Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/XXI
Um bom pau de vassoura não cubiças ?
Eu quizera dos bodes o mais forte.
Da meta neste andar longe inda vamos.
Em quanto sinto as pernas diligentes,
Este bordão nodoso é me bastante.
Achar mais curta senda que approveita?
Dos valles vaguear no labyrintho,
Estas rochas galgar d'onde se arroja
Em eterna espadana a pura fonte,
Eis o deleite que a jornada adoça.
Já nos alamos ferve a primavera,
No pinheiro invernoso já se sente,
Como não ha de os membros penetrar-me ?
De tal cousa não sinto nem suspeitas !
No corpo tenho o inverno, gelo e neve
Por sobre este caminho desejára.
Como sobe tristonho o mingoante
Disco da lua, com fulgor tardio,
Allumiando mal, que a cada instante
Em penedos e troncos tropeçamos.
Deixa-me aqui chamar um fogo fatuo,
Descubro acolá um que alegre brilha.
Oh lá, amigo, oh lá! posso pedir-te
Que te chegues a nós? De que te serve
Arder assim debalde? Favor faze
De vir allumiar-nos a subida.
Espero conseguir de respeitoso,
Que se constranja minha leve essencia ;
Caprichosa e errante a marcha é nossa.
O que? Pois imitar os homens cuida?
Ande direito em nome do demonio,
Ou sopro-lhe essa vida vacillante.
Sois da casa o Senhor, bem o conheço,
Ao mando vosso de bom grado acudo;
Porém notae, de mil feitiços cheia
A montanha hoje está; se um fogo fatuo
Quereis por guia ter, muito exigentes
Vos não deveis mostrar, nem mui severos.
Parece que penetramos
Dos encantos nas regiões,
Bem nos guia que te honras,
Porque ávante prosigamos
Nestas vastas soidões.
Vejo arvore apoz d'arvore
Velocissimas passando,
Curvam-se altos alcantis;
Roncam e vão assoprando
As rochas pelo nariz.
Pelos seixos, pela relva,
Vão regatos sussurrando,
Ouço murmurios na selva
Ou canções? São melodias,
Vozes de passados dias,
Doce amor, ardente esp'rar,
Que como legenda antiga,
Vem o echo recordar.
Uhu, schuhu gritam perto
Gaio, mocho e noitibó.
Pois tudo 'stará desperto,
Não dormirá nem um só?
Barrigudas salamandras
São nas moitas a mexer?
E as raizes quaes cobras
No areal a correr,
Extranhos laços formando,
Fis nos prendem nos aterram;
De troncos solidos lançam
Mãos, de polypo que afferram
O viandante. E os torpes ratos
Variegados, numerosos,
Pelo musgo da charneca
Vão correndo pressurosos.
E lá fulgem vagalumes,
Voando em densos cardumes
Ao cortejo que endoudece.
Mas dize tu se paramos
Ou inda mais longe vamos?
Tudo volver-se parece!
Os rochedos e as arvores,
Feias visagens fazendo,
Os nocturnos fogos fatuos
Que vão inchando e crescendo.
Eis aqui no centro um pincaro,
Segura bem o meu manto.
Qual brilha Mammon no monte
É de ver-se com espanto.
Que triste extranha luz de aurora pallida,
Pelo fundo dos valles scintillando,
Té as fauces immensas dos abysmos,
Estende os frouxos raios. D'aqui sobe
Um espesso vapor, acolá correm
Exhalações, miasmas insalubres ;
Entre denso negrume, alli refulge
Um clarão, que depois em tenues fios
S'escoa, ou qual nascente salta em jorro;
Aqui serpeia por espaço longo,
No fundo deste valle em veias cento,
Acolá n'um recanto comprimido
Isola-se de subito. Mais perto
Saltam faiscas como arêa de ouro.
E olha, lá se acende a rocha à prumo,
Em toda a sua altura, grandiosa.
Não illumina com magnificencia,
Mammon para tal festa o seu palacio?
De ditoso te preza pois que o viste!
Já pressinto os convivas appressados.
Como o vento raivoso estruge os ares,
E com golpes a nuca me fustiga!
Se ás fendas da rocha não te afferras,
Desse abysmo no fundo vae lançar-te.
Engrossa a noite escura um nevoeiro;
Ouve estalar os bosques. Assustadas
As c'rujas fogem. Lá se fendem, ouve,
Dos sempre verdes paços as columnas ;
Gemer e rebentar de longas hastes,
De forte tronco sonoroso arranco,
Estalar de raizes qué se racham !...
Em temerosa queda confundidos
Baqueando estouram troncos, e os ventos,
Pelos corgãos cobertos de destroços,
Assobiam e uivam. Nas alturas,
Ao longe, ao perto, não escutas vozes?
Oh sim, ao longo da montanha inteira,
Um magico cantar sôa estridente.
Correm ao Brocken as bruxas,
Louro é o colmo e verdejante
A seara. Lá se junta
O tropel e Uriante
No cimo sentado está,
Pedras, bosques passam. Fede
Bode e bruxa ...... dá.
A velha Baubo sosinha,
Numa porca vem montada.
Honra seja a quem compete,
Baubo á frente a commandar;
Porco forte, a mãe em cima,
Atraz bruxas a marchar.
Porque caminho vens?
Por Ilsenstein,
Da coruja espreitar eu fui o ninho;
Fez uns olhos tamanhos!
Vai-te ao demo,
Porque cavalgas tu com tanta pressa!
Esfolou-me o corpo todo,
Olha as fridas, deste modo!
O caminho é largo, é largo e comprido,
Que tumulto é este tão descomedido ?
Espeta o forcado, arranha a vassoura,
Abafa a creança e a mãe estoura.
Como o caracol a casa arrastando,
Mulheres á frente nós vamos andando.
Do demo á morada se alguem ir quizer,
Ávante uma milha lhe passa a mulher.
A cousa não vemos nós dessa maneira ;
A mulher mil passos terá de dianteira,
Em vão porém corre, debalde se cança,
Com um pulo sómente o homem a alcança.
Lá do lago das rochas, venham, venham.
Bem quizeramos nós subir ao alto ;
Lavamo-nos, e brancos 'stamos todos,
Mas estereis tambem p'ra todo o sempre!
Cae o vento, foge a estrella,
Esconde a face o luar;
Sussurrando o coro magico,
Mil faiscas faz saltar.
Alto lá, alto lá.
Quem dessa fenda
De rochedo nos chama?
Oh, levae-me!
Levae-me, que ha tres seculos que subo
E não attinjo o cimo. Á minha egualha
Como iria juntar-me de bom grado!
Leva a vassoura, o bordão,
Leva o forcado e o bode;
Quem hoje.se não eleva,
Perdido julgar-se póde.
Atraz de vós já corro ha tanto tempo;
Como vão longe os mais! Nunca descanso
Em casa, mas aqui nada consigo.
O unguento á bruxa dá coragem
E um trapo qualquer é vela bôa,
Um balde, um gamelão bellos navios;
Quem hoje não voar, nunca mais vôa.
Quando ao cimo nós chegarmos,
No chão vos ide sentando;
E com o tropel do bruxêdo,
Toda a charneca inundando.
(Sentam-se.)
Apertam-se e empurram-se, escorregam,
Sibilam, rodam, puxam-se e sussurram,
Faiscam, luzem, ardem, fedem, queimam!
'Stá no seu elemento a bruxaria.
Mas segura-te a mim que nos separam.
Onde estás tu?
Aqui.
Pois já tão longe!
Forçoso é que use dos direitos
De um dono de casa. Logar, eia!
Deem logar ao senhor Voland que chega.
Logar, boa canalha. Doutor, anda,
Pega-te a mim e agora de um só pulo
Escapemo-nos desta turbamulta,
Que até para mim demais é doida.
Acolá 'stá luzindo alguma cousa
Com extranho fulgir, pra aquellas moitas
Attrahido me sinto. Anda depressa,
Vamo-nos lá metter.
Da contradicta
O espirito és! Pois bem, conduze-me.
De mui discreto alvitre me pareces: —
Em noite de Walpurgis vir ao Brocken
E depois de lá estar, fugir das turbas!
Olha p'ra alli, que variadas chammas!
Reunido um club alevre. Entre pequenos,
Ninguem se acha isolado.
Mas prefiro
Áquelle monte ir. Fulgor de chammas
E turbilhões de fumo já descubro.
Impetuosa a turba corre ao démo;
Mais d'um enigma alli solver-se deve!
Tambem mais d'um enigma alli s'enreda.
"Deixa do grande mundo o vão sussurro,
Vamos aqui gosar muito em socego.
É usança de ha muito consentida,
Do gran'cire'lo fazer muitos pequenos.
Bruxasinhas lá vejo todas nuas,
E velhas que prudentes se vestiram.
Peço por quanto ha que amavel sejas,
O incommodo é leve e o gosto grande.
Parece que ouço bulha de instrumentos;
Algazarra maldicta! E ha de a gente
Acostumar-se a isto! Vem comigo,
Não ha outro remedio. Entrando, levo-te
E um novo favor torno a fazer-te,
Que dizes, meu amigo? É largo o espaço.
Estende ao longe o olhar,— fim não descobres,
Ardem fogueiras mil em longas filas,
Uns dansam, outros palram, comem, amam;
Onde melhor se encontra, has de dizer-me.
E para introduzir-nos qual te mostras,
Como demonio ou como feiticeiro?
É verdade que uso andar incognito,
Mas em dias de gala põe-se a farda.
Nenhuma jarreteira aqui m'illustra,
Mas o pé de cavallo é respeitado.
Não vês aquella lesma? vem chegando
De rojo; com a face que tactea
Já pressentiu em mim alguma cousa.
Ainda que quizesse, não lograva
O disfarçar-me aqui. Vem pois comigo,
De fogueira em fogueira seguiremos,
Eu serei o mercurio, tu o amante.
Velhotes, que
fazeis aqui de parte?
Se no meio da festa e das folias
Que faz a mocidade vos topasse,
Gabára-vos de certo. É já bastante
O tempo que se passa a sós em casa.
Quem ainda em nações póde fiar-se?
E por mais que por ellas tenha feito;
Sempre rendem os povos, quaes mulheres,
De preferencia á mocidade preito.
Estes tempos de agora, da justiça
Muito se affastam; louvo o tempo antigo.
A edade d'ouro foi de certo a época,
Em que todo o poder tinha comigo.
Na verdade não fomos nenhuns parvos,
E soubemos trepar de muito modo;
Porém, quando queriamos socego,
Parece confundir-se o mundo todo!
Quem póde agora lêr um só escripto
De moderado, douto conteúdo?
Pelo que toca á chara mocidade,
Tem-se feito insolente mais que tudo.
Para o dia novissimo maduros
Os homens me parecem, pois que subo
Pela vez derradeira esta montanha;
E como o meu tonel dá vinho turvo,
O mundo todo acho em decadencia.
Não vos vades assim, oh meus senhores,
Não desprezeis occasião tão bella !
Estas minhas fazendas vêde attentos.
Entre ellas achaes mui varias cousas,
E todavia nada que na terra
Tenha rival ou seja equiparado,
Que não haja uma vez funesto damno
Aos homens e ao mundo produzido!
Punhal algum que sangue não vertesse,
Nem calix que peçonha devorante
A membros sãos não tenha propinado;
Joias que vedes, tem comprado honras
De formosas donzellas, não ha espada
Que, violando a fé, se não cravasse
Nas costas do contrario, traiçoeira.
Isso é não conhecer os tempos, tia!
O passado é passado. Fornecei-vos
De cousas novas, essas chamam gente.
Oxalá que o tino me não fuja,
Mas parece-me ser isto uma feira.
O turbilhão inteiro ao cimo tende
E julgas impellir, quando t'impellem.
Quem é aquillo ?
Considera-a attento;
Lilith é ella.
Quem ?
De Adão a esposa
Primeira. Teme os seus cabellos d'ouro,
Esse ornato com que singular brilha;
Quando nelles enreda algum mancebo,
Da formosa prisão não o solta facil.
Além 'stam duas damas, moça e velha;
Teem dansado devéras esta noite.
Para ellas não ha descanso hoje;
Nova dansa começa, anda dansemos.
Sonhando vi uma arvore,
Dois lindos pomos trazia;
Em apetite abrazado,
Para colhel-os subi-a.
É já desde o paraizo
Que os pomos cubiçaes,
Toda de gosto me encho
Por ter no meu jardim taes.
Tive um sonho monstruoso ;
Arvore immensa fendida,
Um....... nella aberto
E gostei, por minha vida.
Ao senhor com pé de besta,
Minha melhor saudação;
Boa ... tenha prompta
Se não teme o........
A que vos attreveis, maldita gente?
Não vos foi demonstrado ha muito tempo,
Que em pés ordinarios não descansam
Espiritos ? Dansaes como nós outros?
Que vem este fazer ao nosso baile?
Ora, elle apparece em toda a parte!
“Dos outros ha de criticar a dansa;
Se cada passo apreciar não pode,
É como se tal passo não houvesse.
Sobre tudo o irrita irmos ávante.
Se volver-vos em circulo quizesseis,
Como em sua atafona fazer usa,
Talvez o approvasse ; maiormento
Em lhe fazendo grave reverencia!
E ainda ahi estaes! Cousa inaudita!.
Desappar'cel, que somos illustrados.
Regras não guarda a sucia endiabrada;
Somos tão atilados e comtudo
Ousam phantasmas amostrar-se em Tegel
Estas vans illusões tanto ha que varro,
E perco o meu trabalho; é inaudito!
Ora deixae de estar a apoquentar-nos.
Na cara vol-o digo a vós, phantasmas,
Despotismo de espiritos não soffro,
Que nunca o meu capaz foi de exercel-o.
(Continua a dansa.)
Já conheço que hoje nada faço:
Mas sempre umas viagens levar quero,
E antes de morrer, affago a esp'rança
De vir a dominar demo e poetas.
Eil-o que vai sentar-se numa poça,
É maneira que tem de aliviar-se,
E quando no trazeiro se lhe fartam
As sanguesugas, cura-se de espiritos
E de espirito.?
(A Fausto que saiu da dansa.)
E tu assim deixaste
A linda moça, que tão bellas tróvas
Te cantava dansando ?
Um rato ruivo,
Da boca lhe saltou quando dansava.
Ora fizeste bem! Não se repara!
Já bastava não ser o rato pardo.
Quem nas horas de amor de tal se-occupa ?
E mais eu vi,—
O que?
Mephisto, olha,
Vês uma linda, pallida creança
Que só, de parte está? Tão lentamente
Anda, como de algemas entravada ;
Que semelhava á chara Margarida
Confesso que pensei.
Deixa lá isso,
Que a ninguem faz bem. É uma phantasma,
Um idolo sem vida. É o encontral-a'
Aziago e ruim; co'o olhar gelado
O sangue paralysa, em pedra torna:
De certo que já ouviste da Medusa ?
Os olhos são, bem vejo, de defunta
Que mão amiga não cerrou. Aquelle,
O seio é da chara Margarida,
Aquelle o corpo, que gosei mimoso.
Pois é esse o encanto, pobre tonto,
Que tão facil t'illudes. Affigura-se
A todos, nella ver da amante a imagem.
Que celeste delicia, que tormento!
Daquelle olhar não posso desprender-me.
Que maravilha que o formoso collo,
Roxo cordão adorne tão estreito,
Qual gume de cutello.
Certamente,
Tambem o vejo eu. Bem pode ella
A cabeça trazer de sob o braço,
Que lh'a cortou Perseu. Com que então sempre
Esse amorda illusão? Deste outeirinho
Subamos té o tope. É tão alegre
Isto aqui como o Prater. Se não érro,
Um theatro até vejo. O que vai dar-se?
Nova peça começa já de prompto;
A ultima de septe, que outras tantas *.
É de uso aqui dar-se. Um dilettante
As escreveu e outros representam-nas.
Perdão, senhores, se ouso assim deixar-vos,
O meu deleite é levantar o panno.
De vos vir encontrar aqui no Blocksberg,
Mui satisfeito estou, pois pertenceis-lhe.