Fantina/V

Wikisource, a biblioteca livre

Depois de chegados á fazenda do Ribeirão Frederico não estava bem, porque o Zé de Deus queria serviço e elle era da pandega. Demais, as ridicularias do dono da casa o enjoavam. A' hora do jantar via-se na ponta da mesa um prato de bananas, e tres somente, visto ser esse o numero das pessoas que tinham de jantar : o Zé de Deus, Frederico e um feitor. Um dia o portuguez ia brigando, porque Frederico comeu duas das fructas. Foi o diabo. O Zé de Deus alevantou-se e foi á despensa, e como não encontrasse mais bufou, e deixou o Antônio da Chica fazendo cruz na bocca.

O que continha Frederico neste centro de privações era a esperança de realisar um plano gigante. Foi um domingo passear á fazenda de D. Luzia, e lá, emquanto ella mostrava curiosidades ao compadre, Frederico contava os bezerros nascidos, olhava os pastos e tomava o numero dos escravos. Sondava tudo com a profundeza arguta de um moderno observador. Depois de muitas indagações interesseiras e de volta ao outro dia, perguntou ao Zé de Deus :

— Esta familia parece gente arranjada, não, senhor Zé de Deus ?

— Não é só arranjada,seu Frederico ; é rica e continua augmentando os cabedaes.

E nestas cendições chegaram ao Ribeirão.

Notou-se em Frederico desde esse dia uma certa alegria biltre ; ria, cantava e fazia gemer as velhas cordas de um violão. Contava pilherias salobras ao Zé de Deus; — estava nos ares, o frascario.

Sempre que lhe era possivel ia passear ao Ingaseiro, e não perdia missa em que fosse D. Luzia e as quatro mucamas—mulatinhas frescalhonas. Aos poucos foi se introduzindo, e tomou terreno como a gotta d'agua que ao de leve se entranha no barranco até esborsa-lo. Frederico começou de passar semanas inteiras sob os telhados do Ingaseiro, recebendo certo tratamento familiar da parte de D. Luzia.

Quem ia ao quarto delle levar o café da manhã, era uma velha mulata, a Rosa. A's veses eram oito horas quando a rapariga batia na porta e annunciava-lhe o café. Mesmo em ceroulas elle dava entrada á bandeija. Sentado na borda do leito atrapalhado, ia mexendo o assucar, emquanto Rosa parecia escovar o ventre com a quina da bandeija. Lá comsigo o antigo da Silvestre pensava no mau gosto da casa a respeito de serventes; pois havendo na fazenda tanta gente limpa, mandavam-lhe uma mulata maior de quarenta annos, magra, muito alta, com um lenço de chita cheio de ramagens vermelhas atado á cabeça em forma de gorro de marujo ; saia de algodão de S. Catharina, tinto de candoá.

— Então, tia Rosa, como passou esta noite a sra. D. Luzia ?

— Ella passou bem, meu sr.; todos passaram bem, graças a Deus.

— E' o que serve, é o que se quer, tia Rosa.

Mesmo em mangas de camisa abria a janella do quarto, a qual dava para o lado do rio, que depauperado pela secca, rolava a sua corrente com um som gemebundo e apaixonado, como que se recordando das selvas intrincadas que outr'ora pousavam-lhe as margens de gritos selvagens. Hoje suas ribas silenciosas tinham o aspecto desolador de um peito vasio de esperanças.

Frederico saboreando um explendido cigarro do Pomba olhava as janellas que lhe ticavam em linhas paralellas. O ar muito puro e doce de uma manhã azulada fazia-o respirar prasenteiramente, paxorrentamente . No terreiro proximo os curraleiros tiravam leite. Os bezerros quebravam a monotonia daquellas horas com balidos famintos, que troando no ar como os accentos de uma lamentação recalcada, iam morrer no sopé do morro do leste. Em outro terreiro viam-se os bois de carro já presos pelas pontas ; e mais alem, fóra das porteiras, em cima d'uma cerca, um negro de quiçamba ao hombro, gritava os porcos do pasto. E oquelle culé, culé, do porqueiro attrahia a attenção de Frederico que achava poesia nesse rudimento de civilisação. Depois elle passava á varanda da frente. D. Luzia n'outra varanda, logo que o percebia convidava-o para entrar. Alli, ella assentada e elle encostado ao para-peito, iam olhando-se com certos cuidados. Frederico com uma das mãos machucava as folhas de uma catinga de mulata, qne sahia fóra do caixão de pedra. O aroma sensual da planta exhalando, fazia pensar no seu homonimo. D. Luzia fallava de uma e de outra flôr ; e lá em um canto dava-lhe um raminho significativo que elle agradecia dizendo :

— E' sempre com immenso prazer que de vossas mãos recebo qualquer coisa !

Ella sorria a estes dizeres pelintras. Nesta occasião entrava o Juca que convidava Frederico para depois do almoço irem passear á roça. Frederico aceitando o convite começava a foliar em caçadas de caetitús, pacas e antas: Então o Juca ficava verboso, e contando façanhas, dando tiros com a bocca e latindo ao mesmo tempo, dava o typo do verdadeiro e apaixonado amante da venatoria. Seu genio era franco e largo: gostava de passar dias inteiros pelos seios das mattas virgens, aspirando os aromas quentes das resinas que caem das arvores como longas lagrimas de gigantes chorosos. Aquella musica sonora que a matilha entôa quando vae rolando por um capão fóra, punha na alma delle enthusiasmos lendarios. E quando a féra encostada á uma toca rangia os grandes dentes, escumando com as raivas ingentes de um organismo selvagem, era-lhe grato chegar empunhando o largo facão e a espingarda, e desparar o tiro, e ver o animal exangue inda lutar com as prezas dos amestrados cães. Tinha paixão por um cão, como eu ou o leitor tem por uma mulher bonita e espirituosa. Assim como nós vendo um rancho de moças ficamos a analysar os pés, as cinturas, as linhas do rosto, as entumecencias frescas dos seios, elle extasiava-se deante de um cão varado, de fucinho cumprido e intelligente. Sabia a arvore genealogica dos seus amigos de caçada, e dizia que possuia um cão veadeiro, que era da sua estimação especial, e contava que o avô desse galgo fôra tão fiel amigo, que seu senhor uma vez ferindo-se n'uma caçada e morrendo, o cão poz-se de guarda quinze dias. Quando encontraram o cadaver já decomposto pela podridão, o pobre animal não se podia suster nas patas para escaramuçar os corvos famintos. E contava mais, que depois de encontrado e enterrado o cadaver, o cão apaixonou-se e desappareceu de casa, sendo algumas vezes visto a uivar tristemente pelos sítios onde outrora sen senhor fazia lhe estremecer, disparando a arma, cujo estampido internava-se pelo seio da floresta, reboando de quebradas em quebradas.

Este material está em domínio público nos Estados Unidos e demais países que protejam os direitos autorais por cem anos (ou menos) após a morte do autor.