Lá andava a tagarelar com as crianças, de casa em casa, a desenhar paisagens, a zaragalhar sonatinas com o pensamento nele, esperando ansiosamente a noite.

Só o velho Bernaz e eu iamos ter a incomparável fortuna de ver o divino mancebo trincar a febra, beber o vinho, chuchurrear as uvas, sorver o café, talvez ouvi-lo, gozar o som da sua voz.

Desci ao primeiro toque da campainha, que o copeiro badalava num furor d’alarma, e logo notei as grandes modificações da sala: mais alegre com o viço das palmeiras, com a cor viva das rosas ainda orvalhadas, com o brilho cerúleo dos cristais e, ao centro da mesa, resplandecendo, atufada de flores, uma barca de prata entre tritões festivos.

Miss Barkley, muito esguia, com os lustrosos bandós em placas, ia e vinha, lesta e silenciosa, e os seus óculos faiscavam atentos e os seus dedos ágeis incessantemente arranjavam, dispunham, alinhavam aqui um guardanapo, ali um talher, adiante uma flor.

Sobre a toalha bordada estendiam-se panos entremeiados de seda e ouro, numa riqueza de festim. No bofete alinhavam-se garrafas, e a geleira de cristal com a pinça em garras.

James, na varanda, em costume de flanela, às listas, repoltreado numa cadeira de vime, lia uma brochura.

Passei por ele indiferente e encaminhava-me para a escada, admirando a pureza do céu azul e o brilho das palmeiras, ao sol, quando o senti levantar-se, seguir-me; por fim chamou-me polidamente. Ao voltar-me já o achei de mão estendida e o seu lindo rosto, de uma cutis alva e fina como o jaspe, sob a qual um sangue moço transparecia em rosas, era encantador com o sorriso que o revestia .

O nosso aperto de mão foi verdadeiramente afetuoso. Fitamo-nos um momento enleados, sem dizer palavra: ele corava, eu sentia-me empalidecer e, como a surpresa me detivesse no patamar da escada, ele inclinou-se gentil e, com um gesto gracioso, convidou-me a descer, cedendo-me o primeiro passo.

Juntos, como amigos íntimos, passamos ao jardim onde a cascatinha (outra gentileza de Miss Barkley) jorrava com abundância, como uma fonte num bosque.

O jardineiro, que tosava a grama dos canteiros, balanceando o corpo em ritmo, ao jogo do alfange, estacou súbito, pasmado e, tirando humildemente o chapéu, ficou a olhar-nos, com o cigarro pendido ao canto da boca.

Nem me passou despercebida a calva do comendador luzindo por entre as folhas entreabertas de uma janela, a seguir-nos, com assombrada curiosidade, no trajeto que fazíamos, devagar, conversando, por entre as roseiras taladas.

Cigarras cantavam alacremente, borboletas esvoaçavam, pousavam nas bastes trêmulas e o sol, rutilando na areia, amolecia languidamente a folhagem num quebranto de fadiga voluptuosa.

E James, com a sua voz macia, acariciante, perguntou-me: “Se eu lhe podia traduzir do inglês um escrito, espécie de novela... Uma extravagância...?”.

— Pois não. Tomou-me o braço e eu, cada vez mais aturdido, tremendo como se fosse arrastado por um assassino, em viela escusa, longe de todo o socorro, estava intimamente encantado com a proposta que me deixava no limiar do arcano, ligando-me, pela inteligência, àquele estranho homem, cuja beleza era um mistério, maior, talvez, do que as suas excentricidades.

— Tenho o manuscrito. A letra é desigual, nem sempre clara, mas como os nossos aposentos são contíguos, qualquer dúvida, não é verdade?... Não faço questão de preço.

— Preço? Como preço?

— Naturalmente, é um trabalho difícil, muito difícil.

— Não, mister... Não costumo traduzir. Nunca traduzi, se laço uma exceção é por simpatia, sem outro interesse.

— Oh! Não... Não...! O trabalho é difícil, muito difícil.

— Tanto melhor, ganharei com isso apurando-me no inglês.

— Ó...! O meu inglês...

— É então uma novela? Ele parou transfigurado, a boca semi-aberta, fitando em mim os grandes olhos tristes e, depois de um momento, disse em tom vago, sutil, como em confidência de amor.

— É... A minha... Novela. Um arrepio percorreu-me a espinha. Em voz surda e trêmula perguntei:

— Deve ser linda! Corou, deu de ombros, remordendo os lábios e, como se lhe faltasse o ar, sacudiu ansiosamente a cabeça, que parecia de ouro, ao sol.

— Pois estou às suas ordens.

— Quando quer começar?

— Quando quiser.

— Amanhã...?

— Sim, amanhã.

— É muito difícil! Repetiu cabisbaixo. Muito difícil!... O terceiro toque de campainha fez-nos voltar. Miss Barkley, debruçada à varanda, alongava os olhos pelo jardim e, quando nos viu aparecer, deu largas à surpresa:

— Oh! Não sabia que se conheciam.

— Sim, Miss... pois não, uma noite... O velho Bernaz, que vestira a sobrecasaca, arrugava o rosto, em esgares, às picadas dos calos e não perdi o olhar de ódio que me lançou, como a um traidor, vendo-me com o inglês. James inclinou-se diante dele obtendo apenas, em resposta, um resmungo mal-humorado. E sentámo-nos à mesa que trescalava.

James, achavascando o português, gabou as flores com exaltação, e, amável, ofereceu rosas a Miss Barkley, que as espetou no corpete; a mim que a arranjei na botoeira. O comendador deixou a que lhe coube, uma admirável Vermerol, sobre a toalha. James tomou para si uma Paul Neyron.

O almoço correu alegre. Miss Barkley galrava expansiva. O criado serviu o champagne, mas quando chegou com a garrafa ao comendador o homem inflexível espalmou a mão papuda sobre a taça, recusando.

— Não bebe? Perguntou James. E o velho, sem levantar a cabeça, roncou:

— Água. E pediu a quartinha. Mas ao café desemperrou num francês rascante e avariado, falando da beleza radiante do dia, das cigarras, do calor e, a propósito das uvas insípidas, lembrou o seu Douro abundante.

— Aquilo sim, uvas ali! James devia saber por que os vinhos das melhores cepas portuguesas envelhecem nas vastas adegas de Londres.

— Oh! Sim... O Porto...

— O Porto e os outros, os bons. Em Portugal só fica o carrascão. Deixamos a mesa às duas da tarde, amolecidos e, como James passasse à varanda com Miss Barkley, o comendador, avançando em pontas de pés, cruzou os braços diante de mim e, pandeando o ventre, perguntou com um grande beiço úmido e os olhos muito brejeiros:

— Mas que me diz o senhor a isto? Explique-me esta coisa...

— O homem humanizou-se, comendador.

— Chegou-se ao rego, eu não lhe dizia? E, agarrado ao meu braço, em segredo: E olhe que é mesmo simpático. Hoje é que reparei. Cara de mulher, vocês têm razão. Cara de mulher e bonita! Se Miss Fanny a apanhasse, hein? Dava uma perna ao diabo. E cascalhou um risinho trocista.

O jantar, nesse dia, apesar da redobrada atividade de Miss Barkley, que não descansou um segundo, aligeirando os criados, só foi servido às 7 horas, ao fulgor desusado de todos os bicos de gás.

Na sala, a que a mesa, mais estendida e mais rica, dava um aspecto solene, entre o brilho luminoso dos espelhos do bofete e dos trinchantes, por vezes, ao lufar da aragem que agitava as palmas das arécas e das latanias, havia murmúrios leves de silvas.

Os hóspedes, informados do grande acontecimento do almoço, zumbiam cochichos passeando ao longo da varanda.

Décio, que aparecera ruidoso, numa grande ânsia de arte, apelando para o “estupendo” Frederico, evocador das melodias tracias, esfuziava comentários sobre James, o Apolo bretão que, enfastiado do lânguido Olimpo e da insípida ambrosia, descera a confraternizar com os mortais, comendo à mesa, com apetite humano, o ensopado de vaca e as folhas das hortas.

Péricles, desolado, lamentava achar-se desprevenido de chapas, senão perpetuaria em um instantâneo a entrada de James.

— E so cantássemos o God savé the king!? Lembrou Décio. Mas Penalva adiantou-se.

— Nada de troças com esse homem. É terrível!

— Quem? Perguntou Basílio em tom de desprezo.

— Quem? James Marian. Conhecem o Felix Alvear? É um colosso. Todos concordaram.

— Um monstro! Acrescentou Décio, arregalando os olhos.

— Pois no domingo, depois do jogo, no Fluminense, só porque o Felix fez menção de beijá-lo, chamando-lhe Miss, ele meteu-lhe as mãos ao peito e, como o outro investisse, atirou-lhe um murro pondo-lhe a cara em sangue. O engraçado é que depois teve uma síncope.

— Maricas!... Achincalhou Basílio. É que não havia um que entendesse da coisa. Isso não vai a muque. Calça-se o freguês ou manda-se-lhe a cabeça aos queixos. É um instante. Ele que se meta comigo.

— E o senhor...? E Décio espalhou-se em gestos capoeirosos.

— Entendo, entendo um pouco; defendome. Fui homem! Hoje, cansado... Ainda assim não é qualquer que me toma a frente.

Quando Chrispim apareceu, muito tímido, com um risinho vexado, abotoando o paletó de alpaca, Basílio murmurou: “Aí vem o espinafre!” Todos riram à socapa, dispersando-se e o estudante, muito magro, sardento, com o pincenê montado no nariz em pico, os cabelos arrepelados, passou em silêncio, esfregando as mãos e, hesitando entre os hóspedes, acercou-se de Carlos falando- lhe baixinho, em sussurro, sobre a beleza do ocaso e o perfume que subia do jardim onde a água do esguicho rufiava sobre as folhagens.

O comendador, de sobrecasaca, chegou à porta e inclinou-se acenando a todos com a mão aberta.

— Boa tarde, comendador.

— Calorzinho, hein?

— Horrível! Mas Miss Fanny, subindo do jardim, de branco, com uma orquídea no corpete, fez cessar o murmúrio. Abriram alas e ela passou ligeira, agradecida e corada. Soou o terceiro toque e Miss Barkley apareceu muito tesa e, docemente, com um olhar a todos, convidou:

— Vamos? Mas hesitaram.

— E Mister James? Perguntou o comendador. Miss Barkley sorriu, deu de ombros:

— Está incomodado. Foi um desapontamento. Basílio murmurou: “Está bêbedo”.

Entraram em silêncio, sentaram-se e o criado começava a servir a sopa, quando Miss Fanny, acenando de cabeça para um e outro lado, levantou-se abafando a boca com o lenço. O guarda-livros olhava-a de esguelha e, quando ela desapareceu no corredor, rosnou para o Decio:

— Tisica, meu amigo. Está pronta. Este ano cantará Christmas debaixo da terra. Voz horrível! Também... é uma careta de menos. Ao peixe, a professora reapareceu sem a orquídea e mais pálida. Sentou-se acanhada. Volta e meia arfava num estúo anciado do colo, levando o lenço à boca.

E o jantar correu frio. Além do tinir dos talheres, nada mais quebrava o pesado silêncio. Ninguém se atrevia a atacar um assunto; a palestra era sussurrada, em segredo tímido, entre dois. Às vezes um sorriso percorria a mesa, morrendo onde começara. O próprio Basílio, sempre a rilhar sarcasmo, devorava calado, com um chapinhar de mandíbulas vorazes.

De repente, num arranque, afastando violentamente a cadeira, Decio pôs-se de pé, os braços estendidos para fora, numa atitude de adoração e de enlevo. Todos, num espanto mudo, seguiram-lhe o olhar deslumbrado.

O clarão da lua descia docemente cobrindo as árvores de uma névoa de prata, assoalhando de alvo a varanda, entrando à sala. Uma das palmeirinhas, à porta, reluzia e Décio, de olhos fitos. Saudou em arroubo:

“Ó Rabbelna... Baalet!... Tanit!... Anaitis!... Astarté! Derceto! Astoreth! Milita! Atara! Elissa! Tirata! Pelos símbolos ocultos, pelos sistros resoantes, pelos sulcos da terra, pelo eterno silêncio e pela eterna fecundidade, dominadora do mar tenebroso e das plagas azuladas, ó Bainha das coisas úmidas, salve”. E, um momento ainda, manteve a atitude contemplativa; por fim, sentando-se e servindo-se de assado, exclamou: — Maravilhoso!

Riram. Miss Barkley meneou a cabeça condescendente.

— Isto é teu? Perguntou Penalva.

— Meu?! E os olhos vivos do Decio, cravados no colega, lampejavam. Ó bárbaro! Pois não sentes o gênio? Isto é do divino Flaubert. É a invocação de Salambô. E, voltado para a noite quieta e branca, de um calor macio e tocada do aroma das magnólias, erguendo o copo a toda a extensão do braço, exclamou: Gelo!

— Grande memória! Gabou o comendador.

— Extraordinária! Confirmou Penalva. Recita páginas e páginas. Versos, então... Sabe volumes inteiros de cor. Baudelaire, por exemplo... é só pedir por boca.

— Nem tanto, meu caro, contrariou, com modéstia, o estudante; sei uma ou outra poesia. Mas logo, exaltado: Também quem não decorar Baudelaire não sente, não tem alma.

— Perdão, meu amigo, atalhou o comendador espalmando a mão — sou uma criatura como o senhor, quero dizer: tenho alma, a prova é que sou cristão e aqui lhe digo: em coisas de memória sou uma pedra. Basílio sorriu ferino e, rolando bolas de pão, perguntou sem levantar a cabeça:

— E números, comendador? Cifras...?

— Sim, isso vá; pela prática. Mas no colégio... A história, por exemplo. Nunca pude com aquilo: misturava os reis, fazia uma confusão dos diabos. Perdi-me nas cruzadas.

— Mas achou-se com os cruzados, perpelrou Basílio esfregando os dedos. A gargalhada explodiu irresistível e o comendador, com um risinho amarelo, enrolando o guardanapo, engrolou uma resposta que se perdeu. Miss Fanny dirigiu-se a Décio, apartando de leve as rosas de um vaso que o encobriam.

— E de Tennyson? Sabe alguma coisa, doutor?

— Ah! Miss... Infelizmente... E meneou com a cabeça em negativa. De inglês só conheço o bolo.

— Oh! Tennyson... exclamou a professora, de olhos em alvo.

— Tennyson!... Repetiu Miss Barkley enlevada e, levantando-se, propôs o café na varanda, ao luar. Estava uma noite divina.

— Admirável. E saíram. A palestra, ainda que interessante e agradável, sob o encanto da noite que refrescara, não me atraia. Riam e eu, com o pensamento longe, supunha-me, às vezes, atingido por alguma alusão e desconfiava, sopitando revoltas. Pericles notou o meu alheiamento e, atirando-me uma palmada à coxa, disse:

— Estás preocupado, homem.

— Distraído... Debalde o Décio recitava com a sua voz cadente, fiel ao ritmo, afinando as rimas, pondo em realce as imagens; debalde o seu espírito transbordava em facécias troçando a literatice, expondo o ridículo da elegância xacoca, comentando o mimetismo fútil do indígena, as cavilhas da moda metidas à força de insistente malhar precioso nos hábitos simplórios da nossa vida. Riam-se. Eu só mantinha-me indiferente. É que pensava no manuscrito que me fora prometido e que eu contara achar, à volta da cidade, sobre a minha mesa para enveredar por ele, procurando na trama dos períodos um rastro que me levasse ao mistério daquela alma indecifrável e, talvez, quem sabe? Às ideias daquela cabeça feminina implantada disparatadamente num corpo másculo, fazendo pensar em um robusto jequitibá cujas franças fossem um roseiral.

Quando Brandt, erguendo-se com desafogado resfolego, convidou-me para o chalé, recusei alegando “mau estar”.

— A música é um bálsamo. Lembra-te de Saul; disse Penalva. E Décio acrescentou seduzindo-me:

— E hoje vamos ter a Invocação de Eurídice. Resistes?

— Estou doente.

— Vais deitar-te?

— Talvez.

— É monstruoso! Com uma noite destas chega a ser infâmia!

— Sinto-me mal.

— Pois vai, alaparda-te! E que os pesadelos te persigam. E o grupo desceu tumultuoso e alegre e foi-se pelo jardim, ao som da voz do Décio que declamava, entre as acácias douradas:

Ce ne seront, jámais ces beautés de vignettes.
Produits avariés, nés d’un siécle vaurien...

Basílio espichou as pernas bufando:

— Agora sim, podemos gozar a noite. Chrispim e os irmãos Carlos e Eduardo desceram: o primeiro, para os livros: os dois outros para o passeio que faziam, todas as noites, ao longo da Avenida, até Botafogo. O comendador repimpado, as mãos cruzadas no ventre, rolava os dedos. As duas Miss sussurravam à balaustrada. Um bico de gás apenas iluminava a sala.

Pericles abordou a política e logo começaram as lamentações e os augúrios funestos e, à serenidade do luar, enquanto as flores exalavam, a Pátria, desagregada dos seus fundamentos, rolou esfarelando-se nos boatos, como em arestas agudas, aviltada, insolvável, desaparecendo, em ruínas, num abismo sem fundo, que era a goela do inglês. Despedi-me entediado.

Quando entrei na minha saleta, toda esteirada de luar, o coração bateu-me de chofre, num esbarro pressago. Voltei-me relanceando os olhos pelo interior deserto. Os sons do piano de Brandt chegavam-me suavizados pela distância. Risquei um fósforo, acendi o gás matando a luz astral e fiquei parado diante da mesa absorto, esquecido de tudo.

E porque não havia eu de dirigir-me a James? O meu retraimento não tinha mais razão de ser depois da manhã que passáramos juntos, em intimidade quase confidencial. Atrevi-me e, saindo resolutamente ao corredor, caminhei direito à porta do salão.

Estava entreaberta e o vasto aposento, em silêncio, sem outra luz senão a do luar, pareceu-me funéreo.

O impulso de ânimo que me levara até ali afrouxou em covardia. Ainda assim relutei contra a timidez pusilânime que me arrancava para os meus cômodos tão nus, tão tristes sem aquelas prometidas páginas que eu almejava e para as quais tendiam, numa atração misteriosa, todas as energias de minha alma.

De leve impeli a porta. Um estalo seco detonou. Recuei crispado, sob a impressão dum arrepio; mas insisti. A porta cedeu abrindo-se sobre o salão pálido ao luar que vinha do terraço. O ar chegava-me em lufadas e esfuziava pelo corredor. Bati as palmas, a princípio tímido, fracamente, depois mais forte e parecia-me que a casa estrondava em ecos retumbantes.

Um vulto branco surgiu como uma condensação do luar. Adiantou-se em vagarosos passos teatrais e, junto à mesa do centro, deteve-se cabisbaixo, enclavinhando as mãos. Súbito, lançando violentamente os braços para a altura, derrubando a cabeça para trás, meneou-a em desesperado gesto repetindo, em voz cava, a exclamação que eu, uma noite, ouvira no jardim:

O my soul! Where art thou, my soul!

Reconheci James. Bati mais rijo. Ele voltou-se de ímpeto arremetendo à porta. Então adiantei-me e o moço, como surpreendido em ato indigno, retraiu-se, encolheu-se refugido para um canto onde quedou, estarrecido e mudo, os braços rijamente estendidos em repulsa.

Chamei-o uma vez, duas vezes: “Mister James! Mister James!” Então, reconhecendo-me a voz, veio radiante, as mãos amigamente abertas, acolhendo-me com efusão carinhosa. Na claridade o seu rosto enigmático alvejava marmóreo.

Passou-me o braço pelos ombros. Um aroma fino exalava-se-lhe do corpo e seu hálito, que me bafejava o rosto, era tépido e cheirava. Acariciando-me com blandícias de amante conduziu-me ao terraço e ali, entre as plantas, ao pleno ar, sentamo-nos.

De novo tomou-me as mãos — as suas gelavam — e fitou-me de perto, com os olhos terebrantes de quem procura extorquir um segredo. Docemente, porém, abriu-se-lhe no rosto um sorriso... Um sorriso... Porque não hei de fixar a minha impressão? Enamorado. E eu tive, então, a certeza, a dolorosa, a pungente certeza de que a alma daquele homem, que resplandecia em formosura, era... Para que dizer?

Falei-lhe da novela. Ergueu-se de golpe, em sobressalto, e, lesto, passou ao salão, acendeu o gás, todos os bicos do lustre, e desapareceu no quarto, cuja entrada era dissimulada por um pesado reposteiro de seda cor de pérola, igual aos das portas que abriam para o terraço.

Demorou-se o bastante para que eu pudesse examinar o salão mobiliado com riqueza e gosto, ainda que extravagante.

Um grupo Luiz XV, de brocado amarelo, compunha um dos cantos, sob o recato de um claro biombo, todo florido de lilases. No ângulo oposto era a molície oriental: sobre um tapete de Caramania flácidos coxins, tamboretes côncavos, otomanas convidando a espreguiçamentos voluptuosos. Duas amplas cadeiras de ébano entalhado em flores e laçadias, com o dorsel feito pela cauda aberta de um pavão, cuja plumagem era um marchetado primoroso, ofereciam o deleite de acolchoados de damasco sanguíneo, escanos, que cediam à mais leve pressão, davam agasalho aos pés numa alfombra de veludo. E, num ripanço, com almofadas de cetim, coberto por um estrágulo cor de ouro, espalhavam-se revistas e ainda rolavam em desordem sobre uma branca pele de urso que se lhe estirava aos pés.

Duas caçoulas, em tripodes, exalavam um vago aroma de pivetes.

E nua, airosa, sobre uma coluna de onix, flexível baiadera de mármore, de olhos entre fechados, sorrindo, com o busto em curva, as pomas rijas em riste, arqueava os braços acima da cabeça tangendo um sistro, o pequenino pé mal plantado no solo, ensaiando o passo leve de um bailado lânguido.

Dois consoles altos, dourados, com tremós em largas molduras em que sorriam, por entre folhas, cabecinhas encaracoladas de anjos e ao centro, sob o lustre de bronze, a mesa antiga, de colunas torsas, à volta da qual vastas e gordas poltronas de marroquim cor de vinho abriam maciezas sensuais de colos.

Flores em profusão. Havia-as em vasos, esquecidas pelas cadeiras, morrendo sobre os consoles e os pés calcavam frouxos ramilhetes murchos, rosas secas, elásticas como de pano.

Sobre a mesa um ancho e grosso volume encapado em couro, atraiu a minha curiosidade aguçada. Abri-o.

As folhas, de velho, encardido pergaminho, crepitavam, ringiam como lâminas de estanho. No frontespicio dois lírios prendiam-se à mesma haste — um ereto, em campânula estrelada, outro márcido, pendido em languor e encimava-os um coração gotejante varado por uma flecha.

Virei a folha e apareceu o texto em arabescos bizarros, de formas irregulares e combinações complicadas: discos e sigmoidais, bastonetes cuneiformes atravessando ou ladeando gregas, hemiciclos em feitio de crescente, curvados sobre a linha trêmula que, entre os egípcios, era o símbolo da água, pontos, astilhas, aspas e volutas. Por vezes, perfis truncados de homens, de animais, de objetos — um ideograma complexo, vasto enigma de arcano ou fantasia mórbida.

Ainda eu folheava o esquisito volume quando James apareceu sobraçando uma pasta de couro. Surpreendendo-me, porém, no curioso exame, precipitou-se e trêmulo, com uma voz que tremia, perguntou espalmando a mão sobre a página aberta:

— Entende? Conhece...?

— Não. Que é? Perguntei contando com a explicação. James ficou em silêncio, de olhos fitos no livro. Por fim disse com desalentada expressão:

— Ninguém sabe! Debalde, por isto, experimentei todos os climas da terra vasta. Durante seis anos, com a esperança de resolver tais grupos, percorri os lugares em que ainda subsiste, em espíritos profundos, a ciência dos deuses. Visitei os templos obscuros que a terra começa a devorar, entrei aos bosques em que jazem, como enraizados, com a erva brava a crescer-lhes em torno, víboras na grenha basta e parasitas em flor nos ombros resequidos, os yogis e os sadús paralisados em êxtase. Subi, por veredas escabrosas, às escarpadas montanhas frias em que os mahatmas atravessam séculos inconscientes, numa existência em que as horas não entram. Falei, em cavernas, a solitários mais velhos do que as florestas... e todos despediram-me sem esperança. Na Europa compulsaram este volume Rawlinson, Ebers, Oppert, Maspero, Erman e tantos, tantos outros! Alguns sorriam tomando-me por doudo, outros repeliam-me ofendidos julgando-me um mistificador. Gastei milhares de libras... Debalde! E daria quanto possuo, daria uma gota de sangue por palavra a quem má as fosse arrancando destes símbolos que me torturam.

— E onde achou este livro?

— Onde? A meu lado, na vida.

— Quem o compôs?

— Arhat. Pronunciando tal nome estremeceu como a um choque e atirou a pasta sobre a mesa, pondo-se a caminhar agitado, arrepelando-se. Ainda exalou: Ninguém sabe! Mas logo, serenando, sorriu, posto que a tristeza lhe toldasse o sorriso, dizendo em tranquilas palavras: E quem sabe a história da sua alma? Quem?! Todos possuem um livro como este — visível ou invisível, não é verdade? A vida é assim: temo-la sob os olhos e não a deciframos... e ela devora-nos. É a Esfinge. Volte uma página deste livro para diante — é o amanhã, mistério da vida. Folheie-o para trás, ainda mistério! O passado, a morte. O presente, que é? Uma redouça em que nos balançamos entre a saudade e a esperança. É assim. De que vale saber? Feche o volume... Ou deixe-o aberto. Em sono ou em vigília a vida é sempre indecifrável.

Mas feche-o — assim é como um abismo a que se não vê o fundo. Dá a vertigem. Feche-o! A noite está linda! E encaminhou-se para o terraço. lnterpelei-o sobre a novela.

— Está ali naquela pasta. Pode levá-la. Falta-lhe o final.

— Não a concluiu? Empalideceu e, repentinamente, como se achasse ao alcance do lustre, fechou todos os bicos. E o luar, de novo, alastrou a sua claridade espiritual.

Travando-me, então, do braço aconchegou-se a mim lançando em torno um olhar pávido. Eu sentia-lhe a respiração ofegante e o bater do coração precipite.

As altas palmeiras da rua rebrilhavam meneando as folhas num mover brando e sussurrante; gente passava, por vezes carros. Sons de piano vinham de longe, ora vagos, ora vibrando nítidos. James ouvia. De repente, afastando-se no seu andar pensativo, a largas passadas, repetiu: O final... Tel-o-á em breve. Tenho hesitado muito, mas é preciso acabar. Talvez hoje. A noite está linda. E cravou os olhos no céu. Talvez hoje! Debruçou-se ao parapeito mostrando-me um vulto branco perlo do caramanchel. Reconheci a professora.

— Miss Fanny. Ele confirmou de cabeça, com um sorriso enigmático, e murmurou:

— Cativa...

— Quem? Limitou-se a apontar a inglesa. Ficou um momento em silêncio depois, em palavras vagarosas, como se as engastasse mentalmente em um ritmo melancólico, devaneou:

— Imagine uma leoa levada para o deserto em uma jaula à que, só com o roçar de seu corpo, se fossem quebrando os varões de ferro, fugiria para o seu antro atraída pelo aroma resinoso da selva e pelo rugido dos leões heroicos?

— Sem dúvida.

— Não.

— Como?

— Faria o contrário: reforçaria a jaula com o próprio corpo, fecharia os olhos para não ver o deserto, far-se-ia surda às vozes sedutoras, deixar-se-ia morrer contendo a respiração para não sentir o almíscar e o cheiro acre das florestas. Faria assim... Se fosse virtuosa.

Miss Fanny saía do caramanchel. Parou um instante, pensando, colheu uma flor e seguiu lentamente em direção à álea das acácias. James murmurou: Pobre leoa!

Notando, porém, o meu espanto, explicou, sem voltar-se, sempre debruçado ao parapeito e com o mesmo vagar:

— Arhat servia-se do símbolo como expressão do mistério. O que se não pode dizer ou representar figura-se. A cor é um símbolo para os olhos, o som é um símbolo para os ouvidos, o aroma é um símbolo para o olfato, a resistência é um símbolo para o tato. A própria vida é um símbolo. A verdade, quem a conhece? A chave dos símbolos abriria a porta de ouro da ciência, da verdadeira e única ciência, que é o conhecimento da causa.

Não falava para mim, mas para a noite, lançando as palavras como se fossem pétalas e ele, lentamente as espalhasse no ar.

Ainda que a mais e mais se afirmasse em meu espírito a convicção de que falava a um louco, interessava-me aquele discorrer extravagante que me tirava da ordem lançando-me na fantasia desvairada dos degenerados — floresta híspida, sombria, desafogando-se aqui, ali em clareiras luminosas onde os predestinados falquejam e pulem as árvores do sonho com que fazem as liras da Poesia, os ídolos e os altares das Religiões.

— É de Londres?

— De Londres? Deu de ombros. Não sei. Criei-me perto de Londres. Nunca me disseram onde nasci.

— E seus pais?

— Não sei. Nunca os vi. Mãe... Que doce palavra! Acostumei-me a trazê-la na boca como alguma coisa que me iludia a sede de amor. Vivi do perfume de uma flor desconhecida, compreende? Sentou-se e, cabisbaixo, as mãos pendidas entre os joelhos, o busto inclinado, continuou: O senhor vem direito ao meu coração com um talismã de Bondade. É capaz de penetrá-lo.

— E não confia em mim? Acredite... Atalhou-me com um gesto;

— Se não confiasse não o teria recebido. E sabe por que confio? Porque é um concentrado e sonha. Há duas espécies de homens que vivem sós — o egoísta e o pensador: o primeiro retrai-se como o polvo — chamando a si todo o bem; o segundo isola-se para contemplar. Um tranca-se na sombra, outro procura o reflexo: é como o que se assenta à beira de um lago vendo nas águas as imagens do céu e da terra e a sua própria. Os isolados são, em geral, ingênuos e bons: como não dispersam confiança, não colhem desilusões. Que faz o senhor? Vive consigo, e é muito. Quem se entrega de todo ao mundo esquece o seu próprio ser.

Conheci os homens e neles achei o tigre, o cão, a raposa e a víbora: o cruel, o adulador, o trapaceiro e o ingrato. O senhor é dos que ouvem no silêncio e vêm na treva. Pensa que não o tenho visto a horas altas da noite, à janela? Que faz? Sonha. O sonho é a fecundidade, é como o pólen das flores — voa, mas não se perde. Não é possível que os germens das anteras tenham mais energia vital do que o pensamento e os germens voam no espaço, cruzam-se no ar livre e fecundam. Demais, o senhor fala o inglês, compreendeme. Além das senhoras, o único com quem posso comunicar. Lembra-se do nosso primeiro encontro?

— Sim, lembro-me.

— Eu saia de uma crise, da “aura”, e o senhor acompanhou-me, alentou-me. Devo- lhe esta bondade. Os mais...

— Não tem razão, mister James. Se os outros o não procuram e porque o vêm retraído. Todos aqui o estimam...

— A mim?! Estimam-me...? Porquê? Que lhes fiz eu? Têm curiosidade de mim, é o que o senhor quer dizer. Querem devassar-me, ver o que tenho na alma. Sempre evitei a amizade para não sofrer: se a encontrasse verdadeira poderia perdê-la e seria um desgraçado, se me traíssem... não sei. Tive um protetor, Arhat. Vivi em sua companhia e ele velou por mim. Não era de amor que me cercava, mas de cuidados: eu era feitura sua obra do seu saber. Tinha grande zelo por mim, sempre atento à minha saúde, às minhas tristezas, medicando-me, defendendo-me de todo o mal para que eu resistisse. Eu era para ele como um objeto delicado que se conserva em vitrina. Amor não havia. Que fez por mim? Deu-me a vida educou-me e instituiu-me herdeiro da fortuna que dissipo. Eu dormia e ele despertou-me... e ando agora como um estremunhado só desejoso de voltar ao sono. Dê-me a sua mão. Cedi e ele levou ao pescoço volteando-o com ela, ao rez dos ombros, fazendo-me sentir a carne macia e fria que os meus dedos premiam. Deteve-me num sulco e, seguindo por ele, fui sentindo o relevo de uma larga sutura, como a erupção de uma urticaria.

— Sente? E manteve a minha mão, forçando-a.

— Sim.

— Que lhe parece? Hesitei na resposta e ele adiantou-se: Vestígio de decapitação, não é verdade? Estremeci àquele dizer trágico. É o colar da morte, a gargalheira que me prendeu a vida. Sinta! Sinta! E, tombando a cabeça, andou com a minha mão em torno do pescoço recalcando-a e eu sentia aquela espécie de eritema, em erosões e ressaltos, dando-me um arrepio frenético em que havia repugnância.

Súbito, repelindo-me a mão, levantou-se. Uma gargalhada atroou o jardim e logo em seguida a voz do Décio:

— Admirável! E o estudante apareceu, parou junto do caramanchel, atirou um beijo à noite e, enlevado, decantou a lua nos versos sugestivos de Raimundo Correia:

Astro dos loucos, sol da demência,
Vaga, notambula aparição!
Quantos, bebendo-te a refulgência,
Quantos por isso, sol da demência,
Lua dos loucos, loucos estão!

— Vou sair! Disse James abruptamente.

— Agora?

— Vou. Pode levar a pasta, pode levar o volume. Boa noite! E, impondo-me a mão ao ombro, impeliu-me docemente. Tomei a pasta e o grosso volume e saí.

— Boa noite! Não respondeu. A casa dormia.

Acendi o gás da minha saleta e, sorrindo à lembrança daquela despedida imperiosa e brusca, sentei-me à mesa desatando as fitas que fechavam a pasta. Estava repleta de folhas de papel Whatman.

Logo à primeira tive a impressão da desordem daquele espírito — respingada de tinta, cheia de rasuras, de traços inutilizando parágrafos inteiros era escrita, ora em letra miúda e fina, direita, hirta na pauta, ora em caracteres enormes, confusos, passando, por vezes, por cima de borrões e derreados, pendidos como as searas a um grande vento.