Fabulas (9ª edição)/36

Os dois Burrinhos
Muito lampeiros, dois burrinhos de tropa seguiam trotando pela estrada além. O da frente conduzia bruácas de ouro em pó; e o de trás, simples sacos de farelo. Embora burros da mesma igualha, não queria o primeiro que o segundo lhe caminhasse ao lado.
— Alto lá! dizia ele. Não se emparelhe comigo, que quem carrega ouro não é do mesmo naipe de quem conduz farelo. Guarde cinco passos de distancia e caminhe respeitoso como se fosse um pagem.
O burrinho do farelo submetia-se e lá trotava na traseira, de orelhas murchas, roendo-se de inveja do fidalgo.
De repente...
— Oah! oah!...
São ladrões da montanha que surgem de trás de um toco e agarram os burrinhos pelo cabresto.
Examinam primeiramente a carga do burro humilde e,
— Farelo! exclamam desapontados. O demo o leve! Vejamos se ha coisa de mais valor no da frente.
— Ouro, ouro! gritam, arregalando os olhos. E atiram-se ao saque.
Mas o burrinho resiste. Desfere coices e dispara pelo campo afóra. Os ladrões correm-lhe atrás, cercam-no, e dão-lhe em cima, de pau e pedra. Afinal saqueiam-no.
Terminada a festa, o burrinho do ouro, mais morto que vivo e tão surrado que nem suster-se em pé podia, reclama auxilio do outro, que muito fresco da vida tosava o capim sossegadamente.
— Socorro, amigo! Venha acudir-me, que estou descadeirado...
O burrinho do farelo respondeu zombeteiramente:
— Mas poderei por acaso aproximar-me de Vossa Excelencia?
— Como não? Minha fidalguia estava toda dentro da bruáca e lá se foi nas mãos daqueles patifes. Sem as bruácas de ouro no lombo, sou uma pobre besta igual a você...
— Bem sei. Você é como certos grandes homens do mundo que só valem pelo cargo que ocupam. No fundo, simples bestas de carga, eu, tu, eles...
E ajudou-o a regressar para casa, decorando, para uso proprio, a lição que ardia no lombo do vaidoso.
— Eis aqui, meus filhos, outra fabula bem boa, disse dona Benta. O mundo está cheio de orgulhosos deste naipe...
— Que é naipe? quis saber Narizinho.
— E’ um termo usado para as cartas de jogar. Ha quatro naipes — ouro, espadas, copas e paus.
— Então naipe quer dizer “qualidade”, “tipo”? Do mesmo naipe quer dizer do mesmo tipo?
— Exatamente.
— E igualha, vóvó?
— E’ sinonimo de naipe.
— Então por que a senhora não diz logo “qualidade” em vez de “naipe” e “igualha”?
— Para variar, minha filha. Estou contando estas fabulas em estilo literario, e uma das qualidades do estilo literario é a variedade.
Pedrinho observou que o coronel Teodorico fizera tal qual o burrinho do ouro. Quando se encheu de dinheiro, arrotou grandeza; mas depois que perdeu tudo nos maus negocios, ficou de orelhas murchas e convencido de que era realmente uma perfeita cavalgadura.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

