Esfinge (Coelho Neto)/VII
A tarde esmorecia lânguida, saturada de aromas, já entristecendo no esvair das cores quando, repelindo a pena trabalhosa, recuei da mesa acurvado, a boca amarga, requeimada do fumo, a cabeça aturdida, arvoada, atroando em reboo de vácuo.
Espírito e corpo resentiam-se do porfiado trabalho. Amolecidamente recostei-me ao respaldar da cadeira, as pernas estendidas, a cabeça derreada e assim fiquei em esquecido descanço, revendo o sonho em que, desde as primeiras horas da manhã, ligeiramente interrompidas para um sóbrio almoço, tomado, às pressas, no aposento, até aquele violáceo e merencório crepúsculo, eu andara enlevado, convertendo as palavras rutilas do maravilhoso original de James nos dizeres pálidos e pobres de uma versão mesquinha.
Ainda fumei um distraído cigarro ouvindo o trissar das andorinhas que se abeiravam da casa, os olhos enlevadamente atidos no brilho trêmulo de urna estrelinha solitária que surgira tímida e parecia vexada e receiosa de ser a única no imenso deserto do céu, ainda quente do sol, rastreado de laivos de púrpura como a arena sangrenta de um coliseu.
Na vizinhança galravam crianças e era doce e voluptuoso como um esfrolar de sedas o lento farfalho das palmeiras ao sopro da viração.
Sons vagos chegavam indecisamente ondulando de leve no silêncio. Pouco a pouco cresciam, ora confusos, em rumor, ora distintos em melodia, claros, em vibrações airosas, acentuando-se ou esmorecendo como se oscilassem no espaço. Irromperam em estrondo, atroaram abertamente em clangor e uma rajada sonora de metais e tambores abocoti num estrépito e foram, de novo, morrendo os sons, deixando no ar místico da tarde e na tranquilidade mansa daquela rua de arrabalde um eco marcial, como ao destilar de um exército triunfante pela planura sossegada de uma aldeia pacífica, agasalhada à sombra de arvoredos, embalada, de leve, pela surdina das levadas.
Era uma banda militar que passava em bonde para Botafogo, Sacudi, de arremesso, os braços bocejando escanceladamente e, pondo-me de pé, a vacilar em passos entorpecidos, caminhei até à janela onde me debrucei em contemplação extática.
As palmeiras pareciam de bronze, ainda lampejavam à última fulguração do sol. Pombos cruzavam-se em Voo sereno e o cheiro que subia da terra molhada da réga era fresco e agradável como um hálito de saúde.
A campainha soou em baixo para o jantar.
Sentia-me lerdo, sem ânimo de; mover-me, preso àquela serenidade, acompanhando, com a curiosidade de um espetáculo novo, o abrolhar das estrelas, o esmaecer das tintas vivas do sol, o lento espraiar da sombra que enegrecia a mais e mais e a mais e mais estrelava-se.
Logo as vozes humildes acordaram na erva rasa — o canto noturno dos pequeninos das luras, os grilos, que fazem, no silêncio, em ritmo, como o tic-tac monótono do relógio da treva: e os vagalumes acenderam-se entre as ramas, levando os seus lampejos erradios por todos os cantos obscuros.
O jardineiro raspava o alfange com um ringir arrepiado e cantava baixinho.
De novo a campainha soou.
Fiz uma ligeira ablução, vesti-me num alquebramento, aborrecido, como se saísse de um sono mal dormido e, deixando a saleta, que tresandava a fumo, desci vagarosamente as escadas, sentindo os degraus cederem aos meus passos molemente, maleáveis como de borracha.
Os hóspedes começavam a acercar-se da sala de jantar já iluminada, com a louça alvejando sobre a toalha lisa, por entre frescas flores que coloriam e perfumavam a modéstia da mesa de hóspedes.
Um falário atraiu-me à varanda onde um grupo discutia. O assunto era um telegrama e Pericles, exaltado em patriotismo, com a gravata a esvoaçar em pontas soltas, estrondava hipérboles, rememorando a nossa história épica: batalhas renhidas, feitos de bravura, atos de temeridade e gabava, com desabalados gestos, a resistência e a valentia sem arrogância do caboclo do Norte e o arranque desabrido dos cavalarianos do Sul, a gauchada brava, cuja lança, no arremesso indômito das cargas, leva de vencida aos mais aguerridos quadrados desbaratando-os no entrevero, aos gritos. E rubro, apoplético, com as veias túrgidas e roxas, amarfanhando o jornal em que lera o telegrama, atirou-o violentamente ao chão como se arrojasse, com asco, um guante ferrado aos pés de um ribaldo infame.
Riram-se do gesto e ele, mais incêndido esbugalhando os olhos que espirravam áscuas, pôs-se a esmurrar o peito com um som cavo, oferecendo-o às lanças e à metralha dos biltres que ousavam afrontar a Pátria.
— Se houver guerra deixo tudo e alisto-me. Não, que o meu patriotismo não é de boca...
— É de chapa, contraveio brejeiramente Basílio, com as belfas a tremerem de riso. Pericles engasgou cravando os olhos fuzilantes no guarda-livros, cuja face gorda e balofa inchava tufada de ironia.
— Olhe, meu amigo, durante a revolta passei muita noite nas linhas do Caju, de arma em punho. Não sou dos que se metem ao mato quando sentem o cheiro da pólvora. Prosa não é comigo. Se houver guerra... Marcho!
— Ora deixe-se disso, contrariou o comendador amuado. E espichando-se nas pontas dos pés, com o busto em recacho, inquiriu: Guerra com quem? Por quê?
— Com quem? Pois o senhor ainda pergunta?
— Sim: com quem? Pericles alargou um passo e, em atitude trágica, espetando o dedo, mostrou o jornal em bola junto à balaustrada:
— Leia o telegrama. Está ali!
— Qual telegrama, qual carapuça. Isso é tramoia, política, negociata. O país precisa mas é de braços, braços que trabalhem a terra aproveitando toda essa riqueza inculta que vai por aí além. Deixe-se de bravatas, meu amigo.
— Bravatas?! E remordeu os beiços lívidos. Se o senhor fosse brasileiro... O comendador afuzilou um olhar tremendo ao empreiteiro, inteiriçaram-se-lhe os braços, aduncaram-se-lhe os dedos como em retração de dor e, avançando um passo, rouquejou a estourar de ira:
— Não, não sou brasileiro, mas amo este país muito mais do que o senhor que o quer ensanguentar, arrasar e, fulo de raiva, bramiu: entrega-lo ao inglês! O outro recuou esgazeado. Sim, senhor... Ao inglês! Tenho aqui tudo que é meu, a fortuna e a vida, tudo, entende o senhor Pericles? Tudo! E o senhor? Conteve-se em atitude de desafio, os olhos fitos no rosto apalermado do empreiteiro. Passou a mão pela calva lustrosa, um momento ainda manteve o olhar em riste à cara lívida do patriota, que respirava com ânsia e, curvando o busto, supercilioso e hostil, vibrava os lábios numa palpitação de cólera — e sentia-se a violência de um decisivo insulto. Por fim disse:
— Sabe que mais, meu amigo? Cavou-se um hiato pávido no grupo e o comendador concluiu— Vamos à sopa que é melhor, e antes que esfrie.
Foi um alívio para todos e Basílio, para dar a nota final com pilheria, comandou: Ao rancho! E todos entraram na sala de jantar a rir.
Afortunadamente para o empreiteiro, que recalcava a humilhação da investida do comendador, Brandt apareceu com o Décio sempre gárrulo que, ainda à porta, muito casquilho num costume de flanela clara, pediu licença a miss Barkley para oferecer-lhe um ramo de cravos vermelhos, de Petrópolis, que trazia, em tufo, à botoeira.
À entrada ruidosa do estudante um largo sorriso iluminou as fisionomias, a própria inglesa, sempre taciturna, engelhou a face macilenta descobrindo os dentes, grandes e amarelos como favas, no arregaçar do lábio pálido.
— Aqui estou a pedir perdão a miss da minha ausência ingrata. O fim do ano aproxima-se minacíssimo e é necessário que eu furte algumas horas ao doce amor e à meiga amizade para consagra-las à sordicie das moléstias, à Dor Humana que há de ser a garantia do meu Futuro risonho. Sentou-se, abriu o guardanapo e, relanceando os olhos luminosos pela assistência, enquanto o criado lhe servia a sopa, murmurando-lhe uma amabilidade delambida, disse: Por aqui todos bons. Isto é a casa de Hygia, o templo da saúde benéfica. Basílio resmungou:
— Uma caserna, doutor. Estamos ameaçados de sair a campo, com armas. O nosso amigo Pericles vai alistar-se no exército e nós, por solidariedade, vamos com ele. O comendador rilhou cevamente o assado e o empreiteiro, reassumindo o porte altivo, repassou o guardanapo pelos beiços e, depois de mastigar sofregamente o bocado que lhe rolava na boca, exclamou:
— É verdade!
— Alistar-se? O senhor?
— Pois não! E, aquecido: Eu e todos os verdadeiros patriotas. Aprumou-se com o talher fincado na mesa e, fitando o estudante, interpelou: Diga-me, o senhor que é moço, generoso, entusiasta — No caso de uma guerra com o estrangeiro o senhor vai ou fica? Décio suspirou com mansidão:
— Fico.
— O senhor!? Pericles contestou com firmeza: O senhor não fica!
— Não fico?
— Não fica! Marcha! Será dos primeiros.
— Segundo o Evangelho. E explicou: O meu patriotismo não é belicoso, meu caro senhor Pericles. Não tenho o braço camoneano. Demais as guerras neste século, com os terríveis engenhos que as reforçam, são tremendamente mortíferas. Assim é necessário que fique um homem na Pátria como semente para repovoa-la e escrever, em páginas eternas, a epopeia soberba dos seus maiores. Serei eu esse homem predestinado. Enquanto os meus patrícios vencerem — porque não admito a hipótese de uma derrota — eu, no silêncio deserto da terra mater, irei compondo os alexandrinos perfeitos que hão de levar, pelos séculos a dentro, a fama dos herois e os seus nomes. E no dia do regresso das tropas irei ali para o Pharoux com uma grande lira, e nu, coroado de louros, como Sofocles diante dos gregos de Salamina, atravessarei a Avenida, à frente dos exércitos, cantando o pean da vitória. Subitamente, porém, erguendo-se de repelão, disse com ressentimento: Mas o senhor, que usa o nome do grande grego que fez de Atenas a capital da Beleza, não tem o direito de pensar em guerras, amigo Pericles.
— Apoiado! Roncou o comendador atolando-se no pudding.
— A guerra é a razão dos tiranos, a força dos bárbaros. O homem inteligente, as nações superiores vencem com o claro juízo e se vibram uma espada é a da Lei que apenas golpeia o mal, corno o bisturi do cirurgião. Não falemos em guerras. Falemos do amor, da Beleza, a Beleza que é o encanto da vida.
— E se nos insultarem?
— Ninguém nos insulta.
— Ah! Ninguém nos insulta?
— Ninguém! Afirmou o estudante com austeridade.
— O senhor não tem lido os jornais?
— Não, meu amigo, não tenho lido, nem leio. O meu jornal é o azul. Leio nele os dias e as noites, os formosos artigos da claridade e da sombra que são as nuvens douradas e as estrelas brilhantes. A máquina rotativa que me interessa é o mundo. Mas a propósito de Beleza: Como vai o Apolo bretão? O formoso James, assombro e maravilha da cidade?
— Meteu-se na Tijuca a caçar borboletas, disse o comendador.
— Não tem aparecido?
— Não.
— Homem estranho! Basílio sorriu sorrateiramente abaixando a cabeça sobre o prato. Miss Barkley falou:
— Acho que ele está a partir.
— Deixa-nos?
— Sim. Volta para a Inglaterra.
— Por quê?
— É um esquisito. O comendador asseverou:
— Doido! Doido é que ele é e varrido.
— Doido porque, comendador? Perguntou Décio.
— Por quê? Pois um homem de juízo faz lá as coisas que aquele faz? O senhor é porque só o conhece de vista. Pergunte ali ao seu amigo que mora paredes meia com ele. Décio fitou em mim os olhos interrogativos e eu respondi:
— O comendador engana-se. Mister James é um excedente vizinho. Não tenho razão de queixa.
— Pois eu lamento não poder dizer o mesmo e garanto-lhe que se ele ficasse mais um mês nesta casa quem se mudava era eu, que não tenho cabeça de turco. O diabo do homem não dorme, é toda a noite às patadas pelo sobrado. Deus me livre! Vá com Deus! Bonito, lá isso... Mas insuportável!
— Pois eu, declarou o estudante, dava anos de vida para passar um dia com ele. É um tipo que me interessa, um ser estranho. Deve ter um romance original. E acentuou: Comendador, beleza como aquela em homem... Ali há um mistério divino! Feliz daquele que o puder penetrar!
Basílio, sempre sarcástico, rebuçando-se com o guardanapo, ruminou maliciosamente a frase do estudante ao ouvido cerdoso do comendador que rinchavelhou. Mas Brandt que se mantivera, até então, alheiado comendo de vagar, de olhos baixos, depos de golpe o talher e, firmando o busto em atitude ostensiva, encarou com o guarda-livros, cujo sorriso foi-se, a pouco e pouco desvanecendo, como a alapardar-se nos refegos das bochechas gordas.
Olharam-se a fito, mas o artista dominou o adversário, fê-lo empalidecer, baixar os olhos e, em toda a mesa, percebeu-se a cena, ainda que muitos não atinassem com o motivo por não terem percebido o cochichar perverso do comendador dicaz.
Quando nos levantamos Brandt, taciturno, as mãos metidas nos bolsos, caminhou direito à varanda com ar enojado e, sem esperar o café, desceu ao jardim desaparecendo.
Décio, que me travara do braço, arrebatou-me para falar-me do seu amor, incidente obrigado em todas as suas conversas.
Exaltou a mulher divina, musa e parca, inspiradora dos seus versos, mas sempre a lembrar-lhe a morte, prendendo-o ao seu amor com a cubiça avara e inelutável com que o túmulo apodera-se do cadáver. Entregava-se-lhe abandonadamente nos braços, com a lassidão passiva de uma e vítima aspirando o martírio, o escândalo de uma surpresa que a expusesse à vingança do marido lançando-a, ensanguentada e nua, aos olhos curiosos do mundo, no esterquilinio do comentário. É uma mulher singular, romântica até a loucura. Às vezes, repelindo-me docemente de si, põe-se a chorar em silêncio, mais linda assim enfeitada de lágrimas. Se a interrogo responde numa voz que comove e excita: “Tenho medo!” E uma vez descreveu-me o seu terror refletido num sonho: “Fomos surpreendidos. Eu o vi entrar armado, ouvi o estampido do revólver, senti a dor das feridas, o calor fluente do sangue, agonizei e morri. Morta, porém, li a notícia dos jornais descrevendo todo o nosso amor e lamentando o teu talento tão cedo roubado às letras e a minha formosa mocidade tão tragicamente fanada. E vi-nos, a ambos, lado a lado, frios, rígidos, entre círios de misericórdia, nas mesas do Necrotério e, em torno de nós, a multidão corvejando e eu ainda te amava, o meu coração, parado e frio, ainda pedia o teu, a minha boca crestada tinha sede dos teus beijos, o meu corpo amortalhado reclamava o teu corpo. Um horror!” E queres saber? Essa obsessão começa a apoderar-se de mim — e, em voz em que havia tristeza e volúpia, disse: É uma fatalidade, meu velho. Saio todas as noites de casa com a certeza de que vou para a morte e, estreitando aquela mulher ao peito, aspirando-lhe o hálito, há ocasiões em que estremeço, sentindo-me traspassado por uma dor lancinante como de um punhal que me varasse o coração; e beijo-a, beijo-a na boca, nos olhos, nos cabelos entregando-lhe minha alma toda a minha vida. Uma loucura! Estou perdido e não posso fugir, não posso. Esse amor é um destino. É estúpido! Vamos.
Relanceou o olhar em torno: E Brandt? Isso um dia estoura com o guarda-livros. Esse sujeito é enfesadoramente antipático e má língua até a infâmia. Irrita. Natureza de víbora. Brandt tem razão. Vamos acalmá-lo. Saiu fulo!
O piano preludiava docemente e a luz, coando-se pela janela do chalé, dourava os ramos lustrosos do jasmineiro em flor.
Caminhamos e, como atravessássemos a álea das acácias, suavemente perfumada, detive o estudante numa necessidade imperiosa e urgente de comunicar o meu segredo, de transmitir a um espírito sutil a confidência maravilhosa, o arcano de que me fizera depositário James Marian.
— Disseste, falando de James, que deve haver um mistério na sua vida...
— Sim, um mistério divino. Disse e repito porque o sinto.
— E tens razão, Décio. O estudante encarou-me verrumando-me com o olhar.
— Sabes alguma coisa?
— Sei que é um poeta.
— Sim, uma hipóstase de Apolo.
— Ou um louco.
— Como?
— Se não é, em verdade, um prodígio da ciência Oculta.
— Não te compreendo, homem. Falas uma linguagem hierática, pareces um iniciado a anunciar prodígios.
— Tens que fazer?
— Se prometes esclarecer essas palavras abstrusas, digo-te que ainda que eu fosse encarregado de pastorear as estrelas o lobo Fenrir podia devorá-las sem que eu lhe saísse à frente, porque prefiro ouvir-te e à tua palavra, até com sacrifício do meu amor, ofereço as horas desta noite que promete ser estupenda. Fala!
E, rodopiando nos tacões, aspirando voluptuosamente o ar, gabou com enlevo: Como cheiram as magnólias! Flores de carne, seios de virgem. Sentes? Mas fala, dize lá o que sabes.
Tomando-lhe o braço e em passo vagaroso, abaixo e acima pela álea de acácias resumi, em breves palavras, a história do original de James e do livro misterioso, ainda vedado a todas as inteligências.
Décio ouvia-me com um sorriso de incredulidade e, quando terminei a exposição, rompeu às gargalhadas e com tal gosto que eu não pude conter o riso.
— Montaste o Pegaso, o alerião do sonho. Fizeste um romance e queres atribuí-lo ao misantropo. O processo é conhecido. Vai, vai buscar o original, homem da Fantasia, enquanto preparo o espírito do maestro, que está como o furibundo Ajax, para ouvir-te e gozar.
— Garanto-te, sob palavra, a verdade do que te disse. Trarei o original para convencer-te.
— Pois sim, homem: vai e não te demores. A noite está linda. Receberemos a aurora ao som dos teus períodos e a loura deusa das faces de rosa só terá de que orgulhar-se. Vai! E, rindo, seguiu para o chalé trauteando uma canção, em voga.
A casa parecia deserta. A noite fria fizera os hóspedes recolherem-se. No porão, através da vidraça iluminada, uma sombra esguia ia e vinha: Crispim, com certeza, a decorar textos. Na sala de jantar um bico de gás dava uma luz escassa.
Subi aos meus aposentos e, aclarando a sala, pus-me a reunir as tiras, tornei o misterioso volume e ia sair quando bateram à porta, de leve.
Julgando ser o Alfredo, que costumava aparecer à noite para rever os arranjos do quarto, pretexto com que fazia jus a gratificações miúdas, disse, sem voltar-me:
— Entra. A porta rangeu vagarosa, houve um soar de passos e logo o silêncio. Voltei-me então e grande foi a minha surpresa ao ver diante de mim James Marian.
Adiantei-me para falar-lhe, com sincero alvoroço de alegria, mas o seu frio retraimento conteve a minha expansão. Ofereci-lhe a minha própria cadeira de trabalho com uma solicitude atordoada.
O inglês parecia de mármore — olhos parados, sem o mais ligeiro friso na face branca e impassível, imóvel e hirto, a mão apoiada ao respaldar da cadeira. Falou em tom pausado e as palavras morriam antes da última sílaba como se lhe faltasse alento para completa-las.
— Venho pedir-lhe os meus escritos, disse. Devo partir, quero leva-los comigo. Se traduziu até o fim conhece uma vida singular, a história trágica de um infeliz que se arrasta dolorosamente pelos prazeres para aturdir-se; se não encetou o trabalho...
— Tenho-o quase concluído faltam-me apenas duas páginas que se referem à sua vida no Brasil, se é que, em verdade, é o senhor o ente de agonia que se debate em tão extraordinária narrativa.
— Sim, sou; disse, e, empalidecendo, como em desmaio, e em voz difícil, continuou: O que lhe falta é pouco, quase nada, esse pouco, sem valor. A minha vida no Brasil...! Eu aqui procurei a Natureza, só me relacionei com a paisagem e com a luz; repousei e levo saudade da terra e do céu deste país de encanto. Impressão... A não ser a natureza, só me resta uma. Deu-me a uma infeliz que se escravizou à minha sombra, que se deixou prender num sonho... E morreu de amor. Fiz com ela o que dizem que as sereias fazem com os náufragos: em quanto sentem calor têm-nos nos braços, logo que morrem e esfriam rejeitam-nos do colo. Sorvi-lhe o sentimento, tive-a chegada à minha alma como um sedativo, vivi daquele amor. Vampirismo espiritual, talvez.
— Miss Fanny...?
— Essa. O mais...
— E parte?
— Sim, parto. Baixou o olhar e o seu corpo oscilou brandamente, em balanço, esvoaçaram-lhe os cabelos como a uma rija lufada. Abotoou-se agasalhando-se.
— Para onde vai? Releve a minha curiosidade.
— Não sei. Dê-me os livros. Fiz um pacote de tudo e, entregando-lhe, senti-lhe a frialdade gélida dos dedos. Quis apertar-lhe a mão ele, porém, retraindo-se, fez apenas um gesto de cabeça e, dando volta, saiu vagarosamente como havia entrado.
Acompanhei-o até o limiar da escada, vi-o descer, desaparecer em baixo. Ainda lhe ouvi os passos.
Nada houvera de extraordinário naquela visita, entretanto eu sentia-me como assombrado, solto no vácuo, sem firmeza e só, muito só, abandonado como se toda a casa silenciosa se houvesse esvaziado dos seus habitantes e ficasse entregue a espíritos obsessores que por ela errassem vagamente, ora invisíveis, ora encarnados, manifestando-se em aparições sútis e efêmeras que surgiam, um momento mostravam-se em vulto e desapareciam.
Tornei aos meus aposentos, acendi um cigarro, sentei-me pensativo: “Porque não fora James aos seus cômodos? Talvez houvesse de lá saído... Fora assim, com certeza. Regressava à casa do amigo, aos arvoredos da montanha, à voz adormecedora das águas vivas”.
Pareceu-me que a porta rangera de novo, abrindo-se: voltei-me arrepiado, com medo. Nada, o silêncio. Longe, na vizinhança, um piano soava triste e as tubas roufenhas dos automóveis mugiam à distância.
Lembrei-me, então, do estudante que me esperava. Tomei a pasta onde guardara a minha tradução e, recordando as palavras incrédulas com que ele respondera à minha narração, disse a mim mesmo: “Naturalmente vai rir quando eu lhe disser que James veio buscar o seu original e o livro misterioso. Com efeito, justamente no momento da prova, quando eu deles carecia para documentar o que afirmara...”.
Mas com certeza viram-no passar, sair com o embrulho. Ele não partiria sem despedir-se de miss Barkley... E, sem mais preocupar-me com o incidente, desci a caminho do chalé, com a pasta.