Flor de Sangue/I/II

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Graças à amabilidade do ajudante de guarda-mor da Alfândega, o prestativo e florescente Lírio, conseguira Fernando a excelente lancha daquela repartição para ir a bordo do Orénoque buscar o seu amigo.

Iam nela também, e para o mesmo fim, a irmã e o cunhado do médico, com um filho, e o seu amigo o farmacêutico Honorato Campos.

Àquela hora o sol, alto e largo, já bastante quente, punha uma palheta de platina fluida em cada onda, e como que estendia por sobre o mar, de tão alto, a sua cauda imensa de luz ofuscante.

Junto ao cais apertavam-se aos encontrões inúmeras embarcações miúdas com os catraeiros em pé, gesticulando para as pessoas que estavam no cais e fazendo um alarido infernal.

— É pro francês, patrão? Pronto.

— Pro alamáo, patrãozinho? É comigo.

— Ó senhor! Eu faço mais barato! Levo-o e mais a senhora a bordo do nacional por cinco mal-réis. É a Fama de Netuno!

Passageiros desembarcavam de lanchas a vapor e de botes, carregados de malas e chapeleiras, numa confusão de tipos das raças as mais diversas, com um ar atordoado, olhando e ouvindo sem falar.

A lancha, impulsionada pela máquina vigorosa, cortava como uma flecha a face do mar ofegante, verde-escuro, e em breve, aproando ao Poço, deixava para trás, num afastamento rápido, o cais do Mineiros, a Alfândega, o arsenal, as docas.

Dona Sinhá agarrara-se fortemente ao braço do marido, muito medrosa, queixando-se das guinadas da lancha, arrependida de ter vindo.

— A senhora enjoa, dona Sinhá? - perguntou a irmã de Paulino.

— Muito, dona Benga; é uma desgraça.

— Não pode olhar para um navio, mesmo pintado, sem deitar carga ao mar! - disse, rindo, Fernando.

Todos riram, principalmente a irmã de Paulino, que não perdia ensejo de mostrar os seus lindos dentes. Era uma mulher baixinha, muito gorda, mas com uma certa elegância, apesar disso, por ser uma gordura proporcional; belas cores, olhos pequenos, mas negros e inquietos; um ar de franqueza, atividade e bondade, que logo cativava.

O marido, Domingos Castrioto, chefe de seção na Secretaria de Agricultura, era um desses tipos incolores, apagados, metódicos, que o hábito longo e constante da burocracia acalcanha e descaracteriza - uma espécie de oficio em branco, no qual a esposa escrevia à vontade. Tinham uma escadinha de filhos, a quem ela dedicava toda a sua existência, com um afeto e uma abnegação comoventes.

O Dano, que os acompanhava, era o terceiro - um bonito petiz de oito anos, inquieto, espigado, tagarela, afilhado do tio e que, por isso, ia também a bordo recebê-lo. Desde que a embarcação largara, arremangou ele o braço direito, meteu-o na água e deliciava-se com a frescura e o movimento dela.

Dali a momentos Corina tinha vômitos. O farmacêutico Honorato, muito gentil por sistema com as senhoras, para obter a freguesia das famílias, e prevenido sempre para estes casos, sacou do bolso um vidrinho, contendo um líquido branco, que deu a cheirar à doente, a qual melhorou de pronto, o que o fez explicar:

— Também é um preparado meu - o elixir milagroso.

— Milagroso, em verdade; hei de comprar-lhe alguns vidrinhos - disse Fernando, como agradecimento.

— Que navio é aquele, papai? - gritou o Dano, tirando de repente o braço da água e respingando o vestido de Corina; o que fez a mãe exclamar:

— Que modos são esses, Dadá? Estás molhando a senhora.

— Hein, papai? - insistiu o menino, sem atender à reprimenda.

— É um encouraçado, o Aquidabã, meu filho - fez a voz fanhosa e arrastada do pai.

— Lá está o Orénoque! - gritou Fernando. - Belo paquete!

Mais algumas braças e já se podiam distinguir as pessoas que estavam no tombadilho. Fernando pôs-se em pé, fazendo viseira com a mão para ver melhor.

— Já o distingues? - perguntou Corina.

— Ainda não, espera; agora. Lá está ele, encostado à amurada; olha, acolá, junto do último escaler suspenso, de roupa cinzenta e chapéu preto mole. Vês?

E entrou a acenar vivamente com o lenço. O vulto, cada vez mais distinto, reconhecendo-os também, correspondia às saudações. Dona Benga, que, ao distinguir o irmão, pusera-se a rir, a rir, chorava agora em silêncio, sem cessar de sorrir, sem forças para agitar o lenço.

Dez minutos depois, subiam todos a escada do portaló e entravam no paquete, em meio de uma confusão indescritível.

Passou-se então uma cena tocante. Fernando e dona Benga atiraram-se ao viajante e sem lhe darem tempo para articular uma palavra, o apertaram nos braços, cobrindo-lhe o rosto de beijos e lágrimas.

Castrioto olhava para aquilo com o seu ar apático, com o sorriso e a destra de prontidão, à espera da sua vez: Dano encarapitara-se na amurada e entretinha-se a observar o movimento dos botes e lanchas embaixo, junto à escada do portaló.

Corina tinha uma umidade brilhante nos olhos e a sombrinha tremia-lhe na mão enluvada.

Por fim desabraçaram-se os três e Paulino enxugou vivamente os olhos.

Só então pôde ver Corina. Tirou imediatamente o chapéu e estendeu-lhe as mãos:

— Oh! Dona Sinhá!

Esta, sem responder, estendeu-lhe as suas.

— Ora façam-me o favor de abraçar-se! Pois você vem de Paris e perde a ocasião de beijar uma mulher bonita? - exclamou Fernando.

Paulino obedeceu, apertando levemente ao peito o busto elegantíssimo da moça e beijando-a nos cabelos.

Depois o médico e o farmacêutico, antigos companheiros de estudo, abraçaram-se afetuosamente.

— Olha o Castrioto, meu irmão, e o teu afilhado, o Dadá. Mas onde está ele? Dadá! Que diabinho de criança!

— Oh! Não o tinha visto ainda. Desculpe-me, Castrioto.

E o médico abraçou o cunhado, que tirara o chapéu, num acanhamento, muito atrapalhado com a comoção.

— Como está crescido o Dadá! Você lembra-se de seu padrinho? Qual! Não se lembra. Há três anos! Trago para você um boneco ainda mais travesso que você.

— Bem, agora toca a safar. Onde estão as tuas malas de cabina?

— Aqui.

— Bem. Vamos a isto. O plano é o seguinte: almoçamos todos no Globo, depois as senhoras vão para casa e nós vamos à Alfândega tirar a bagagem.

Meia hora depois almoçavam todos no salão do Globo, onde Fernando havia de véspera encomendado o almoço. A mesa estava muito chique, toda coberta de flores; num grande gateau ornamental, ao centro, havia um anjinho de açúcar erguendo uma bandeirola em que se lia - Boas-vindas! O recém-chegado sentou-se entre dona Benga e Corina; do outro lado Fernando, Castrioto, Honorato e o menino.

O primeiro prato servido foi uma feijoada, preparada a capricho, que foi saudada com grandes aclamações e que Fernando obrigou a rebater com um golezinho de legitima crioula - para dar à cena toda a cor local.

— Faço questão que você se reabitue desde já aos costumes pátrios. Três anos de estranja quase que desnacionalizam um homem. Mas, caramba! Você volta-nos um rapagão, seu Paulino! Olhem-me para aquilo! Que belas cores! Que bigode petulante e que elegância! Você vai ser o pesadelo dos maridos e o sonho dos pais que têm filhas casadeiras.

Paulino transformara-se de fato naqueles três anos de ausência. Partira um pouco debilitado e pálido, em conseqüência dos estudos e trabalhos da formatura, e sem aquela carrure, aquele ar sadio, robusto, desempenado. Muito moreno, ao partir, a cor abrira-se-lhe lá fora, tomando um tom rosado, e em todo ele - no corte do cabelo, no jeito dos bigodes, no vestuário, nas maneiras, no modo de dirigir-se às pessoas, no de servir-se à mesa, nos menores gestos havia um ar novo e fino de distinção, essa espécie de verniz que o simples contato e a observação inteligente das civilizações européias, em constantes viagens, fazem insensivelmente adquirir.

Era um belo exemplar da raça esse homem. Mas o que o tornava encantador era a rara, a perfeita delicadeza de sentimentos e a direitura de caráter, que se sentiam, que se viam quase sob aquela varonilidade culta e na seriedade, na quase austeridade que respirava a sua fisionomia enérgica e serena.

Fora sempre um rapaz sério, isto é, criterioso, ponderado, pacato, durante todo o tirocínio acadêmico. Por isso adquirira a afeição dos mestres e dos colegas, tendo recebido destes a honra de ser o seu representante na cerimônia da colação de grau.

Nascera no Rio Grande do Sul, de um magistrado paupérrimo e probo, a quem a mulher deixava cinco filhos, dos quais só existiam três - Paulino, d. Benga e Adolfo. Este fizera companhia, em Porto Alegre, ao pai, velho e quase cego, desembargador aposentado, até seu falecimento em 1888, havia 13 meses. Com grandes sacrifícios conseguira Paulino formar-se, tendo sido obrigado a lecionar de dia e a rever provas à noite, na redação de um jornal, para poder prosseguir nos estudos.

Foi no terceiro ano do curso médico que Fernando o conheceu, apresentado por um amigo comum. Quis o acaso que eles se encontrassem várias vezes, e uma tal afeição os ligou, que Fernando, solteiro e já abastado, obrigou o estudante a morar com ele e a aceitar-lhe a proteção, que ele, aliás, sabia dispensar sem vexame nem humilhação.

Foi ainda Fernando quem editou o seu primeiro livro - um estudo da influência e do papel da mulher na sociedade, livro que levantou grande celeuma entre os críticos, pelo pessimismo que todos eles julgaram descobrir na obra.

E, finalmente, foi graças à influência e aos esforços de Fernando que o dr. Paulino foi nomeado pelo governo em comissão para estudar em Paris, Viena e Berlim bacteriologia e higiene.

A diferença de idade entre os dois amigos era de dez anos, mais ou menos. Fernando tinha 33 anos e 23 para 24 Paulino quando este recebeu o grau de doutor em medicina; e esses dez anos de diferença, juntos à proteção do mais velho pelo mais moço, davam ao afeto de Fernando por Paulino um quê de paternal, que muito agradava àquele.

Esse tom paternal não impedia, contudo, que os dois amigos tivessem a máxima familiaridade e franqueza um com o outro e várias vezes entrassem nessas alegres partidas de prazer, próprias de rapazes sem família e das quais os amores fáceis constituem quase todo o programa.

Paulino era o que os franceses chamam un homme à femmes. Temperamento cálido e nervoso, constituição forte, adorava a mulher, isto é, todas as mulheres capazes de dizer-lhe aos sentidos alguma coisa nova.

Inimigo irreconciliável do casamento - que ele considerava uma instituição absurda por antinatural e hipócrita, sendo o homem polígamo, como é, por natureza e hábitos e pela dissolução dos costumes contemporâneos -, achava a mulher indispensável à vida física e intelectual do homem, só lhe admitindo a influência moral quando mãe, não como companheira, e menos ainda como esposa.

Coerente com as suas doutrinas, tendo horror ao matrimônio como à colagem, mudava de amante como de gravatas, escolhendo sempre aquelas como escolhia estas - entre as mais novas e mais bonitas. Não admitia nem perdoava o homem que conspurca um leito matrimonial: perdoava à mulher, "ente irresponsável, que o nosso egoísmo estragou completamente, reduzindo-a à eterna servidão física e moral" (palavras suas), mas ao amante, não. Este tem centenares de mulheres livres diante de si para saciar os apetites da besta; não tem o direito de desejar aquelas que, por força da convenção e do preconceito embora, têm um senhor, um dono. "A mulher é coisa do marido; há tanto o direito, para um terceiro, de se servir dela como de um objeto dele - do guarda-chuva, da carteira, das lunetas... ", dizia ele.

Estas idéias extravagantes tinha-as Paulino exposto e desenvolvido, em grande parte, no seu livro A Mulher, que tantos ataques lhe trouxe, e divertiam muito o seu amigo. Mas o que é verdade é que frei Tomás fazia o que pregava. No demi-monde as mulheres tinham, por fim, medo dele, porque sabiam que daquele belo e robusto rapaz nada havia a esperar senão algum dinheiro e algumas noites de gozo; afeição, rabicho - como elas dizem -, isso nunca. É que elas também têm o seu orgulho e o seu amor - próprio e não podem, sem se sentirem ofendidas nesses pontos melindrosos da alma, admitir essa invulnerabilidade desdenhosa, essa couraça protetora do coração masculino.

Tanto queria como temia as mulheres, e se por todos os modos e a todo custo evitava apaixonar-se, se procurava conservar o coração alheio aos seus caprichos sensuais, era porque tinha a intuitiva certeza de que se tivesse um amor, entregar-se-ia a esse amor inteiro, cego, com delírio, com loucura, pronto a sacrificar-lhe tudo, a começar pela vida.

Ora, justamente, no correr do almoço, quando os vinhos, vários e bons, já tinham posto nas línguas e nos espíritos essa alegria comunicativa e indiscreta, própria desses momentos e que constitui um estado bastante agradável e inocente com a condição de não subir nem mais um ponto, Fernando Gomes perguntou, de repente, ao seu amigo, com um pisco de olho malicioso:

— E no capítulo mulheres, que tal? Você, com essa cor morena e esses olhos e cabelos negros, devia fazer furor! Muitas aventuras? Talvez alguma paixonite, hem?

Paulino riu-se sem acanhamento e respondeu com perfeita naturalidade:

— Você esquece-se de que sou invulnerável. O coração conservou-se mudo e calmo, como até então e como até agora.

— Mas um capricho, uma simpatia passageira... nem isso ao menos?

— Ora, meu caro Fernando, isto é uma confissão em regra! Não me recuso à confissão, nem rejeito o confessor; mas exijo, apenas, o sigilo do confessionário.

— Percebo: as senhoras acanham-te. Mas repara que ambas são casadas; depois uma é tua irmã e a outra...

— Perdão, ambas são minhas irmãs; não é verdade, Corina? - disse Paulino, voltando-se todo para a sua vizinha e procurando-lhe os olhos.

Dona Sinhá desviou-os com um certo embaraço, mas respondeu com voz clara e um sorriso breve:

— De certo; pois que havíamos de ser?

— Ora muito bem, se assim é, não há nenhuma razão para você se fazer de santo; vá, faça confissão, à puridade, dos seus pecados de amor na Europa - tornou Fernando, enchendo a taça do amigo e a sua de vinho espumante.

— Foram tão veniais que nem vale a pena confessá-los.

— Pois sim, mas vá confessando sempre - exclamou dona Benga, em cujos olhos, de ordinário risonhos, ridentíssimos agora, brilhava uma curiosidade viva, picante de malícia.

Dona Sinhá nada dizia e o seu sorriso parecia contrafeito; as suas faces, que a excitação do almoço havia rosado, estavam agora ligeiramente pálidas. Dir-se-ia que o assunto lhe dava um constrangimento sem razão, que ela própria não poderia explicar.

— Pecadilhos sem importância, repito. Uma dançarina aqui, uma grisette acolá...

— E parece-lhe que foi pouco? - perguntou Corina com a voz um pouco trêmula.

Tão estranho pareceu a Paulino o tom dessas palavras, que olhou para ela, admirando-se muito vê-la com um ar sério, muito esquisito em meio do ar alegre de todos, e um véu de umidade nos olhos. "Fui inconveniente, não há dúvida, e feri-lhe o pudor com as minhas revelações. Fui desastrado!" E alto, com muita solicitude: - Peço-lhe mil perdões de havê-la melindrado com as minhas inconveniências. Mas a culpa é de seu marido, que me obriga a cometê-las.

E para o amigo:

— Você, decididamente, põe a minha alma no inferno.

Mas Fernando, rindo-se muito:

— Isso é cisma tua, Sinhá não se ofendeu, nem tinha de que. Se você até foi discreto demais! Mas vamos, dize cá: de toda a tua coleção de mulheres, qual foi a que mais te agradou, a que mais viva impressão te deixou no espírito? A espanhola? A francesa? A italiana?

— Ah! Mais non, ça c'est trop fort! Assez de bavardage, voyons! - exclamou Paulino; e pela espontaneidade com que a frase francesa lhe saltou da boca via-se que não dissera propositalmente, por pose ou pedantismo.

Dona Sinhá, ou sinceramente ou para afastar uma suspeita que lhe não agradava, interveio, tardiamente mas já senhora de si, com um sorriso encantador enflorando-lhe aos lábios:

— Que idéia! Eu, ofendida! E por quê? Se o doutor nada disse de inconveniente, que uma senhora nas minhas condições não pudesse ouvir!

— Mas, afinal, para um homem com aquela cor e aqueles olhos dez conquistas por dia não seria muita coisa! - exclamou Fernando, rindo gostosamente.

Todos riram com ele, exceto Corina, que enrubesceu até a menina dos olhos, e o médico, que disfarçou como pôde a confusão que lhe causaram aquelas palavras. Honorato cessou de rir para murmurar ao ouvido do impassível e taciturno Castrioto:

— O Fernando apanhou uns chuviscos. Se continua a beber, temos uma pancada de água de alagar tudo. - E, dizendo isso, tinham os seus olhos um quebranto de sonolência muito característico.