Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro IV
O anterior camarim de FAUSTO
Cena I
[editar]FAUSTO, entrando pela porta do fundo, que deixa aberta, segudo de um grande cão d'água preto.
FAUSTO
Lá deixei planície, prados,
tristemente sepultados
na mudez da noite escura.
A alma pura sobre a impura
já cá dentro predomina
com sutis pressentimentos;
calca a essência alta e divina
as terrenas sensações.
Oh! que insólitos momentos!
Redimi-me das paixões,
que no âmago consomem
o melhor dos meus dois eus.
Só respiro afecto ao homem;
só respiro afecto a Deus.
(Voltando-se para o cão, que anda desassossegado)
Pára aí, cão! Já basta de corridas.
Que fariscas à porta? Ali tens lume;
vai-te deitar ao pé! Toma, cachorro,
a almofada melhor que tenho em casa.
(Atira-lhe para o pé do fogão a almofada de cima da cadeira em que se costuma sentar)
Já que lá no caminho da montanha
a correr e pular nos divertiste,
hei-de tratar-te bem, se o mereceres.
(Senta-se à mesa, e espevita o candeeiro)
Aqui sim, no meu cantinho
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro.
N’esta mansa claridade
reamanhece o coração!
Dentro, há paz, serenidade;
raia luz, fala a razão;
refloresce a esp’rança amante;
e um saudoso instinto envida
em nosso ânimo anelante
o grão Ser, o Autor da vida.
(Uiva o cão)
Não me uives, cão! Tapa essa boca, bruto!
Belo acompanhamento às harmonias
que vão dentro de mim! Costume é de homens
zombar do que transcende a sua esfera;
belo e bom muita vez os incomodam,
por isso rosnam; queres tu, cachorro,
fazer-te igual juiz? rosnar como eles?
(Pausa)
Por demais é cansar-me. O júbilo celeste
foi-se, não volta mais. É força de desgraça,
oh minha alma sedenta, achar no ermo agreste
abundante matriz, entrar a encher a taça,
e cair, sem ter morto o ardor com que vieste!
Comigo é sempre assim. Paciência! O que inda val
como compensação, é esta ânsia inata
que nos ala o querer, do ínfimo escuro val,
às altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação co’o sobrenatural.
Salve, ó revelação! Teu mais brilhante assento
é o Evangelho Santo, o Novo Testamento.
Cobiço perscrutar o texto primitivo,
e co’a maior lealdade, e o escrúpulo mais vivo,
transplantar, se puder, à locução materna,
à minha língua amada, a augusta frase eterna.
(Abre a Bíblia no Evangelho de S. João)
No princípio era o Verbo. É esta a letra expressa;
aqui está... No sentido é que a razão tropeça.
Como hei-de progredir? há ’í quem tal me aclare?
O Verbo!! Mas o Verbo é coisa inacessível.
Se apurar a razão, talvez se me depare
para o lugar de Verbo um termo inteligível...
Ponho isto: No princípio era o Senso... Cautela
nessa primeira linha; às vezes se atropela
a verdade e a razão co’a rapidez da pena;
pois o Senso faz tudo, e tudo cria e ordena?...
É melhor No princípio era a Potência... Nada!
Contra isto que pus interna voz me brada.
(Sempre a almejar por luz, e sempre escuridão!)
... Agora é que atinei: No princípio era a acção.
(Voltando-se para o cão)
Entendamo-nos, cão. Se te agrada o meu quarto,
não me tornes a uivar, que já ’stou mais que farto.
Não tolero ao meu lado um atrapalhador.
Desempata: - eu ou tu! - Dei-te abrigo e calor;
sou o teu hospedeiro, e da hospitalidade
não quero as leis quebrar. Tens plena liberdade:
se te agrada sair, bem vês a porta aberta.
(Vai-se o cão transformando, do modo que a fala indica)
Mas... que é isto que observo? Assim se desconcerta
das coisas o teor, o ser da natureza!
Sonho, ou velo?... O meu cão não tinha esta grandeza,
nem este corpanzil. E o súbito denodo
com que se ergueu de um pulo! Isto de todo em todo
não é já cão; os cães não tem esta figura.
Então, que génio mau, que horrenda diabrura
hospedei eu em casa? Ui! como vai crescendo!
Que hipopótamo é este! Horrendo vulto, horrendo!
Vibra chamas do olhar! ameaça co’a dentuça!...
Teu diabólico ser debalde se rebuça;
apanhei-te. Ora espera; e tu verás se o signo
do grande Salomão contra o poder maligno
de vós, relé do inferno, essências vis e imundas,
te não vai atirar de súbito às profundas.
ESPÍRITOS MAUS (no corredor)
Um de nós lá caiu na esparrela.
Companheiros, cautela, cautela,
não entreis em tal casa. Podemos
cá de fora observar; observemos.
E era um lince do inferno, o coitado
que lá jaz na armadilha atrusado
a tremer como um triste raposo.
Sus, escravos do perro tinhoso,
vogai para cá!
vogai para lá!
Acima e abaixo!
Com isso faredes
que o sócio oprimido
se livre do empacho
das magicas redes.
À obra! Sentido!
Sois-lhes todos devedores
de favores.
De os pagar é vinda a hora.
Ponde-o fora
da prisão que o desalenta.
Leva! Gira! Aferventa! Aferventa!
FAUSTO (abrindo um vade-mecum de magia)
Atiro-me ao bruto; primeiro, co’a fórmula
dos quatro chamada:
«Arda a Salamandra! Retorça-se a Ondina!
«Esvaia-se o Silfo! Da terra na mina
vá Gnomo lidar!»
(Quem não soubesse a fundo os elementos,
o seu poder, as suas qualidades,
por nenhum modo punha leis a génios.)
(Torna-se ao livro)
«Tu, se és Salamandra, salta flamejante!
«Se Ondina, difunde-te em vaga espumante!
«Se és Silfo, em meteoro te exala brilhante!
«Íncubo, Íncubo! acode! Protege a vivenda!
«Sai do chão, sai! Acabe tão longa contenda!»
Nenhum dos quatro é nele; está bem visto.
Nem se ergue, nem se move; olha-me fito,
imóvel que nem órbitas de crânio.
Inda lhe não fiz mossa. Em vão persiste;
a est’outra imprecação não me resiste:
(Voltando ao livro)
És tu do inferno prófugo,
bruto animal?
Então, encara, pícaro,
este sinal
que espanta as negras cáfilas
do antro infernal!
(Continua o bicho a inchar, esconde-se atrás do fogão; cresce até o tamanho de elefante; vai-se ainda desenvolvendo cada vez mais.)
Oh! que balofo inchar! que pelos hirtos!
Podes tu ler, maldito, o ente incriado,
o inefável, o que enche a imensidade,
o que expirou na cruz alanceado,
e redimiu da culpa a humanidade?
Olha aquilo! Emprazado atrás do lume,
cresce, intufa-se; é vulto de elefante.
Mais? enche tudo; em breves audiências,
vêl-o-eis desfeito em névoa.
(Ao bicho)
Não me esbarres
pela abóbada! Aqui! Aqui! Lançar-te
já já aos pés do Mestre! Toma tento,
que eu não ameaço em vão; bem o tens visto.
Tisno-te ao fogo sacro; não te exponhas
ao corisco trisulco! não provoques
das artes em que excedo a mais terrível!
Cena II
[editar]FAUSTO, e MEFISTÓFELES, que, dissipada a névoa, sai de trás do fogão, em trajo de estudante em jornada
MEFISTÓFELES
Que berreiro, Senhor! às suas ordens.
FAUSTO
O recheio do cão cifrou-se nisto!
Um viandante escolar! faz rir, faz.
MEFISTÓFELES
Salve,
luzeiro do saber! Fez-me, confesso,
suar a bom suar.
FAUSTO
Como te chamas?
MEFISTÓFELES
Ridícula pergunta para um sábio
que timbra tanto em desprezar palavras,
não pode ver sem tédio as aparências,
e só aspira ao âmago das coisas.
FAUSTO
Dos entes como tu saber-se o nome
(Blasfemo, Tentador, Pai da Mentira)
é para logo conhecer-lhe as manhas.
Quem és pois?
MEFISTÓFELES
Quem eu sou? Parte da força,
que, empenhada no mal, o bem promove.
FAUSTO
Não te percebo o enigma.
MEFISTÓFELES
Sou o espírito
que estorva sempre. E com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;
portanto era melhor não ter nascido.
Meu elemento é o que chamais vós outros
Destruição, Pecado, o Mal, em suma.
FAUSTO
Dizes que és parte, e eu vejo-te completo!
MEFISTÓFELES
Falo verdade chã. Retro bazófias!
Cada homem (microcosmo de loucuras)
imagina-se um todo; e eu sou, confesso,
parte da parte que era tudo in ovo;
parte da treva, mãe da luz, sim dessa
vaidosa luz, que à sua mãe pleiteia
foros de universal; por mais que o tente
não lhos há-de usurpar; quem lhe deu posses
para mais que abraçar as superfícies?
penetra num só corpo? (e inumeráveis
são eles) só os tinge e aformosenta;
e o mais pequeno em seu correr a embarga.
Deixál-a; tenho fé que cedo acabe;
se perece a matéria, está perdida.
FAUSTO
Já sei o que és, e qual teu nobre empenho.
Como não podes destruir o todo,
pões-te a tomar desforra em ninharias.
MEFISTÓFELES
Consigo pouco, é certo. O oposto ao Nada,
o Que quer que é que existe, o mundo bronco,
por mais que em vulnerá-lo me desvele,
fica-me sempre ileso. Em vão lhe arrojo
ondas, procelas, fogos, terremotos;
ao cabo, terra e mar ficam serenos.
Pois a relé nojosa, a corja humana!
Não há meter-lhe dente. Ando, há que tempos,
a matar neles, sem parar na faina,
e a espécie a medrar sempre em sangue, em forças.
É para endoidecer! De ar, água, e terra,
do quente e frio, do húmido e do seco
mil germes brotam... Se não pilho o fogo,
ficava-me sem nada.
FAUSTO
E opões à força
eterno-activa, criadora, amante.
pobre demónio, o punho teu fechado!
Busca outro ofício, aborto vil de caos.
MEFISTÓFELES
Pensarei nisso, e falaremos. Posso
ir-me embora; pois não?
FAUSTO
Pedes-me vénia!
Não te percebo. És livre. Mas, agora
que já sei quem tu és, outorga franca
para me vires ver, quando quiseres.
Aí tens a janela, aqui a porta,
e além a chaminé, que se não fecha.
MEFISTÓFELES
Bom; mas para sair, força é dizê-lo,
acho um certo empecilho: e é ver pintado
no limiar um pé de feiticeira.
FAUSTO
Tens medo ao pentagrama! Essa é bonita!
E quando entraste, diabão do inferno,
emandingou-te acaso? Um génio desses
deixa-se assim lograr?
MEFISTÓFELES
Repare o sábio!
Aquele pentagrama está mal feito.
O ângulo que aponta para a rua
não fechou bem.
FAUSTO
Ditoso acaso. Temos
portanto que estás preso, e eu sou teu dono.
Foi o tal bico-aberto uma fortuna.
MEFISTÓFELES
O cão vinha a correr; não viu a coisa.
Agora é que reparo no busílis.
Não há sair; não há.
FAUSTO
Pela janela.
MEFISTÓFELES
É uma lei de espectros e demónios:
sai-se por onde se entra; à entrada livres,
forçados no sair.
FAUSTO
Regulamentos
até no inferno! Bravo! Então convosco
também, senhores meus, pode haver pactos?
MEFISTÓFELES
Mau é nós prometermos; que faltar-vos
nenhum de nós vos falta; é pagamento
rés-vés; nem meio chavo se lhe sisa.
... Essas explicações são contos largos;
ficam para outra vez. Agora, peço
co’a maior ânsia, deixe-me ir embora!
FAUSTO
Mais um instante: lê-me a buena-dicha!
MEFISTÓFELES
Basta de me emprazar. Solte-me e breve
há-de tornar-me a ver então prometo
satisfazer-lhe em cheio as veleidades.
FAUSTO
Não te armei laço algum. Se estás na rede,
foi por teu alvedrio. Asno me julgas
que havendo às mãos o demo, o lance a monte,
e que fique boca aberta a ver se torna?
MEFISTÓFELES
Mui bem. Se leva em gosto a convivência,
também eu; já não parto. O que lhe ponho
por condição, é que há-de permitir-me
entretê-lo tão só co’as minhas artes.
É nobre passatempo,
FAUSTO
Assino, pondo
por condição também, que essas tais artes
me possam divertir.
MEFISTÓFELES
Dou-lhe a certeza,
caro amigo e senhor. Vai regalar-se
numa só hora mais que em todo um ano
do seu viver monótono. Os cantares
que se hão-de ouvir a espíritos mimosos,
e as imagens formosas, sedutoras,
que esse coro gentil virá mostrando,
será tudo real, que não prestígios
de nenhuma arte oculta enganadora.
Haverá para o olfacto almas delícias.
Depois para o paladar tão finos gostos
como nunca os provou. Depois volúpias
até às fibras íntimas. À obra!
Tudo é prestes.
Espíritos potentes!
Podeis principiar. Eis-nos presentes.
Cena III
[editar]OS MESMOS. Sai do corredor um bando de ESPÍRITOS, cantando
ESPÍRITOS
(Ao som dos seguintes cânticos, Fausto, que se havia sentado
na sua cadeira, vai a pouco e pouco descaindo no sono)
Some-te, abóbada
torva e sombria!
Éter cerúleo,
verte a alegria
neste lugar!
As nuvens sumam-se!
Brilhar, cardumes
dos sois noctívagos!
Suaves lumes,
brilhar! brilhar!
Lindezas célicas,
cercai este homem
com danças lânguidas
que todo o tomem
de almo langor.
Co’as vossas túnicas,
lindezas puras,
velai no tácito
das espessuras,
ninhos de amor,
onde, abraçando-se
amantes pares,
mil votos férvidos
mandem aos ares
de amar sem fim.
Como prolíficas
da flor vem flores,
do amor delícias,
– destas amores
brotem assim.
Sus, cachos túrgidos!
Presto aos lagares,
espúmeas púrpuras,
que entre dançares
à luz brotais!
Correi quais Ródanos,
fulgi quais lagos,
espelhos trémulos,
dos cumes vagos,
nus de vinhais!
E vós, ó pássaros,
que irrequietos
sempre andais sôfregos
de haurir afectos,
luz e prazer;
eia, aos céus rútilos
das madrugadas!
Voai às ínsulas
afortunadas,
onde há viver,
torrões fluctívagos
respira em cânticos
de noite e dia,
e onde sem véus
o amor e o júbilo
de mil dançantes,
de horas suavíssimas
fazendo instantes,
relembram céus.
Vão, espairecem-se
pelos oiteiros,
por vales flóridos,
ou nos ribeiros
retoiçam nus.
Vários e unânimes
cada qual mira
a estrela próspera
por quem suspira,
e que o seduz.
MEFISTÓFELES
Adormeceu. Bem haja a criançada aérea,
que assim mo acalentou!
(Apontando para Fausto)
Inda homem não és, vil filho da matéria,
para reteres preso um génio como eu sou.
(Dirige-se aos Espíritos)
De visões mágicas
povoai-lhe os sonhos,
fáceis, risonhos
filhos do ar!
Adormecestes-mo.
Dure profundo
o seu jucundo
feliz sonhar.
(Saem os Espíritos.)
Cena IV
[editar]MEFISTÓFELES, FAUSTO adormecido, depois uma ratazana
MEFISTÓFELES
Agora toca a ver se desfazemos
o encalhe da soleira. Quem nos dera
dente de rato aqui!... Pedi-lo e tê-lo,
tudo foi um; já lhe oiço a roedura;
não tarda uma unha negra. Esconjuremo-lo!
«O Senhor dos ratos, murganhos e moscas,
«das rãs, percevejos e mais sevandijas,
«ordena que roas as figuras toscas,
«que ele unta de azeite nestas pedras rijas.
(Sai do buraco uma ratazana, e chega-se à
soleira da porta do fundo)
Saiu do buraco; já chega à soleira.
Brio, ratazana, que a obra é só tua!
Rapa do triângulo a ponta cimeira
do degrau na aresta que dá para a rua!
Ali é que o pé do diabo esbarrou.
Mais dois raspõesinhos, e acabas, meu filho.
... Zan... zan...Belamente. Mil graças te dou.
Podes-te ir embora; desfez-se o empecilho.
(Volta o rato para o buraco)
Sonha, Fausto, sonha, que eu salto a soleira.
Fica-te, meu sábio, e até à primeira.
Cena V
[editar]FAUSTO, acordando
Olé, já outra! pois não seria
tudo isto, e os génios que eu via e ouvia,
mais do que abortos da fantasia?
e o que eu supunha demónio astuto
não passaria de um mero bruto?