Extrema carícia...
O que ele, apenas, em realidade sentia naquela hora velada, além de uma esparsa e acerba saudade de tudo, era uma carícia infinita, verdadeiramente inexplicável, invadi-lo todo, difundir-se pelo seu ser como que em músicas e mornos tóxicos luminosos. Era uma dormência vaga, uma leve quebreira e letargia que o mergulhava num sono nebuloso, por entre irisações de brancura, num apaziguamento suave, como se ele estivesse acaso adormecido em cisternas de leite, ouvindo pássaros invisíveis cantar e sons sutilíssimos de harpas docemente, finamente fluindo...
Era um luar espasmódico, em delíquios, que nervosamente o aureolava, que lhe caía em neblinas de lírios mádidos nas origens mais recônditas da alma. Era um óleo paradisíaco que manso e manso o acalmava, o anestesiava. Uma extrema carícia, que fazia dilatarem-se-lhe todas as fibras, percorrendo-lhe pelo organismo, extasiantemente, numa onda de fluidos maravilhosos, de longos langores, de demorados gozos, de supremas quint'essências de sensibilidade.
O sentido palatal, o sentido olfativo e o sentido visual, profundas manifestações da vida molecularizada, ele os sentia agora de uma aguda penetração superorgânica, prodigiosamente penetrados da extrema carícia, dos fenômenos desconhecidos que o invadiam.
Um nimbo azul, ouro, azul, ouro, azul, eterizava-o, como se ele, por abstratas formas estranhas, girasse nas constelações, nas curiosidades prismáticas, cambiantes dos eclipses...
Parecia que áspides delicadas, de uma volúpia ultraceleste, enroscavam-se nele, enlaçavam-lhe o corpo todo, sugando-lhe com insaciável frenesi a força vital das vértebras e dando-lhe uma nova vida ainda não vivida pelos seus nervos, ainda não experimentada pelo seu sangue, ainda não sofrida pelos seus sentidos — vida de outras origens, de outras sensações fugitivas, de outras complexidades múltiplas, de outras nevroses absurdas, de outras estesias cândidas, de outros sóis e de outras noites, de outras recordações e de outros esquecimentos... Uma vida sem os contactos epidérmicos, sem os quebrantos doentes da carne, sem os delírios da matéria — inteiramente livre de todos os grilhões do organismo humano. Vida desmolecularizada nas esferas, plainando no absoluto — luz de harmonia, harmonia de luz evaporada, diluída na grande luz astral, subindo camadas, camadas, mais camadas de luz, mais camadas de harmonia, quint'essenciadamente subindo sempre, subindo, impessoalizando-se e sideralizando-se através dos corpos em gestação, nas partículas mínimas, infinitesimais do Ser, no branco infinito do Sonho...
E aquela extrema carícia, sempre a inocular-lhe nas veias um frio e divino vinho voluptuoso de graça langue, de graça mórbida, de graça sonâmbula. Sempre aquela carícia adormentadora miraculosamente adormentadora.
Sempre aquele ópio fascinante que o sonolentava, pouco a pouco mais intenso, mais profundo... E névoas, névoas de uma deliciosa e pacificadora noite aveludada, sem uma só estrela! o iam envolvendo de forma capciosa e lenta. Aos poucos se extinguia, num final de crespúsculo, a vida chamejativa e original de seus olhos, a ânsia derradeira, o alento último de sua boca já apagada, já muda. No cérebro ia-se-lhe vagamente distendendo, tentacularizando a sensação secreta de um negro, sinistro silêncio... As reminiscências recuavam, sumiam-se nos indefiníveis mistérios... Mesmo, agora, finas mãos glaciais, esqueléticas e invisíveis, de longos e esguios dedos trêmulos, andavam-lhe demoradamente a palpar o corpo todo, de baixo acima, tateando pelo seu rosto, devagar, pousando sobre os seus olhos, sobre as pálpebras, a cerrá-las, a fechá-las com cuidado, devagar na delicadeza e na extrema carícia dos longos e esguios dedos trêmulos... Até que, na convulsa vibração das íntimas cordas sensibilizadas de todo o seu ser, ele sentiu então, compreendeu então irremediavelmente já, do mais horrível modo tenebroso e gelado, pela primeira e única vez! todos esses sutis e esquisitos efeitos letais daquela extrema carícia...