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Esfinge (Coelho Neto)/III

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Nessa mesma noite li, ou melhor: desentulhei todo o primeiro capítulo da “novela” com vagarosa paciência e trabalho mais árduo do que o dos cavadores de ruínas que revolvem o duro solo betuminoso e empedrado das cidades mortas fossando-os à cata de antigualhas.

Além da interpretação das garatujas que me tomava o tempo, do lento e difícil deslindar das emendas embaraçadas em tramas de rabiscos, as chamadas eram tantas e tão seguidas, que a página toda, reticulada de riscos sinuosos, quebrando-se em zig-zags por entre as linhas irregulares da escrita, era uma teia intrincada e os olhos fatigavamse seguindo aqueles traços que iam ter às margens prendendo-se à palavra ou frase preferida como a uma meada de onde partissem em desenrolados fios.

E ainda, criando maior confusão, por vezes as letras encaracolavam-se em espiras ou embrulhavam-se em tantos arrebiques que perdiam, de todo, o caráter morfológico tornando-se necessário adivinhá-las.

Figurinhas, paisagens lineares interpunham-se aos termos como distrações infantis. Frases completavam-se por emblemas, à maneira de enigmas e, não raro, largos borrões de tinta afogavam palavras truncando orações, abrindo verdadeiros abismos nos períodos.

Ainda assim levei a termo o trabalho, não sem levantar-me muitas vezes alquebrado e verdadeiramente aturdido com o que ia penosamente desentranhando daquele muradal de ideias.

A aragem refrescava e uma doce claridade ia lavando o espaço, descobrindo as árvores empastadas na sombra e as cigarras alegres cantaram em coro a “alba” festiva.

Voos de pássaros e de borboletas anunciaram a madrugada e o sol, ainda frio, lançou as primeiras púrpuras. O gás tornava-se lívido! Apaguei-o.

Debrucei-me à janela. O jardineiro, sentado à borda de um canteiro, esfiava amarras para as plantas e a rua, em borborinho, acordava com o rumor de carroças que passavam. Tiniam campainhas, soavam trombetas e as folhas inquietas das palmeiras altas lampejavam douradas pelo sol.

Alfredo, em baixo, arremangado e descalço, atirava baldes de água à varanda, e à janela do seu aposento, esgargalado, com os cabelos em gaforinha, Basílio pigarreava rascando a goela pegajosa.

O perfume que subia do jardim era agradável e a terra úmida da rega exalava frescura.

Os olhos ardiam-me e todo o corpo amolentado vergava a um morno torpor, como em febre. Um rebôo de concha azoinava-me os ouvidos. Tomei o jupon e desci a refazer-me no banho frio. O café com leite não me soube. Atirei-me à cama prostrado sem, todavia, conseguir conciliar o sono. Fora a agitação da vida aumentava com a luz que abria, já tépida.

Deixei-me ficar estirado gozando os lenções, num doce preguiçar de modorra, recapitulando o que lera, o conteúdo estranho daquelas páginas emaranhadas. Por fim a fadiga venceu-me e adormeci pesadamente, como narcotizado.

Acordei ao retinir da campainha anunciando o almoço. Vesti-me, muito lerdo, e desci. Miss Barkley notou a palidez do meu rosto. Disse-lhe que passara a noite em claro.

— Também eu, rosnou o comendador esburgando a costeleta. Não sei que tinha o inglês esta noite: andou até às tantas, às patadas. Parecia que o teto vinha abaixo.

— Mister James?

— Ou o diabo. Mau vizinho! E olhe, Miss, mande examinar o gás do meu quarto porque há escapamento. Esta noite tresandava. O rombo deve ser grande. Também, com os pulos do tal homem não há cano que resista. Um dia vem-me o lustre à cabeça.

— Saiu hoje muito cedo, disse Miss Barkley.

— Quem?

— Mister James. Não desceu para o banho.

— Talvez esteja dormindo.

— Não, não está. Alfredo voltou com o café.

— Anda por ai.

— Na Tijuca, com certeza.

— Tem lá parentes?

— Mister Smith.

— Há de ser isso.

Voltei aos meus aposentos que o Alfredo alinhara e florira e, sem perder um instante em repouso, corri a empanada abrandando a luz e sentei-me à mesa, abrindo a pasta verde. Tomei dois cadernos de papel, numerei as folhas e, na quietação da casa, que parecia adormecida à sesta, comecei a tradução do manuscrito estranho.

“A casa taciturna, encardida, de grossas paredes esborcinadas em cicatrizes que expunham, como ossos de um corpo, as pedras verdes de limo e sempre escorrendo um suor de umidade, avultava imponente entre as árvores colossais de um parque, cujo fundo desaparecia aos meus olhos na densa, escura ramagem de um bosque onde altos, ramalhudos cervos levantavam bramidos a que respondiam, em áspero grasnar, bandos ariscos de patos selvagens”.

Da janela gradeada do meu quarto que abria, em ogiva, sobre o ocaso, onde me era grato ficar entretido horas e horas, eu contemplava a paisagem aveludada e o céu macio, seguindo as moles ondulações das colinas em cujo recosto pastavam animaizinhos brancos; entre cerros um trecho de rio estreito que parecia congelado, apesar do sol que o fazia reluzir tremulamente com o brilho intenso dos dias de verão e branca, muito esguia, aguçada em flecha, lançando-se de um cerrado de castanheiros, a torre solitária de uma igreja em torno da qual, todas as tardes, à hora de ouro do poente, abriam-se colares de andorinhas ou, no inverno, abandonada e hirta, no fundo do céu cinzento, parecia toda de neve, tremendo ao vento que passava uivando.

Não me aparecia viva alma; vozes, só a dos animais, ao longe, ou o rouquejo rangente da minha governante, uma mulher magra, tão alta e tina que vergava como as canas flexíveis, cor de cobre, cabelos negros escapando-se, em melenas, de uma coifa de seda. Não me perdia de vista: durante o dia, sempre nos meus passos, à noite estendia-se em uma pele de tigre, ao lado da minha cama, pondo-se alerta e de pé ao mais leve movimento que eu fizesse.

Se eu saía dos meus aposentos, adiantando-me pelo corredor atapetado, ia certo da espionagem dos seus pequeninos olhos negros, mais agudos do que estiletes, que me seguiam através de uma frincha, de um vão de porta e era ponto eu chegar à escada de ferro que, em volutas, levava ao último andar, onde vivia Arhat, logo a mulher, cujo nome era Dorka, corria a deter-me, medonha na sua roupa de seda, às listas, que lhe dava o aspeto repugnante de uma cobra a prumo.

Às vezes, raivosa, em frenesi, rilhando a dentuça apuada, prendia-me no quarto, mais do que em correntes, só com o poder dos seus olhos magnéticos que me tolhiam tirando-me toda a energia e a própria consciência.

Apenas de manhã e à tarde consentia que eu ficasse à janela olhando tristemente os longes nublados da terra desconhecida que o meu coração desejava com ânsia.

Despertava-me cedo, ao primeiro luzir do sol, acompanhava-me ao banho, ajudava-me a vestir e comigo tomava a refeição da manhã.

Nem às horas de lição abandonava-me. Encolhida a um canto, as pernas cruzadas, não tirava de mim os olhos afiados, enquanto os professores (todos abaçanados e glabros) me iam explicando as várias ciências, exercitando-me em idioma diversos, guiandome no desenho, iniciando-me na música ou adestrando-me no manejo das armas.

Uma vez por semana eu subia ao grande salão dourado onde Arhat me esperava, sempre melancólico, cercado de flores.

Era um homem raquítico, meão de altura, amarelo, macilento, quase um esqueleto, mas de um tal domínio nos olhos, à flor do rosto, que eu sempre lhe falava a tremer, ainda que ele me acolhesse com afabilidade meiga, afagando-me, até aliviando minha alma torturada do pesadelo de Dorka, que não passava do limiar da porta.

O salão dourado, vasto e deslumbrante, dava-me a impressão do pleno sol: as paredes, as colunas, o grande lustre, os móveis refulgiam como feitos de luz: tapetes amarelos alfombravam o soalho como finíssima relva luminosa e o teto azul era verdadeiramente um céu de estio, de onde parecia descer, em raios misteriosos, todo aquele brilho que me ofuscava.

O ar ambiente era puro perfume e por toda parte, numa abundância maravilhosa, ostentavam-se flores de incomparável beleza.

Arhat recebia-me à porta e, antes de acariciar-me, fitava em mim os olhos verrumantes, tomava-me o pulso, auscultava-me o peito. Terminado o exame levantava-me nos braços, com uma força destra que ninguém suspeitaria em corpo tão frágil e o meu dia deliciosamente começava por uma refeição delicada que eu nunca consegui saber como aparecia em uma grande mesa de laca preta, forrada por um pano em que os bordados eram em relevo tão alto que as aves e as flores mais pareciam pousadas que trabalhadas no tecido cor de palha, de um lustro metálico.

A baixela, lavrada em arabescos, com as bordas de filigrana tênue, pesava de arriar o pulso mais robusto. Os manjares eram de escolha e sóbrios: lascas de caça fria acamadas em geléas diáfanas, um legume, ovos, pomos nos próprios galhos, entre frescas folhagens, granizos de neve e água límpida em vasos de cristal enevoados de friúra.

Favos de mel em patenas, bolos aromáticos, pastilhas dissolventes e um licor ambreado que me deixava na boca um saibo a violetas e punha-me nas veias um calor vital, de sol.

Arhat via-me comer e, para acompanhar-me, debicava: um pouco de fruta, um fio de mel e logo que notava a minha saciedade, sorria.

Repentinamente as pálpebras pesavam-me — a impressão era instantânea, de novo erguia-as, mas já a mesa havia desaparecido e no seu lugar ardia, fumando em fio azul, um incensório de bronze, alongava-se uma coluna ou jazia uma otomana, conforme o ponto que o capricho de Arhat escolhera para revelar-me, mais uma vez, o seu prestígio, a que, pela insistência, eu já me havia habituado.

Então descíamos atravessando vastos salões desertos, pátios em que avultavam figuras truculentas — uma mulher com cabeça de elefante, um monstruoso ídolo de cujo tronco, como uma irradiação, partiam numerosos braços em cujos punhos minacíssimos luziam punhais; percorríamos uma extensa claustra em arcarias de mármore rendilhado e ganhávamos o parque.

Dorka, que nos esperava em baixo, acompanhava-nos à distância.

Oh! A delícia daquelas horas ligeiras livre, em pleno ar, ao sol. Eu corria pelos relvedos côncavos, balouçava-me na redouça, entre os galhos cheios de ninhos ou metia-me em um barco e docemente, por entre cisnes e nenufares, cruzava o lago tranquilo, sob a vigilância do olhar atento da governante que soltava um grito gutural, sustando a redouça se a via lançada com violência, chamava-me à margem se eu, brincando, fazia oscilar o barco ou perseguia-me com ligeireza de gazela, quando me via longe, nas sombras densas das cavalheiras onde se juntavam os cervos.

Que idade teria eu então? Sete anos, não mais.

O meu desejo de conhecer a vida recrudescia. À noite, sentindo Dorka a meu lado, em vigília, punha-me a recordar as palavras dos meus professores, todas as noções que pouco a pouco, eles me iam filtrando na alma e imaginava o mundo imenso que me atraia com os seus mares, com os seus impérios ricos e populosos, com a vida intensa das suas cidades, com o suntuoso rito das suas religiões. Aqui, virente e em flor à luz quente e pródiga do sol; ali, estéril, silencioso, amor-talhado em neve. Num ponto, viçoso e abastado lourejando em campos de seara, com a alegria tranquila do canto dos segadores: em contraste, a guerra tumultuosa ensanguentando, arrasando o ponto oposto.

E a mim mesmo eu perguntava: “Que serão as guerras? Que serão as searas?”.

E invejava o miserável que não dispõe de um teto palhiço para agasalhar-se no inverno, que não acha uma codea de pão para iludir a fome, que não encontra um farrapo de lã para forrar-se e, lançado nos valos dos caminhos, tirita e morre, mais desprezível do que um animal.

A vida, a verdadeira vida além daqueles muros vetustos, daquele silêncio funéreo, daquelas sombras tumbais... Como o meu espírito pedia-a!

Nessa ânsia, recalcando o instinto, cresci tristemente e tinha quatorze anos quando se partiu o primeiro elo da cadeia férrea que me prendia.

Num rigoroso dezembro — ainda que nos meus aposentos e em toda a casa soturna e erma a temperatura se mantivesse invariavelmente a mesma dos dias suaves da primavera, o frio era grande lá fora, ao tempo tão áspero que Arhat não ousava levar-me ao parque contentando-me com algumas horas aprazíveis na estufa, entre palmeiras e orquídeas tropicais.

Nesse rigoroso dezembro, uma noite, estando eu acordado, vi Dorka soerguer-se, de improviso, em récovo, arquejando, com a mão esquerda espalmada no peito.

A sua cabeça refoufinhada debatia-se ansiosa e o seu rosto hediondo, mais magro e mais amarelo á luz da lâmpada, contraia-se em esgares de angústia.

Um rónquido estrepitoso ralava-lhe a garganta, estalavam-lhe os ossos às trepidações contínuas, estirava, encolhia as pernas nuas e ressequidas.

Ia levantar-me em socorro da miseranda, mas senti-me como enleado, amarrado ao leito, sem ação sequer, para voltar-me: o corpo desatendia à vontade e os olhos, escancelados de espanto, viam mais claro e os ouvidos hiperestesiados ouviam mais fino.

Reagi em ímpetos baldados e ainda forcejava em vão quando vi abrir-se a porta e Arhat apareceu vestindo um amplo quimão de seda, seguido de um negro agigantado, com um peitoral de couro e saio curto, de lã, cujas franjas chegavam-lhe aos joelhos.

Lesto, inclinou-se, tomou nos braços possantes o corpo flácido de Dorka e saiu com a pressa assustada de um ladrão que fugisse.

Arhat sentou-se aos pés da minha cama e pôs-se a murmurar palavras misteriosas, acenando com a mão em gestos cabalísticos. Depois tirou da cinta uma caçoleta, tomou entre dois dedos um pouco de resina, chegoulhe fogo e deu em andar pelo quarto com um murmúrio de prece, agitando o arómata para espalhar o fumo lustral destinado a purificar o recinto. Por último veio a mim, impôs-me a mão à fronte e partiu. E logo desvencilhei-me do apego que me retivera em inércia aflita.

E foi a primeira vez que tive medo. A Morte roçara por mim e, apesar da antipatia que me inspirava a governante — tão forte é o poder do hábito! — senti falta da sua presença, da sua voz esganiçada, dos seus olhos penetrantes e ardentes como ferro em brasa, da sua perseguição sem tréguas, do seu repulsivo aspecto esguio e colubrino.

Percorri vagamente todo o quarto, atônito, num atordoamento que me fazia vacilar indo de encontro aos móveis, mas o sono surpreendeu-me: mal tive tempo de chegar ao leito e logo adormeci pesadamente.

Ao acordar de manhã, à hora do costume, vi aos lados do meu leito, imóveis, duas figuras que me pareciam de mármore tão brancas e impassíveis jaziam. Mas os olhos azuis de uma, os olhos negros da outra tinham tanta vida, era tão meigo o sorriso de ambas, tão sadia a cor das faces e foi tão gracioso o gesto com que me saudaram inclinando-se, os braços em cruz ao peito, que não me ficou dúvida no espírito sobre a sua natureza.

A de olhos azuis trazia os cabelos louros numa trança larga e frouxa, enastrada em fios de turquesa, um corpete de púrpura alto sobre o colo em botão, saia curta, de seda, e os pés esguios em papuzes de bico alçado.

Armilas de ouro cingiam-lhe os artelhos e nos braços roliços enroscavam-se braceletes dos quais pendiam, tinindo, símbolos e amuletos. Maya era o seu nome.

A de olhos negros, um guapo moço, senhoril e forte, vestia calções folgados, jaleco sobre camisa fofa, cinta, e calçava botas de camurça afiveladas de prata e à cabeça, gentilmente inclinado, deixando rolar sobre a fronte em cacho de azeviche, um gorro, espécie de fez tendo ao lado, presa em roseta de ouro, uma pluma negra que ondulava airosa. E disse chamar-se Siva.

O que, então, se passou em mim, só a expressão “vexame” pode dizê-lo. Ardia-me o rosto incendiado em pudor e não me vinha palavra aos lábios, tão perturbado fiquei diante daqueles jovens que sorriam.

Mas o moço falou e eu que, até então, só ouvira vozes ásperas, tive uma surpresa de êxtase ao som melodioso com que ele se anunciou “meu servo”, pedindo humildemente as ordens do meu desejo.

Logo, porém, voltei-me a um suave prelúdio — era a moça que repetia as palavras do companheiro e o meu espanto, deliciado, ficou entre os dois lindos sorrisos, entre as luzes acariciantes daqueles olhos que pareciam trazer um dia azul de primavera e os negros uma noite aveludada de luar e de sonho.

Ó a morte de Dorka! A morte de Dorka! Como me pareceu um bem...

Sentindo-me disposto a deixar o leito afastaram-se os dois jovens e os passos da moça foram ressoando pela câmara.

Achando-me só, ainda que os sentisse perto, passei à sala de banho onde, como sempre, tudo me esperava, desde a água jorrando, aos golfões, das fauces da carranca na piscina de mármore, até os perfumadores acesos enevoando o recinto de aroma. No vestiário toda a roupa em ordem. E sai.

De novo o som argentino das armilas emocionou-me precedendo a volta, já desejada, dos olhos azuis e a pluma negra e airosa ondulou no ângulo do reposteiro.

À refeição, na sala de carvalho lavrado, onde os pratos subiam por um ascensor, ambos flanquearam-me à mesa revezando-se no servir.

Se ele substituía um prato, ela solicita e risonha, adiantava o talher; trazia ele a ânfora de vinho, ela a oferecer a copa; se um apresentava a fruta à minha escolha, outro trazia a corbelha das confeituras e as armilas soavam sempre e sempre ondulava, airosa, a negra pluma.

À hora da lição desapareceram. Tanto, porém, que o último professor deixou-me, tornaram, sempre sorrindo.

Ele empunhava uma espécie de lira, cujo nome — vina — vim a saber mais tarde, ela trazia um ramo de acácia em flor.

Como me achassem junto à janela ogivada, que abria sobre o poente e na qual eu ficava, todas as tardes, embebendo-me na melancolia sugestiva do crepúsculo, sentaram-se perto, em um tapete de Chiraz, e, enquanto o sol moribundo sangrava sobre as colinas, casando-se ao som do instrumento, a voz da moça trouxe-me do coração aos olhos as primeiras lágrimas que chorei.

E ali encontrou-nos o luar misterioso.

A fadiga venceu-me. Já a tarde empalidecia no pavor da noite próxima, quando, derreando-me na cadeira, extenuado, estirei os braços com um largo, desoprimido resfolego. E um momento estive em repouso antes de reler o primeiro lanço do meu trabalho.

Não me deixou de todo descontente ainda que em um ou em outro ponto, por falta de valores correspondentes nas duas línguas, eu apenas houvesse extraído a ideia abandonando a expressão e em certas frases truncadas, por esquecimento ou pressa ou pelos frequentes borrões que enegreciam o texto, eu completasse o pensamento como me parecera mais adequado, tendo sempre em vista a ação e a intenção do período.

E pensei no que lera, naquela vida de sonho em sítio que se não nomeara, cuja paisagem vaga, ora ao sol, ora à nevoa, tanto podia ser a de uma província romântica de França, como a de um subúrbio londrino, de um bairro excêntrico de Berlim, dos arredores de Moscou ou da mística Estocolmo, cerúlea no rigor do inverno.

Sim, era um sonho que se afirmava no correr da narrativa cerebrina, cada vez mais estranha, mais tresloucada e mais bela, cheia de visualidades como uma ópera mágica.

James quisera dar-me uma amostra da sua imaginação e preparara, com engenho sutil, à maneira de reclamo, a cena do salão e a da entrega, ou melhor, do abandono do manuscrito que tu ia trasladando, não sem interesse, como o teria no caso afortunado de me haver vindo às mãos, por prestígio de algum gênio benfazejo, um conto inédito da princesa Scherazada.

Depois de uma ablução ligeira vesti-me e, debruçado à janela acompanhando, em silêncio, os adeuses do fim do dia — a lenta dissolução das cores, o calar religioso dos ruídos, o recolhimento extático com que a Natureza faz a sua íntima prece vesperal, dei acordo de mim quando um som, vindo através do espaço, de longe, vibrou alegre como uma voz festiva que me despertasse.

Já estrelas luziam.

De novo, mais claro, o som vibrou no silêncio. Era a campainha em baixo. Acendi o gás e, mirando-me rapidamente ao espelho, desci para o jantar.

Todos os hóspedes estavam á mesa, com exceção de James. Nem lhe notaram a ausência. Miss Fanny, sempre de olhos baixos, parecia mais pálida e mais triste, tossindo em acessos frequentes. O copeiro servia atento aos olhos de Miss Barkley.

Pericles, com o guardanapo engasgado no colarinho, tomou a palavra, radiante: Revelara uma chapa primorosa a que dera o título de Réverie d'une jeune veuve. Uma jovem mulher, de preto, parada junto à cascata do parque de Aclamação, o cotovelo no lombo da rocha, o queixo enforquilhado em dois dedos, olhando perdidamente.

Viúva, com certeza, e formosa... mas a atitude, a linha ondulante do corpo fino, o ar de enlevo!...

Adivinhava-se-lhe a lágrima nos olhos. E aquele fundo escuro, escabroso, de pedras eriçadas em folhas hirtas... Uma “trouvaille”!

Basílio olhou-o de esguelha, acotovelando o comendador, que sorriu com as bochechas tufadas pelo pirão de batatas. E Pericles, desde a sopa de legumes até a goiabada, falou de fotografia — dos grandes progressos da arte, de uma objetiva que encomendará, de certas placas de sensibilidade prodigiosa, do futuro fotográfico do mundo — todo o progresso contido entre as quatro paredes negras de uma câmara escura.

O guarda-livros ouvira-o em silêncio, atropelando uma ameixa com as gengivas desdentadas. Por fim, bufando o caroço e passando o guardanapo nos beiços, que reluziam, disse:

— Está explicada... Voltaram-se todos para ele, já com o rosto em sorriso.

— O quê? Perguntou Pericles, aprumado, com ar de desconfiança.

— Pois então? A causa da falta de água na cascata do Campo de Santa Ana — é que as viúvas vão para lá chorar.

— Ora! amuou Pericles com um gesto de desprezo. E foi essa a “graça” da tarde.

Deixando a mesa, Brandt tomou-me o braço e, atraindo-me à varanda, perguntou em tom de mistério:

— Viste Miss Fanny? Notaste?

— Miss Fanny? Que tem?

— Não viste? Chorando?

— Miss Fanny?!

— Sim.

— História!

— Palavra! Lágrimas a fio. Que será?

— É a mim que perguntas?...

— Será por ele? Encolhi os ombros. E o maestro lastimou-a sorrindo: A pobre!... Pericles vociferava num grupo, atirando gestos desabalados, a investir furioso com o comendador e Basílio que atacavam o cinematógrafo “uma lanterna mágica com delirium tremens”.

— E o fonógrafo? O cinematógrafo é a vida em flagrante e o fonógrafo e toda a palavrosa mecânica que por ai ganhe e urra, atroando a cidade?... Ah! Contra essa ignomínia os senhores não se insurgem, por quê? Pois a fotografia, meus amigos, tem o futuro garantido. Tudo passará: o livro, os jornais, até as cartas, entendem? Até os discursos. Todos os documentos serão fotografados: uma firma falsifica-se, um indivíduo, não. E os políticos, em vez de perderem palavras em discursos estopantes, que ninguém ouve nem ler, transmitirão as suas ideias por meio da fotografia mostrando ali, na tela, a vantagem dos seus projetos, expondo, enfim, ao vivo, os seus programas e não embaindo o povo ingênuo com logomachias fofas.

— E em vez de dizer-se — “Que grande orador!” dir-se-á: “Que fotógrafo!” perorou Basílio e rompeu em cascalhada trocista.

— E por que não? Por que não? Arremeteu Pericles, já roxo. Por que não? Será o século de ouro, o século do silêncio e da ação. Tudo se fará cinematograficamente.

Um ladrão furta-nos a carteira, um assassino crava-nos uma faca, zaz! O aparelho estampa-lhe, não só a figura, como os movimentos e, no júri, é só desenrolar a fita e eis o monstro projetado na tela da Justiça com um flagrante nas costas. E o fonógrafo? E curvou-se de olhos esbugalhados. Res non verba, meus amigos. Res non verba, como dizia Cicero ou outro que tal, concluiu esponjando, com um lenço em bolo, o copioso suor do rosto.

Chrispim, que escarvava os dentes com furor, abalando, com um palito, as arnelas escalavradas, chirriava um riso alvar, chuchando os cacos aos sorvos.

Brandt convidou-me para um pouco de música.

Recusei. Sentia necessidade de movimento, de ação ao ar livre, de repouso espiritual.

Aquelas horas consumidas em aturado labor, a noite insone, as preocupações que me traziam o caráter daquele homem, cuja vida eu começava a penetrar pela porta de ouro e marfim de um sonho extravagante, forçaram-me demais o espírito. Saí.

A rua, com a longa colunada de palmeiras como a galeria de um templo hipostilo, era cruzada por passeantes, gozando a frescura. Criados passavam recolhendo do serviço.

Nas sombras dos jardins chilreiavam crianças, vultos brancos, imóveis no aconchego dos caramanchões, pareciam dormitar docemente. Em algumas casas iluminadas soavam pianos.

Segui vagarosamente em direção à avenida. As palmeiras farfalhavam sem descontinuar. Bonds desfilavam cheios numa pressa de comboios. No limiar de uma porta, que abria sobre um tenebroso corredor, dois homens, em mangas de camisa, cantarolavam, sentados, as pernas estendidas.

A avenida larga, quase deserta, com as grandes pérolas das lâmpadas espalhando um clarão pálido, estava silenciosa, como adormecida.

De instante a instante um automóvel surgia aos ronquidos flamejando, ou era um carro moroso que rodava com o cocheiro hirto, os passageiros recaídos, calados, desalentados como se voltassem de um funeral.

Encostei-me à muralha debruçando-me sobre o mar picado de luzes.

A onda mole e lânguida chofrava aos jorros como no despejar espaçado de uma baldeação. Mas o céu, por traz dos montes, foi, aos poucos, clareando a um albor sereno como um prenúncio de aurora e um fio curvo luziu, os redentes da serra cairelaram-se de luz nívea e o disco enorme da lua subiu com a impassibilidade espectral de uma visão, abrindo nas águas a longa tremulina argêntea.

Um golfo de fogo espocou à barra e um tiro atroou. Esfriava.

Grupos vinham chegando atraídos pelo luar: casais muito íntimos, crianças aos galreios, e, descendo de Botafogo, como em disputada corrida, carros, automóveis, bicicletas passavam levantando uma polvadeira que refluia em rolos, abrumava as luzes, subia, perdia-se.

Um homem aproximava-se em vagarosos passos. Parou diante de mim, lentamente descobriu-se e os seus cabelos brancos, ralos, pareciam molhados, e a barba, que lhe escorria do rosto macilento, de um amarelo azedado, luzia com um brilho oleoso. Fitou-me inclinando humildemente a cabeça, estendeu a mão que tremia e murmurou um pedido no qual percebi que aludia à família.

Dei-lhe uma moeda. Ele vergou-se zumbrido, acenando-me com a mão, muito grato, e foi-se com o mesmo vagar ao longo da muralha. Pouco adiante voltou-se, esteve um momento parado, indeciso. Por fim, no isolamento da avenida decidiu-se a deixá-la procurando habitações, gente, almas que o ouvissem, que se comiserassem da sua miséria.

Olhou para os lados afundando a vista na distância e, com esforço, amiudando os passos, mais acurvado, atravessou as áleas e sumiu na sombra entre montes de tijolos, ao lado dos andaimes de umas obras; reapareceu adiante, na claridade de um lampião e voltou a esquina.

E eu? Onde iria? Sentia-me incapaz de prosseguir no passeio. As pernas vergavam-se-me e o espírito reclamava, numa curiosidade ávida, a continuação daquela aventura em que entrara e por onde ia, com tão raro prazer, desvendando, a cada período, como através de ramas que se afastassem num bosque de sortilégios, encantos maiores, maravilhas mais belas.

Tomei resolutamente o caminho de casa.

Ao entrar pareceu-me ver um vulto no caramanchel. Saudei. E a voz meiga de Miss Fanny respondeu da sombra.

As magnólias rescendiam. Brandt tocava. À varanda Miss Barkley e o comendador, afundados em poltronas de vime, conversavam. Parei um momento gabando a noite e, a propósito, o comendador felicitou-me:

— Estamos livres do inglês por algum tempo. Escreveu a Miss Barkley pedindo umas coisas. Está na Tijuca, com o Smith. Que se fique por lá o mais que puder.

Miss, rompendo a sua discrição, estranhou, pela primeira vez, o mistério daquela vida. Não era natural. Excentricidades tem-nas muita gente, mas não tantas; era demais. Enfim... Como não incomodava...

— Não incomoda! Exclamou o comendador. Menos essa. Não há pior vizinho.

— Isso foi uma noite, defendi. Naturalmente o senhor não tinha sono. Eu vivo paredes meias com ele e nada ouvi, apesar de acordado.

— Pois sim... Os sons do piano de Brandt dominaram a palestra. Miss Barkley foi encostar-se à balaustrada atenta. Era uma rapsódia de Listz executada com muita expressão e bravura.

— Toca bem! Concedeu o comendador. É Miss, enlevada, acenou de cabeça:

— Oh! Muito bem! E, calados, ficamos ouvindo a peça admirável.

Subi bocejando, disposto a deitar-me, com umas ideias valentes de trabalho para o dia seguinte: Levantar-me-ia cedo e, logo depois do banho, retomaria a tradução levando-a até a hora do almoço e, depois de um curto repouso, avançaria até a noite. Mas na saleta, diante da mesa, acendeu-se-me a curiosidade. Abri a porta, vagarosamente folheei o manuscrito intrincado e sentei-me, dispus o papel, tomei a pena e ia lançar a primeira palavra quando ouvi vozes, um desusado movimento em baixo: passos que se precipitavam, portas que batiam, cadeiras aos repelões. Cheguei ao alto da escada, pus-me à escuta e distingui a voz do comendador que dizia alarmado:

— Qualquer, homem de Deus! Qualquer! Aqui mesmo perto há um. Mas avia-te, rapaz. Inclinando-me, apoiado ao mainel, perguntei:

— Há alguma coisa, comendador? O velho, que estava perto, subiu alguns degraus e, com as mãos em concha diante da boca, soprou-me surdamente:

— Miss Fanny, a professora... Está a deitar sangue pela boca. Parece que é do pulmão. Desci até ele. Então, confidencialmente, explicou: Estávamos à varanda quando ela apareceu tossindo aos arrancos, ansiada... Agarrou-se a uma coluna, e, quando vimos, foi a golfada de sangue, para mais de um litro, sei lá! Coçou a cabeça, com a face crispada de desgosto e de horror. Mandou-se buscar um médico. Há quanto tempo ando eu a dizer isto? Pois uma criatura fraca é lá para levar a vida que ela leva? Uma moura de trabalho, ao sol, à chuva; demais a mais a aturar crianças? A ambição é no que dá. E sem um parente, coitada!

— E deram-lhe alguma coisa?

— Sei lá! Miss Barkley está a preparar uma poção com vinho. Está perdida... Foi descendo; acompanhei-o. Não se incomode. Tem lá o seu trabalho, deixe-se estar. Boa noite! Deixe-se estar.

— Mas se for preciso...

— Não, não é. E voltou-se repetindo: Deixe-se estar, mesmo porque ela já está no quarto e ali, o senhor sabe, nem o sol entra... Só a lua, porque é feminina. O médico não tarda. Boa noite. E desapareceu no corredor. Lembrei-me da frase misteriosa de James: “Pobre leoa!” E, ainda algum tempo, fiquei encostado ao corrimão, olhando, como à espera de um novo incidente, a notícia de mais uma golfada de sangue, a derradeira, e a morte. Mas a casa reentrou no silêncio.

Subi e seguia pelo corredor quando senti que a luz do bico de gás amortecia em vascas trêmulas — levantei os olhos: efetivamente a chama retraía-se como se mão misteriosa fosse lentamente torcendo a chave. Súbito apagou-se.

Um raio de lua branqueou o soalho, quebrouse na barra da parede. Mas essa luz condensou-se, toda se juntou em um nimbo como se houvesse claraboia no corredor coando, em disco, o triste palor noturno. E do soalho foi-se levantando em alvura, crescendo, tomando forma na sombra.

Fez-se um vulto esbelto e, sob a ampla túnica que o envolvia, desenhavam-se os contornos suaves de um corpo feminino. Alvo, como de gesso, rígido, em atitude lapidar, prendia-me os olhos e, acentuando-se-lhe os traços do rosto, neles reconheci as feições de James.

Os braços nus saíam-lhe das dobras moles da túnica, brancos, estendendo-me as mãos brancas. Era James Marian e, naquele traje, o seu rosto realçava mais belo. Era ele, como eu o imaginara num devaneio.

Arrepiado, sem poder tirar-me do ponto em que me surpreendera a treva, fiquei, e um frio de pavor gelava-me, a boca ressecava-se-me, o coração batia-me aos esbarros.

Mas a luz reaparecia, reacendia-se o gás em chama azul, pequenina e dúbia e foi crescendo, como uma flor, abrindo-se, aclarando e a visão esvaiu-se absorvendo-se na claridade até que, de novo, o corredor apareceu iluminado e deserto.

Então pude caminhar retransido. Abri a minha porta, antes, porém, de entrar, no receio de nova aparição, detive-me examinando o interior. Tudo estava em ordem. E respirei como na salvação de um desastre.

Mas as pernas afrouxavam em quebreira e deixei-me cair no divã, opresso, com a respiração em angústia, estrangulado de medo.

A casa parecia animada, dilatando-se, distendendo todos os seus membros de pedra, todos os seus madeiros, bambaleando-se nos alicerces fundos.

Estrépitos respondiam-se de um a outro móvel ou eram as tábuas do teto disjungindo-se, como fendidas, atroando o pávido silêncio com estrondos ríspidos.

Por vezes a luz tremia em vacilações que modificavam o aspecto, a posição das sombras deslocando-as, e retraia-as ou alongavaas. Em mim mesmo, como se me fosse penetrando o frio da morte, o coração parecia inteiriçar-se e o sangue, ora escoava deixando-me a cabeça oca, ora afluía-me todo ao cérebro, em jorro, atordoando-me num estado referto de apoplexia.

Levantei-me medindo a largos passos o andito acanhado, evitando os espelhos com um receio inexplicável, mas, de soslaio, eu via o meu reflexo, sem, todavia, atrevir-me a fita-lo, certo de o encontrar demudado, senão outro, a imagem de outrem.

Cheguei à porta do quarto, afastei o reposteiro — a luz entrou em faixa até a borda do leito, mas o fundo era negro, em treva. E eu sentia naquela escuridão qualquer coisa que se não definia, uma traição impalpável, a cilada do misterioso invisível.

Voltei à saleta e, resolutamente, sem mesmo fechar o gás, tomei o chapéu e sai.

Ainda no corredor hesitei antes de dar volta à chave, por fim, decidido, dirigi-me, em surdos passos, para a escada, envergonhado da covardia daquela fuga. Atravessei a sala de jantar ainda acesa, a varanda, o jardim e lancei-me à rua, sem destino.

Tomei o primeiro bonde que descia, ansioso pelo tumulto da vida. Mas toda a cidade estava cheia do meu terror.

No escuro das ruas solitárias cruzavam comigo, em deslize aéreo, finas, funéreas silhuetas fluídas, halos pairavam ante meus olhos e desapareciam súbito. Nos próprios grupos eu sentia, adivinhava a presença de um ser vago, incorpóreo que se integrava entre vivos, como a refugiar-se.

Andei até tarde, errando. Achegava-me aos pontos mais concorridos, mas em toda a parte, em tudo eu sentia a influência nefasta de um prestígio mau.

Em uma baiuca, perdida em viela escusa, mulheres esbagachadas, em mangalaça bulhenta, os cotovelos fincados em mesas sórdidas, rolando os olhos vítreos, enlanguecidos pela embriaguez, fumavam, chalravam entre súcios da malandragem noturna, ao som roufenho de uma sanfona que um deles premia.

Estive à porta saturando-me da exalação do contubérnio, mas o próprio vício tornou-se sinistro e os zastres e as zabaneiras, acomadrados dissolutamente, pareceram-me apenas visões que se dissolveriam como se dissolvia o fumo que empanava a espelunca. Um carro passou num vozeiro alegre — dois rapazes e duas raparigas. Tomei um tílburi, mandei segui-los, querendo apegar-me àquela estroinice dissipadora. Apearam no Paris. Entrei.

O salão regorgitava fúlgido. Abanquei à primeira mesa livre e, sem disposição, inerte e exausto, entreguei-me à vontade do criado que me serviu a ceia. Vendo-me ao espelho quase me surpreende achando-me o mesmo, tão mudado me sentia interiormente.

Ficaria, até o amanhecer, naquele rumor, à luz viva daqueles lustres se os notambulos não se fossem retirando, cada qual a seu rumo, uns cantando ajoujados a raparigas, o chapéu à nuca, atirando as pernas em boléos de dança; outros lentos, pensativos, macambúzios, bocejando.

Saí para remergulhar na noite que me apavorava.

A lua sumira toldada por grossas nuvens; um vento forte lufava.

À porta pareceu-me distinguir a voz do Décio, num grupo.

Era ele, todo de brim branco, angélicas à botoeira. Falava de Rodenbach com as suas explosões e hipérboles. Viu-me e, avançando, verdadeiramente assombrado, os olhos chispantes:

— Que é isto? Tu! O gato borralheiro... Às duas da manhã, sem guarda-chuva e capote, no limiar do Paris! Que é isto?! Que mudanças grandes ameaçam esta terra lúgubre! E aproximou-se, apalpou-me, examinou-me para convencer-se. Mas... És tu mesmo? Que é isto? Perguntou-me em segredo, com um sorriso no rosto menineiro. Tomou-me o braço e, com um “Boa Noite!” ao grupo, que logo se dissolveu, arrastou-me para o meio do largo. Anda, conta. Despeja no abismo da minha discrição a aventura desta noite. Dize-me do fulgor dos seus cabelos, da cor dos seus olhos, da graça alada do seu andar... É intelectual, tem alma ou é uma Vênus bruta, carne analfabeta e lúbrica?... Disse-lhe o meu pavor.

— Quê! Naquela casa? É impossível!

— É verdade. Não sei que foi...

— Talvez mau vinho, ao jantar.

— Não bebi.

— Então, meu caro, és um mimoso dos deuses, o único homem neste encanecido e esgotado planeta a quem ainda foi dado gozar a super excelência de um frisson. Porque não há mais frissons. Os poucos que restavam Baudelaire consumiu-os. E tu encontraste um!... Homem feliz! E deixar a sensação superior para chapinhar no lodo desta Suburra infecta. Se me prometes um pouco do teu medo, um arrepio, ao menos, vou contigo, passo a noite a teu lado. Se não, vem daí à Copacabana, conversar com o velho oceano e saborear um chop gelado, que é o orvalho com que costumo rociar a flor do meu lirismo, em noites sentimentais. Vamos, decide-te!

Levei-o comigo. Ele ficou no divã da saleta e, até tarde, folheando volumes, atroou o silêncio com a música das estrofes e rompantes de entusiasmo.