Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Os Doentes
Os Doentes
I
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia.
Somente, na metropole vasia,
Minha cabeça autónoma pensava!
Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pizava,
Um figado doente que sangrava
E uma garganta de orphã que gemia!
Tentava comprehender com as conceptivas
Funcções do encephalo as substancias vivas
Que nem Spencer, nem Hœckel comprehenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de billiões de raças
Que ha muitos annos desappareceram!
II
Minha angustia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do Desconsôlo,
Eu tinha de comer o ultimo bolo
Que Deus fazia para a minha fome!
Convulso, o vento entoava um pseudo-psalmo.
Contrastando, entretanto, com o ar convulso
A noite funccionava como um pulso
Physiologicamente muito calmo.
Cahiam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem vélas,
O uivo desenganado das cadellas
E o gemido dos homens bexigosos.
Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em cima de um tumulo, um cachorro
Pedia para mim agua e soccorro
A’ commiseração dos transeuntes!
Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Creando as superstições de minha terra,
A queixada especifica de um burro!
Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Benigna agua, magnanima e magnifica,
Em cuja álgida uncção, branda e beatifica
A Parahyba indigena se lava!
A manga, a ameixa, a amendoa, a abobora, o alamo
E a camara odorifera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo humus
Que Deus espalha á beira do teu thálamo!
Nos de teu curso desobstruidos trilhos,
Apenas eu comprehendo, em quaesquer horas,
O hydrogenio e o oxygenio que tu choras
Pelo fallecimento dos teus filhos!
Ah! Somente eu comprehendo, satisfeito,
A incógnita psychê das massas mortas
Que dormem, como as hervas, sobre as hortas,
Na esteira egualitaria do teu leito!
O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico hyssópe
Em seu fantasmagorico galope
A abundancia geometrica do espaço.
Meu ser estacionava, olhando os campos
Circumjacentes. No Alto, os astros miudos
Reduziam os Ceus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!
III
Dormia em baixo, com a promiscua vestia
No embotamento crasso dos sentidos,
A communhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da molestia.
Feriam-me o nervo optico e a retina
Aponevroses e tendões de Achilles,
Restos repugnantissimos de bilis,
Vomitos impregnados de ptyalina.
Da degenerescencia ethnica do Arya
Se escapava, entre estrepitos e estouros,
Reboando pelos seculos vindouros,
O ruido de uma tosse hereditaria.
Oh! desespero das pessoas tisicas,
Adivinhando o frio que ha nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submettidas apenas ás leis physicas!
Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o oleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!
Descender dos macacos catarrhineos,
Cahir doente e passar a vida inteira
Com a bocca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguineos
Sentir, adstrictos ao chimiotropismo
Erótico, os microbios assanhados
Passearem, como innumeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um portuguez cansado e incomprehensivel,
Vomitar o pulmão na noite horrivel
Em que se deita sangue pela bocca!
Expulsar, aos bocados, a existencia
Numa bacia automata de barro,
Allucinado, vendo em cada escarro
O retrato da propria consciencia!
Querer dizer a angustia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raizes do ultimo vocabulo!
Não haver therapeutica que arranque
Tanta oppressão como si, com effeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A machina pneumatica de Bianchi!
E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um chronómetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!
Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardôres damnados da febre héctica,
Consagrando vossa ultima phonética
A uma recitação de miseréres.
Antes levardes ainda uma chimera
Para a garganta omnivora das lages
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!
Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesánica,
É a alfandega, onde toda a vida orgánica
Ha de pagar um dia o ultimo imposto!
IV
Começára a chover. Pelas algentes
Ruas, a agua, em cachoeiras desobstruidas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medulla dos Doentes!
Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Sahia, com o vexame de uma fusa,
A magua gaguejada de um cretino.
Aquelle ruido obscuro de gagueira
Que a noite, em sonhos mórbidos, me acórda,
Vinha da vibração bruta da córda
Mais recondita da alma brasileira!
Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquelle instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a visceras glutonas,
A carcassa esquecida de um selvagem.
A civilisação entrou na tába
Em que elle estava. O genio de Colombo
Manchou de opprobrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cóva do morubichaba!
E o indio, por fim, adstricto á ethnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o annullava na critica da Historia!
Como quem analysa uma apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça
Na tumba de Iracema!.
Ah! Tudo, como um lúgubre cyclone,
Exercia sobre elle acção funesta
Desde o desbravamento da floresta
Á ultrajante invenção do telephone.
E sentia-se peor que um vagabundo
Microcéphalo vil que a especie encerra,
Desterrado na sua propria terra,
Diminuido na chrónica do mundo!
A hereditariedade dessa pécha
Seguiria seus filhos. Dóra em diante
Seu povo tombaria agonisante
Na lucta da espingarda contra a flécha!
Veio-lhe então como á femea veem antojos,
Uma desesperada ancia improficua
De estrangular aquella gente iniqua
Que progredia sobre os seus despojos!
Mas, deante a xantochroide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inubias,
E agora, sem difficeis nuanças dubias,
Com uma clarividencia aterradora,
Em vez da prisca tribu e indiana tropa
A gente deste seculo, espantada,
Vê sómente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!
V
Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamleticos dispersos
Atiram na consciencia dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.
As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roido pelos medos,
Batia com o pentagono dos dedos
Sobre um fundo hypothético de chagas!
Diabolica dynámica damninha
Opprimia meu cerebro indefeso
Com a força onerosissima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.
Perfurava-me o peito a aspera púa
Do desanimo negro que me prostra,
E quasi a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bebedos da rua.
Hereditariedades polytypicas
Punham na minha bocca putrescivel
Interjeições de abracadabra horrivel
E os verbos indignados das Philippicas.
Todos os vocativos dos blaphemos,
No horror daquella noite monstruosa,
Maldiziam, com voz stentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.
Como o que havia na ancia de conforto
De cada ser, ex: o homem e o ophidio,
Uma necessidade de suicidio
E um desejo incoercível de ser morto!
Naquella angustia absurda e tragi-comica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorsão neurotica de um bicho
Que ingeriu 30 grammas de nux-vomica.
E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terraquea superficie,
Consubstanciar-me todo com a immundicie,
Confundir-me com aquella coisa pórca!
Vinha, ás vezes, porém, o anhelo instavel
De, com o auxilio especial do osso masseter
Mastigando homoeomerias neutras de ether
Nutrir-me de materia imponderavel.
Anhelava ficar um dia, em summa,
Menor que o amphyoxus e inferior á tenia,
Reduzido á plastidula homogenea,
Sem differenciação de especie alguma.
Era (nem sei em synthese o que diga)
Um velhissimo instincto atavico, era
A saudade inconsciente da monéra
Que havia sido minha mãe antiga!
Com o horror tradicional da raiva côrsa
Minha vontade era, perante a cóva,
Arrancar do meu proprio corpo a prova
Da persistencia trágica da força.
A pragmatica má de humanos usos
Não comprehende que a Morte que não dorme
É a absorpção do movimento enorme
Na dispersão dos atomos diffusos.
Não me incommoda esse ultimo abandono.
Si a carne individual hoje apodrece.
Amanhã, como Christo, reapparece
Na universalidade do carbono!
A vida vem do ether que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me enthusiasma
É a esphera microscópica do plasma
Fazer a luz do cerebro que pensa.
Eu voltarei, cançado da ardua liça,
Á substancia inórganica priméva,
De onde, por epigénesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!
Quando eu fôr misturar-me com as violetas,
Minha lyra, maior que a Biblia e a Phédra,
Reviverá, dando emoção á pedra,
Na acustica de todos os planetas!
VI
Á algida agulha, agora, alva, a saraiva
Cahindo, análoga era. Um cão agora
Punha a atra lingua hydrophoba de fóra
Em contracções myológicas de raiva.
Mas, para além, entre oscillantes chammas,
Acordavam os bairros da luxuria.
As prostitutas, doentes de hematuria,
Se extenuavam nas camas.
Uma, ignobil, derreada de cansaço,
Quasi que escangalhada pelo vicio,
Cheirava com prazer no sacrificio
A lepra má que lhe roia o braço!
E ensanguentava os dedos da mão nivea
Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria barbara que cobre
Os saracoteamentos da lascivia.
De certo, a perversão de que era prêza
O sensorium daquella prostituta
Vinha da adaptação quasi absoluta
Á ambiencia microbiana da baixeza!
Emtanto, virgem fostes, e, quando o ereis,
Não tinheis ainda essa erupção cutanea,
Nem tinheis, victima ultima da insania,
Duas mammarias glándulas estereis!
Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violencia, no horizonte,
O sol malvado que seccou a fonte
De vossa castidade agora finda!
Talvez tivesseis fome, e as mãos, em balde,
Estendestes ao mundo, até que, a tôa,
Fostes vender a virginal corôa
Ao primeiro bandido do arrabalde.
E estais velha! — De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Frequentam diariamente vosso quarto!
Promettem-vos (quem sabe?!) entre os cyprestes
Longe da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvanicas mais
O noivado que em vida não tivestes!
VII
Quasi todos os lutos conjugados,
Como uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de oleo
Na architectura archaica dos sobrados.
Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha illusão de moço,
Como a bocca de um poço artesiano!
Atabalhoadamente pelos beccos,
Eu pensava nas coisas que perecem,
Desde as musculaturas que apodrecem
A’ ruina vegetal dos lyrios seccos.
Scismava no proposito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da egreja,
E vai depois leval-o ao cemiterio!
E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craneana caixa tôsca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciencia terrivel desse insecto!
Regougando, porém, argots e aljamias,
Como quem nada encontra que o perturbe,
A energumena grey dos ebrios da urbe
Festejava seu sabbado de infamias.
A estática fatal das paixões cégas,
Rugindo fundamente nos neuronios,
Puxava aqnelle povo de demonios
Para a promiscuidade das adégas.
E a ebria turba que escáras sujas masca,
A’ falta idiosyncrasica de escrupulo,
Absorvia com gaudio absintho, lúpulo
E outras substancias toxicas da tasca.
O ar ambiente cheirava a acido acético,
Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
Appareceu, escorraçando a festa,
A mandibula inchada de um morphetico!
Saliencias polymórphicas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspicuo prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo
Tamanho aberratorio das orelhas.
O facies do morphético assombrava!
— Aquillo éra uma negra eucharistia,
Onde minh’alma inteira surprehendia
A Humanidade que se lamentava!
Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Já podre, que a morphéa miseravel
Tornava ás impressões tactis, palpavel,
Como se fosse um corpo organisado!
VIII
Em torno a mim, nesta hora, estryges vôam,
E o cemiterio, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede,
Pela degradação dos que o povoam.
Quanta gente, roubada á humana cohorte,
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;
E nùa, após baixar ao cháos budhista,
Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1$200 ao logista!
Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabellos se arripiaram.
Os evolucionismos bemfeitores
Que por entre os cadaveres caminham,
Iguaes a irmães de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer ás flôres!
Os defuntos então me offereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animaes que apodreciam!
É possivel que o estomago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o anthropophago appetite,
Comendo carne humana, á meia noite!
Com uma illimitadissima tristeza,
Na impaciencia do estomago vasio,
Eu devorava aquelle bôlo frio
Feito das podridões da Natureza!
E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos,
Vendo passar com as tunicas obscuras,
As escaveiradissimas figuras
Das negras deshonradas pelos brancos;
Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nús das moças hottentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
A sodomia indigna dos moscardos;
Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a egualitaria regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubernio diario das quitandas!
Na evolução de minha dôr grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indemnisação dos meus serviços,
O beneficio de uma cóva fresca.
Manhã. E eis-me a absorver a luz de fóra,
Como o incola do pólo artico, ás vezes,
Absorve, após a noite de seis mezes,
Os raios calorificos da aurora.
Nunca mais as gotteiras cahiriam
Como propositaes settas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que soffriam!
Do meu cerebro á absconsa taboa rasa
Vinha a luz restituir o antigo credito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possue um sol dentro de casa.
Era a volupia funebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
Á apprehensão physiologica do faro
O odôr cadaveroso dos destroços!
IX
O inventario do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mammifero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!
O genio procreador da especie eterna
Que me fizera, em vez de hyena ou lagarta,
Uma sobrevivencia de Siddhartha,
Dentro da phylogénese moderna;
E arrancara milhares de existencias
Do ovario ignobil de uma fauna immunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as fallencias.
Um céu calamitoso de vingança
Desaggregava, despota e sem normas,
O adhesionismo biontico das fórmas
Multiplicadas pela lei da herança!
A ruina vinha horrenda e deleteria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da materia em fusão que ainda ha no centro,
Para alcançar depois a periphéria!
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu odio exerces!
Mas, a meu ver, os saxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edificios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstracto que não morre
Cansára. O ar que, em colonias fluidas, corre,
Parecia também desaggregar-se!
Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto. Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me nalma, emtanto,
O começo magnifico de um sonho!
Entre as fórmas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da cellula inicial de um Cósmos novo!
O lethargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva nocturna
O vagido de uma outra Humanidade;
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquelle grande féto,
Que vinha substituir a Especie Humana!