Fabulas (9ª edição)/14

A Assembleia dos Ratos
Um gato de nome Faro-Fino deu de fazer tal destroço na rataria duma casa velha que os sobreviventes, sem
animo de sair das tocas, estavam a ponto de morrer de
fome.
Tornando-se muito sério o caso, resolveram reunir-se em assembleia para o estudo da questão. Aguardaram para isso certa noite em que Faro-Fino andava aos mios pelo telhado, fazendo sonetos á lua.
— Acho, disse um deles, que o meio de nos defendermos de Faro-Fino é lhe atarmos um guizo ao pescoço. Assim que ele se aproxime, o guizo o denuncia e pomo-nos ao fresco a tempo.
Palmas e bravos saudaram a luminosa ideia. O projeto foi aprovado com delirio. Só votou contra um rato casmurro, que pediu a palavra e disse:
— Está tudo muito direito. Mas quem vai amarrar o guizo no pescoço de Faro-Fino?
Silencio geral. Um desculpou-se por não saber dar nó. Outro, porque não era tolo. Todos, porque não tinham coragem. E a assembleia dissolveu-se no meio de geral consternação.
— Que historia essa de gato “fazendo sonetos á lua”? interpelou a menina. A senhora está ficando muito “literaria” vóvó...
Dona Benta riu-se.
— Sim, minha filha. Apesar do meu desamor pela “literatura”, ás vezes faço alguma. Isso aí é uma “imagem literaria”. A Lua é um astro poetico, e quando um gatinho anda miando pelo telhado, um poeta pode dizer que ele está fazendo sonetos á Lua. E’ uma bobagenzinha poetica.
— “Desamor pela literatura”, vóvó? extranhou Pedrinho. Então a senhora desama a literatura?
Dona Benta suspirou.
— Meu filho, ha duas especies de literaturas, uma entre aspas e outra sem aspas. Eu gosto desta e detesto aquela. A literatura sem aspas é a dos grandes livros; e a com aspas é a dos livros que não valem nada. Se eu digo: “Estava uma linda manhã de ceu azul”, estou fazendo literatura sem aspas, da boa. Mas se eu digo: “Estava uma gloriosa manhã de ceu americanamente azul”, eu faço “literatura” da aspada da que merece pau.
— Compreendo, vóvó, disse a menina, e sei dum exemplo ainda melhor. No dia dos anos da Candoca o jornal da vila trouxe uma noticia assim: “Colhe hoje mais uma violeta no jardim da sua preciosa existencia a gentil senhorita Candoca de Moura, eburneo ornamento da sociedade itaoquense”. Isto me parece literatura com dez aspas.
— E é, minha filha. E’ da que pede pau...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

