Fabulas (9ª edição)/30

O Cão e o Lobo
Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão — mas um cão e tanto, gordo, forte, de pêlo fino e lustroso.
Espicaçado pela fome, o lobo teve impetos de atirar-se a ele. A Prudencia, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: — “Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo”.
O lobo aproximou-se do cão com todas as cautelas e disse:
— Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pêlo macio! Vê-se que o amigo se trata...
— E’ verdade! respondeu o cão. Confesso que tenho um tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo...
— Como?
— Basta que abandone esse viver errante, esses habitos selvagens e se civilize, como eu.
— Explique-me lá isso por miudo, pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.
— E’ facil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, restos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome.
— Aceito! respondeu o lobo. Quem não deixará uma vida miseravel como esta por uma de regalos assim?
— Em troca disso, continuou o cão, você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e á sua familia, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.
— Fechado! resolveu o lobo — e emparelhando-se com o cachorro partiu á caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.
— Que diabo é isso que você tem no pescoço?
— E’ a coleira.
— E para que serve?
— Para me prenderem á corrente.
— Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?
— Nem sempre. Passo ás vezes varios dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem á hora certa?
O lobo entreparou, refletiu e disse:
— Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço. Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.
E afundou no mato.
— Fez muito bem! berrou Emilia. Isso de coleira o diabo queira...
Narizinho bateu palmas.
— E não é que ela fez um versinho, vóvó?” Isso de coleira, o diabo queira...” Bonito, hein?...
— Bonito e certo, continuou Emilia. Eu sou como esse lobo. Ninguem me segura. Ninguem me bota coleira. Ninguem me governa. Ninguem me...
— Chega de “mes”, Emilia. Vóvó está com cara de querer falar sobre a liberdade.
— Talvez não seja preciso, minha filha. Vocês sabem tão bem o que é liberdade que nunca me lembro de falar disso.
— Nada mais certo, vóvó! gritou Pedrinho. Este seu sitio é o suco da liberdade; e se eu fosse refazer a natureza, igualava o mundo a isto aqui. Vida boa, vida certa, só no Picapau Amarelo.
— Pois o segredo, meu filho, é um só: liberdade. Aqui não ha coleiras. A grande desgraça do mundo é a coleira. E como ha coleiras espalhadas pelo mundo!

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

