Eurico, o Presbítero/IX
"Congregados todos os godos, opôs‑se à entrada dos árabes e valorosamente foi ao encontro da invasão."
Rodrigo de Toledo: Das Coisas de Esp. L. 3º.
Poucos dias haviam passado depois que o duque de Córduba recebera a última carta do infeliz Eurico. A frente das suas tiufadias ele se encaminhara para Híspalís, seguindo as margens do Bétis. Ao chegar à antiga Rômula, o bispo Opas recebeu‑o com demonstrações de alegria tais, que as suspeitas de Teodomiro, suscitadas, malgrado seu, pelas revelações do presbítero, quase se desvaneceram. Na linguagem do sacerdote parecia reverberar‑se indignação profunda contra o conde de Septum e contra os demais godos que tentavam unidos com os bárbaros, assolar a terra natal. O metropolita, segundo os costumes daquela época, tinha deposto o báculo de pastor para cingir a espada de guerreiro, e aos paços episcopais de Hípalis viam‑se chegar todos os dias os parentes de Opas e, por isso, de Vítiza, cujo irmão este era. Os nobres que tinham seguido o bando dos mancebos Sisebuto e Ebas e que, pela maior parte, viviam longe da corte, ajuntavam os seus servos e clientes à hoste do bispo guerreiro, que prometia acompanhar o rei godo com um esquadrão mais lustroso que o de seus sobrinhos, a quem Roderico dera de feito o mando supremo de uma das alas do exército que congregara em Toletum.
Em Híspalis, como por todos os ângulos da Espanha, os martelos dos fundidores e armeiros retumbavam nas bigornas com ruído incessante: açacalavam‑se as armas, puliam‑se e provavam‑se as armaduras; e os corcéis rápidos e robustos da Bética e da Lusitânia, impacientes nas tendas alevantadas em roda dos muros da cidade, mordiam os freios brilhantes e pareciam adivinhar que estava próximo um dia de combate. Os servos e os libertos, em competência com os homens livres e nobres, corriam a rodear os pendões da independência da pátria, e o sangue generoso dos godos como que se despertava mais ardente e cheio de vigor ao grito da guerra santa, depois de uma sonolência secular, em que à sua antiga ousadia só dera sinais de vida nas lutas sem glória das dissensões intestinas.
E toda esta energia, todo este recordar‑se da rica herança de esforço, legado pelos conquistadores setentrionais a seus netos da Ibéria, dir‑se‑ia que eram suscitados pela Providência para salvar a monarquia gótica, porque de tudo isso ela carecia para resistir aos invasores. Desde que o exército destes, semelhante a serpe monstruosa, tinha cingido estreitamente a montanha do Calpe, não se passara um único dia em que não se fortalecesse e engrossasse. As encostas do Ábila e os despenhadeiros do Atlas, os vales da Mauritânia e os areais de Saara e de Barca de contínuo arrojavam para a Europa, através do Estreito, os seus filhos tostados ao sol fervente de África. Sem perícia militar, estes bárbaros são todavia temerosos nas pelejas, porque os capitães experimentados da Arábia os dirigem e movem como lhes apraz, e, porque sectários de uma religão nova, crédulos mártires do inferno, buscam os embusteiros e torpes deleites que, além da morte, lhes prometeu o profeta de Iatribe, arremessando‑se com um valor que se creria de desesperados diante do ferro dos seus contrários e contentando‑se de acabar, contando que sobre os seus cadáveres se hasteie vitorioso o estandarte do Islame.
A esta gente bruta e indomável, cujo esforço vem das crenças da outra vida, se ajuntam os esquadrões de cavaleiros sarracenos que vagueiam pelas solidões da Arábia, pelas planícies do Egito e pelos vales da Síria, e que, montados nas suas éguas ligeiras, podem rir‑se do pesado franquisque dos godos, acometendo e fugindo para acometerem de novo, rápidos como o pensamento, volteando ao redor dos seus inimigos, falsando‑lhes as armas pela juntura das peças, cerceando‑lhes os membros desguarnecidos, quase sem serem vistos, e apesar da sua incrível destreza, pelejando, quando cumpre, frente a frente, descarregando tremendos golpes de espada, topando em cheio com a lança no riste, como os guerreiros da Europa, e assaz robustos para, muitas vezes, os fazerem voar da sela nestes recontros violentos: homens, enfim, que sem orgulho, se podem crer os primeiros do mundo num campo de batalha, pelo valor e pela ciência da guerra. É esta cavalaria irresistível que constitui o nervo da hoste dos muçulmanos e em que funda todas as suas esperanças o impetuoso Tárique.
Pouco depois da chegada de Teodomiro a Híspalis, um dia ao romper do sol, viu‑se ao longe para a banda das serranias ao norte do Bétis resplandecerem as cumeadas das montanhas, como se um grande incêndio devorasse as brenhas e os carvalhais antigos que povoavam as quebradas das serras. Era a hoste do rei dos godos, que, saindo de Oreto, se encaminhava por Ilipa e Itálica, seguindo a margem direita do rio, para a antiga capital da Bética. Daqui, engrossando com as tiufadias de Teodomiro e com os que seguiam o pendão de Opas, o exército de Roderico devia marchar para acometer os árabes e entregar à sorte das batalhas os futuros destinos da Espanha.
Era já tempo. A torrente dos inimigos descera, enfim, do Calpe ou Gebal Tárique, cujo nome de muitos séculos o capitão árabe tinha apagado, para escrever o próprio nome no colar servil das muralhas que lhe lançara. O estandarte do profeta de Meca já flutuava nos campos da Bética, e a sua passagem era assinalada com ruínas, sangue e incêndios. Por onde quer que os muçulmanos tinham atravessado ficavam assentados o silêncio do sepulcro e a assolação do aniquilamento. Tárique era o anjo exterminador mandado por Deus às Espanhas, e a sua espada o raio despedido do céu para fulminar o império dos godos.
Saindo do seu ninho de águia, construido no promontório do Estreito, os invasores internavam‑se no coração da província. Depois de haverem transposto as montanhas que se alteiam desde as ribas setentrionais do Bélon até Lastígi, onde as serranias se enlaçam com as alturas de Nescânia, tinham‑se assenhoreado sem resistência da cidade episcopal de Asido e, descendo dali para os vales que serpeiam de Gades a Segôncia, haviam assentado campo nas margens do Críssus. Tárique esperava lá o recontro dos godos. Desde que partira do Calpe, todos os dias, quase todas as horas, se viam chegar à hoste do Islame cristãos vindos do lado de Híspalis, conduzidos pelos caudilhos dos almogaures ou corredores africanos. Apenas estes homens desconhecidos eram levados ante o capitão árabe, ele enviava um dos seus cavaleiros ao lugar onde tremulava o pendão de Juliano, e o conde de Septum não tardava a vir ajuntar‑se com Tárique. Por vezes, à sombra de carvalho frondoso, no meio dos bosques cerrados das montanhas ou debaixo do pavilhão alevantado à hora da sesta em campina abrasada do sol, demoravam‑se os dois, por largo espaço, a sós com esses homens, em cujo aspecto era fácil ler estampada a traição e a vileza. Depois, os desconhecidos partiam sem que ninguém ousasse atalhar‑lhes os passos; e, quando Juliano voltava para a pequena ala dos soldados da província transfretana, via‑se‑lhe o rosto, não radiante do contentamento que ressumbra de um coração puro quando folga, mas como sulcado por um raio da alegria feroz do criminoso que vê chegar o momento do crime há muito meditado e previsto.
Havia dois dias que nenhum incógnito atravessava o Críssus para falar a sós com Juliano e Tárique. Estes passavam horas inteiras vagueando nas alturas vizinhas do acampamento pelo lado do meio‑dia e do oriente. Dali olhavam para a montanha em cujo cimo campeava a antiga povoação de Asta, e, depois de a examinarem por largo espaço, voltavam ao campo ou corriam às atalaias, que se multiplicavam continuamente. Depois, tudo recaía no silêncio e na escuridão; porque as almenaras ou fogueiras noturnas, que eram de uso entre os árabes, haviam inteiramente cessado desde a primeira noite em que estes assentaram as tendas perto da beira do rio.
Ia em meio a terceira noite após aquela em que os crentes do Islame tinham parado nas faldas setentrionais das cordilheiras de Asido. Eram profundas as trevas que se dilatavam pela face da terra, mas os raios cintilantes das estrelas rareavam o manto negro da atmosfera. Esta luz incerta reverberava trêmula e fugitiva nas pontas das lanças dos atalaias, que, apinhados na coroa dos outeirinhos ou embrenhados entre as sebes dos valados, observavam os picos agudos que, ao longe, para o norte, negrejavam como recortados nas profundezas do céu. O Críssus murmurava lá embaixo, e a esteira da corrente faiscava, também, com o reverberar da luz dos astros, enquanto o vento, passando pelas ramas de algumas árvores solitárias, respondia ao seu murmurar com o gemer da folhagem movediça.
Subitamente, no meio deste silêncio, alguns esculcas e vigias lançados além do rio na margem direita, creram perceber um ruído longínquo, que menos excitados ouvidos não saberiam distinguir do remoto e quase imperceptível despenhar de torrente. Então eles se debruçaram no chão e, unindo a face à terra, escutaram por alguns momentos. Depois, erguendo‑se a um tempo, ouviu‑se entre eles uma voz sumida que dizia ‑ Os romanos! ‑ e a turba repetiu ‑ Os romanos!
E unindo‑se numa fileira, encurvaram os arcos e ficaram imóveis.
Pouco a pouco aquele ruído, mal sentido a princípio, cresceu e tornou‑se mais distinto. Brevemente, fácil foi de perceber o tropear de milhares de cavalos e o bater confuso dos pés de milhares de homens. Os esculcas árabes conservavam‑se unidos e em silêncio.
De repente o grito de: ‑ Alá! ‑ retumbou de além do Críssus: seguiu‑se um estridor de poucas frechas, e num instante os atalaias do campo viram alvejar fitas de escuma que se estendiam através do rio para a margem esquerda. Eram os esculcas que o cruzavam a nado, tendo empregado na dianteira dos godos os seus primeiros tiros.
Uma nuvem de setas respondeu ao sibilar das dos esculcas arábes; algumas das fitas de escuma ondearam, derivaram pela corrente e desvaneceram‑se no dorso escuro e cintilante das águas. O Críssus recolhia os primeiros despojos de um terrível combate.
Na principal atalaia dos muçulmanos soou então uma trombeta; centenares delas responderam por todos os ângulos do campo a este convocar para a morte. Os esquadrões uniam‑se com a rapidez do relâmpago e, abandonando o recinto das tendas arrojavam‑se para as margens do rio.
Os godos, porém, tinham a vantagem de caminharem ordenados e, por isso, haviam topado com a corrente antes que os seus contrários começassem a atravessar a planície fronteira. As frechas caíam sobre os árabes, que se aproximavam, como saraiva espessa; largas e sólidas jangadas, trazidas em carros puxados por mulas possantes da Lusitânia, baqueavam sobre a água e, desdobrando‑se com engenhosa arte, cresciam até entestar com a margem oposta. Então, os melhores cavaleiros godos, curvando‑se para diante, com o franquisque erguido, corriam para as pontes, vergadas debaixo do peso dos cavalos e dos homens cobertos de armaduras, e vinham bater em cheio nos corredores árabes, que, no meio das trevas, não podiam esquivar‑se aos golpes do ferro inimigo. Já, nas bocas de algumas dessas estradas movediças, os cadáveres amontoados começavam a embargar os passos dos vivos; mas por outras, onde os árabes ainda mal ordenados e menos numerosos não tinham podido resistir ao ímpeto dos godos, golfavam torrentes de guerreiros, que, marchando unidos para uma e outra parte, acometiam de lado os árabes, os quais, feridos pela frente e pelas costas, vacilavam e retrocediam. Debalde a voz retumbante de Tárique sobrelevava por cima dos gritos de furor e de agonia de muçulmanos e cristãos. O número dez vezes maior dos godos tornava impossível a resistência, e a passagem do exército de Roderico para a margem esquerda do Críssus só Deus a poderia impedir.
Era quase manhã quando o capitão árabe se desenganou da utilidade de se opor por mais tempo à passagem dos inimigos. As tiufadias godas achavam‑se pela maior parte na campina onde se deviam resolver os destinos da Espanha, e bem que a este tempo todo o exército do Islame estivesse já em ordem de pelejar, a noite dava grande vantagem aos godos, cuja cavalaria, coberta de armas defensivas mais sólidas que as dos árabes, resistia facilmente aos cavaleiros do deserto, para quem a maior ligeireza e o mais destro modo de acometer eram baldados no meio das trevas. A um sinal das trombetas os esquadrões muçulmanos começaram a recuar e, alongando‑se pela frente do acampamento, esperaram o romper do dia, enquanto o exército godo acabava de transpor o rio e vibrava milhares de frechas perdidas para o lado onde os capilhares alvíssimos dos árabes branquejavam à luz duvidosa do céu recamado de estrelas.
Quando o sol, rompendo detrás dos outeiros de Segôncia, veio com o seu clarão avermelhado inundar as veigas do Críssus, o espetáculo que elas ofereciam era variado e sublime. De um lado as tendas dos árabes derramadas pelas raízes dos montes e pelos cimos dos outeiros, podiam comparar‑se ao acampamento das tribos do deserto, que, emprazadas à voz do profeta se houvessem ajuntado num ponto único das solidões onde vagueiam. Diante desta cidade imensa e movediça, os esquadrões dos muçulmanos, divididos por famílias e raças, estavam firmes e cerrados em frente de seus pendões, que os alferes, montados em ginetes possantes, sustinham erguidos na retaguarda de cada tribo. Os raios matutinos faziam alvejar os turbantes e cintilavam nos ferros das lanças que os cavaleiros tinham em punho, e os leves escudos orbiculares, que os compridos saios de malha pareciam tornar inúteis, embaraçados já para o combate, brilhavam com as suas cores vivas e variadas à claridade serena do romper do dia.
Os esquadrões árabes eram a flor do exército de Tárique; mas a catadura selvagem dos africanos seus aliados, neófitos do islamismo, produzia, porventura, mais temor do que o aspecto deles. Torvos e ferozes eram o gesto e os meneios destes homens sem disciplina, cujas paixões se lhes pintavam nos rostos tostados e rugosos, nos olhos banhados de fel e orlados de sangue, e de cuja bruteza e miséria davam testemunho os manguais que lhes serviam de armas (armas terríveis, com que abolavam os elmos mais reforçados) e a hediondez dos seus albornozes pardos, imundos, e despedaçados. Tudo, enfim, neles contrastava com as armas brilhantes, com os ricos trajos e com os vultos majestosos dos cavaleiros do oriente, que, conservando‑se em silêncio e imóveis, pareciam desprezar as tribos berberes de Zeneta, de Masmuda, de Sanhaga, de Quetama e de Huuara, que formavam as alas e que, brandindo as rudes armas, com gritos medonhos se apelidaram para a batalha.
Tal era o espetáculo que oferecia o exército dos muçulmanos. Defronte dele, a hoste goda apresentava os maciços profundos dos seus soldados, cobrindo, como grossa muralha de metal reluzente, a margem esquerda do rio. Rodeado dos mais ilustres guerreiros, Roderico estava no centro das tiufadias formadas pelos espadaúdos soldados da Lusitânia setentrional e da Galécia, em cujas feições se divisava ainda que descendiam dos indomáveis suevos. Unidos com eles sob os pendões reais, estavam os guerreiros veteranos da Narbonense, habituados a cruzar diariamente as espadas com os orgulhosos francos, que estanceavam pelas Gálias, além das fronteiras do império. A ala direita, dividida em dois esquadrões capitaneados pelos dois filhos de Vítiza, Sisebuto e Ebas, continha a flor dos cavaleiros da Cartaginense. Com estes estava o corpo que o metropolitano de Híspalis ajuntara, composto em grande parte dos nobres que haviam deposto a espada desde que Roderico subira ao trono e que a cingiam de novo nesta guerra de independência. A ala esquerda, mais pequena que as outras duas, não parecia por isso menos de temer para os árabes. O duque de Córduba, Teodomiro, era o capitão dessa ala, em que estavam todos os veteranos que o tinham ajudado a repelir as primeiras tentativas dos maometanos e que já conheciam por experiência o modo de pelejar deles. Estes velhos soldados deviam levar ao combate os mancebos que, à voz de Teodomiro, tinham corrido às armas de todos os lados da Bética e em cujos corações o afamado guerreiro soubera despertar o sentimento da glória e do amor da pátria. Com ele militavam, enfim, as relíquias dos soldados tingitanos que não tinham querido associar‑se à traição do conde de Septum.
Como os árabes, os godos tinham no meio de si uma nuvem de peões armados, não menos bárbaros e ferozes que os filhos da Mauritânia. Os montanheses do Hermínio na Lusitânia, aborígines, talvez, daquele país, os quais, na época das invasões germânicas, bem como já na da conquista romana, a custo haviam submetido o colo ao jugo de estranhos e, os vascônios, habitadores selvagens das cordilheiras dos Pireneus, constituíam com os servos um grosso de gente a que hoje chamaríamos a infantaria do exército. As suas armas ofensivas eram a cateia teutônica, espécie de dardo, a funda, a clava ferrada e o arco e a seta. Requeimados pelo sol ardente do estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens rudes combatiam meios nus e desprezavam todas as precauções de guerra. O seu grito de acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque, vencedores, não havia a esperar deles misericórdia. Tais eram os soldados que a Espanha opunha à mourisma que circundava os árabes.
Por algum tempo os dois exércitos conservaram‑se em distância um do outro, como dois antigos gladiadores, observando‑se mutuamente antes de começarem uma luta que para algum deles tinha de ser, forçosamente, a última. A consciência da terribilidade do drama que ia representar‑se penetrou, por fim, até nos corações dos bárbaros de um e de outro campo; as vozearias que sussurravam ao longe foram pouco a pouco esmorecendo, até caírem num silêncio tremendo, só cortado pelo respirar comprimido de tantos homens ou pelo relinchar dos cavalos, que, impacientes, escarvavam a terra.