Flor de Sangue/I/III

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A festa com que Fernando Gomes celebrou na sua vivenda principesca o regresso feliz do seu amigo foi digna de ambos.

Homem de gosto educado, pronto a gastar largamente sempre que o julgava necessário, eram notáveis as festas por ele oferecidas ou organizadas, por serem brilhantes e completas: tudo o que tinham era superior e nada lhes faltava. A dessa noite, na opinião dos convidados, não desmerecia as anteriores.

O aspecto exterior da casa deixava nos passageiros dos bondes a visão rápida de um castelo fantástico em noite de festim. Por toda a alameda de palmeiras que da rua levava ao chalé subiam dois renques de grandes, variegados e brilhantes lampiões venezianos, e o prédio, no alto da colina, iluminando esplendidamente a giorno, desaparecia sob as lanternas, globos e folhagens, num amontoado de cores e fulgurações, destacando no seio tenebroso da noite como um coágulo multicor de luz.

No cimo do belvedere queimavam-se de quando em quando magníficos fogos de bengala: verdes, vermelhos, roxos, brancos, que banhavam de repente e durante um ou dois minutos na mesma tinta fulgurante os matagais que cobrem os montes circunjacentes e os telhados e paredes das casas semeadas na encosta e no vale.

Em um dos pavilhões chineses do jardim tocava uma banda de música alemã, e as estrepitosas peças do seu rico repertório não eram desaproveitadas - um enxame de crianças, numa variedade encantadora de tamanhos e de vestuários, dançava-as sobre a areia branca, em meio de uma algazarra de risos, gritos e cantos capaz de desensurdecer um surdo.

Desde as nove horas começara a entrada dos convidados a maioria dos quais transportada em carros particulares ou de cocheira. O salão principal, vasto e quadrangular, forrado de um rico papel vermelho e ouro, fartamente iluminado pelo grande lustre central, apresentava às 11 horas um aspecto deslumbrante. Mais cortinas e reposteiros, um pouco mais de pose nos homens e de decote e pintura nas mulheres, um criado hirto anunciando os convidados - e dir-se-ia um baile no faubourg Saint-Germain.

As senhoras, umas sentadas nas cadeiras apostas às paredes, outras passeando pelo braço dos seus cavalheiros, algumas decotadas e com longas caudas, abanando-se languidamente com vastos leques de penas ou com pequeninos leques de madrepérola, ofereciam com as suas toaletes de todas as nuanças o aspecto de uma exposição de flores, de que uma brisa suave fizesse mover-se algumas.

Fernando e a esposa recebiam com uma graça e uma distinção perfeitas.

Ela vestia um maravilhoso vestido de faile cor de creme, bordado a matiz de botões e folhas de rosas soltas, com tufos de fitilhos grenás nos ombros, na cinta, nos apanhados da saia. O decote estreito e fundo deixava a descoberto as espáduas olímpicas e o começo do ângulo convexo dos seios; os braços longos e nus, admiravelmente torneados, tinham a aparência de pescoços alvíssimos de cisnes. Multiplicava-se graciosamente para atender a todos com um cuidado ou um cumprimento.

Fernando estava no seu correto e fino terno de casaca do Raunier com uma elegância e naturalidade de grande mundano que o envergasse todas as noites, e secundava a esposa ativamente nas honras da casa, não se cansando de apresentar o seu amigo, objeto da festa, a quantos o não conheciam ainda.

Uma das primeiras apresentações foi a do casal Viriato de Andrade. Ele - 40 anos, baixo, forte, cabeça grande, grossos bigodes pendentes, olhos suínos, ar massudo, gestos pesados, poucas falas, risadas raras, mas destemperadas, descorteses. Ela - 35 anos que parecem 30, alta, quase gorda, seios e quadris opulentos, cara apenas bonita, mas de traços grosseiros, olhos castanhos, úmidos e brilhantes, boca espessa e sensual.

As relações entre esses dois casais foram feitas num baile do Clube do Engenho Velho, há cerca de um ano, e estreitaram-se rapidamente, sobretudo do lado das mulheres, que se tornaram amigas íntimas, devido ao poder extraordinário de insinuação e de agrado de Santinha - que tal era o apelido da esposa de Viriato - e a haverem os respectivos maridos tido transações comerciais freqüentes e vantajosas a ambos.

Essa amizade causou estranheza na roda de Fernando, porque o casal Andrade quase não tinha relações, tão mal reputado era, correndo a seu respeito os mais desonrosos boatos.

Dizia-se geralmente que Santinha, pertencente a uma abastada família de Pernambuco, havia sido deflorada aos 16 anos por um cunhado, o qual falecera, meses depois, das conseqüências de uma queda. A família procurou um sujeito acomodatício que encampasse a avaria da menina com o casamento, e encontrou-o em Viriato, homem pobre, sem ofício nem benefício, mediante um dote de 30 contos de réis. Sete meses depois do consórcio, dava Santinha à luz um menino; mas queriam ainda os boateiros que, se fizesse bem a conta, dia por dia, se chegaria a verificar que o pimpolho tivera a gestação extraordinária de seis meses. Essa criança morreu com três anos.

Com o dote da mulher entrara ele de sócio em uma boa casa de couros curtidos do Rio de Janeiro, de que era hoje o sócio comanditário, possuindo vários prédios de boa renda e jogando na bolsa forte e bem.

Mas os boatos não paravam ali; asseguravam eles ainda que Santinha enramava o marido com entusiasmo e sem fadiga, com amantes sucessivos e, algumas vezes simultâneos.

Fernando, ao princípio, de nada sabia, e quando alguns dos boatos lhe chegaram ao conhecimento, já as relações eram tão estreitas e ele achava o amigo um homem tão sisudo, de costumes tio austeros, que julgou tudo calúnias de invejosos e despeitados. Não era homem que facilmente acreditasse no mal, repugnando-lhe a desonestidade instintivamente. E a amizade continuou, radicando-se mais.

Santinha fez ao jovem médico um acolhimento excessivamente caloroso e cordial:

— Conhecia-o imenso de nome, e do modo mais lisonjeiro. Dona Sinhá não se cansava de fazer-me o seu elogio - que era assim, que era assado... maravilhas! Vou agora verificar até que ponto eram justos os seus gabos. - E tomou-lhe familiarmente o braço, estreitando-o um pouco de encontro ao seio e levando assim docemente o seu cavalheiro a dar um giro com ela pelo salão.

— Oh! Minha senhora, receio muito que V. Exa. tenha um desengano completo. Dona Sinhá deixa-se cegar pela amizade de irmã com que me honra e daí pintar-me a seus olhos com cores e traços que infelizmente não possuo. O prejudicado sou eu e sem poder queixar-me!

— É o que veremos.

Paulino julgou ter sentido um movimento de mais estreito aconchego no braço da sua dama, o que o levou a encará-la. Ela tinha justamente os olhos erguidos para ele com uma expressão singular, que ele não ousou traduzir logo: naquela umidade luminosa de quebranto e meiguice boiavam promessas vagas de gozo imenso.

"Homem, esta! Dar-se-á caso que esta mulher...? Era o que me faltava!...", monologava entrecortadamente o pensamento dele. E alto, para fazer derivar a conversa:

— Uma bela reunião, esta. Creia, minha senhora, que não as vi mais brilhantes nas grandes capitais européias.

— Ardia por ouvi-lo a respeito das suas impressões de viagem. Diga-me: qual dessas capitais lhe agradou mais?

— A resposta não é fácil, minha senhora. Cada uma delas é inigualável em alguma coisa, tem as suas belezas ou qualidades especiais e peculiares; cada uma delas é única a um certo respeito: Roma pelos monumentos, Madri pelos passeios e jardins, Lisboa pela posição topográfica, Londres pela grandeza, Haia pelo asseio e frescura, Viena pela beleza e harmonia das construções, Paris...

— Ah! Fale-me de Paris. Eu adoro Paris e desespera-me a idéia de morrer sem lá ir. Fale-me de Paris!

— Paris tem um pouco de cada uma das coisas que celebrizam as outras grandes cidades e tem muitas coisas que nenhuma delas tem, como por exemplo: a alegria da população, o chique das mulheres, a facilidade de tudo se obter prontamente com dinheiro, a Comédia Francesa, a avenida dos Campos Elísios, a Vênus de Milo... Muito longe iria eu se tivesse de enumerar todas as coisas que só Paris tem e que só ela oferece ao estrangeiro. Só se admira essa cidade com inteira justiça, como ela merece, quando dela a gente se ausenta, e só se mede o quanto nos cativou, o quanto lhe queremos, quando a ela voltamos. E a cidade ideal para todos: para o sábio como para o boêmio, para o milionário como para o miserável. O trabalho e o prazer andam pelas ruas e pelos bulevares esplêndidos de braço dado, amigos inseparáveis que são, dando aos mais indolentes o desejo imperioso de trabalhar muito para gozar.

Estas coisas está as dizendo agora o médico à sua dama, parado com ela junto ao bufete, em que lhe fora oferecer um refresco. Insensivelmente uma roda de ouvintes, homens e mulheres, fora-se formando em torno dele, atraídos pela curiosidade, entre os quais Castrioto com a mulher, que sorria embevecida e orgulhosa de ouvir o irmão, e o próprio dono da casa; mas, não tendo reparado naquele auditório fortuito, Paulino continuava com ar natural e um calor de expressão comunicativo:

— E, depois, que intuição artística prodigiosa a desse povo! As mulheres pobres vestem-se com um trapo; mas um piparote dos seus dedos mágicos dá a esse trapo uma elegância e um chique encantadores, e as ricas tiram os veludos e às sedas parte da brutalidade insolente do luxo desses estofos caros imprimindo-lhes uma simplicidade e uma graça deliciosas. Paris concede aos milhões o direito de deslumbrá-la com a condição, porém, de terem espirito, não admitindo o dinheiro estúpido, a riqueza sem inteligência.

— Mas é um povo frívolo, todo de superfície - objetou a um lado uma voz de homem.

Era o farmacêutico Honorato, que dera aquele aparte para chamar a atenção de Santinha, a quem andava fazendo uma corte platônica, de longe, havia algumas semanas, e queria aproveitar aquela ocasião, a primeira em que se encontravam juntos.

— Frívolo! Frívolo porque é alegre, superficial porque é artístico, inconstante porque é entusiasta, ignorante porque é simples. Ora, ai está! Um povo que dá à ciência, às letras e às artes tantos e tão grandes vultos, esse povo é tão sério, tão fecundo, tão grande, tão forte, tão nobre como o alemão, o inglês ou o russo. Frívola e ignorante a França! Entretanto é na França que todas as grandes quando não nascem, são batizadas; é pela França que têm de passar forçosamente todas as grandes descobertas científicas, todas as novas idéias morais, todas as reformas políticas, todas as escolas literárias, para que possam conquistar o mundo. Querem a imagem da França? É a torre Eiffel. Vista de longe é um joujou. uma filigrana, uma tetéia recortada em papel Bristol: aproximem-se e encontrarão uma formidável mole de ferro, que desafia as tempestades do céu e os ultrajes dos séculos!

— Bravos! Bravos!

— Muito bem!

— Muito bem! - exclamaram várias vozes em torno.

Estes aplausos chamaram o médico à realidade da sua situação que ele, recém-vindo de meios sociais em que ela seria completamente risível, achou ridícula, tão ridícula que se calou, enrubescendo fortemente, e procurou um meio de safar-se dali o mais depressa possível.

Veio trazer-lho, sem o saber, dona Sinhá, que chegava em procura dele.

— Venho buscá-lo dr. Paulino. Papai e mamãe chegaram há pouco e desejam vê-lo.

Paulino ofereceu-lhe o braço com açodamento e afastou-se com ela, ainda enfiado da cena, esquecendo completamente Santinha, que, despeitada, mordia os lábios. Mas Honorato veio-lhe em socorro, oferecendo-lhe o braço para reconduzi-la ao salão e dizendo-lhe logo, à queima-roupa, como quem sabia com quem tinha de haver-se:

— Ah! Minha senhora, com que ansiedade eu esperava este momento de ventura!

E como a orquestra atacasse uma valsa de Strauss:

— Tem par para esta valsa, dona Santinha?

Paulino saiu, com Corina pelo braço, da sala do bufete, cheia de rumor e confusão, e entrou na sala contígua ao salão de baile, pelo corredor largo e extenso por onde iam e viam os convidados, sem trocar uma palavra com a mulher do seu amigo.

Sentia-se levemente perturbado por uma espécie de indefinido mal-estar, que ele não poderia dizer se era físico ou moral, um estado confuso e complexo, em que havia inquietação, desejo e relutância.

Mas acabava de avistar o conselheiro Prestes e a mulher, sentados em um canapé, conversando com outro casal - um velhinho, muito branquinho e muito pequenino, e uma matrona enorme, pomposa.

— Oh! Como está mudado o seu padrinho!

— Não é? - acudiu Corina. - Muito acabado! Tem envelhecido rapidamente, é uma diferença espantosa de dia para dia; entretanto não se queixa, nem parece estar doente. Vai definhando aos poucos.

Nesse momento chegavam em frente aos dois casais, entretidos a conversar, e então Corina, erguendo a voz:

— Cá está o nosso viajante, papai.

O conselheiro volveu para ele o seu rosto magro e lívido, que as barbas grisalhas mais alongavam, e em que os olhos morriam lentamente, como lâmpadas cujo azeite vai secando; ergueu-se com alguma dificuldade e estendeu-lhe as mãos com um arremedo de sorriso amável.

— Oh Dr. Castro, folgo imenso de vê-lo entre nós novamente, e forte, bem disposto.

— Agradecido a V. Exa. e creio que o meu prazer em tornar a vê-lo é igualmente grande. - E, voltando-se para d. Chiquita:

— E quanto a V. Exa. permita-lhe que lhe beije a mão, grato sempre à sua inestimável bondade para comigo; e, curvando-se, beijou-lhe galantemente a mãozinha gorducha, apertada na luva branca, cortada no punho por um cintilante bracelete de brilhantes e esmeraldas.

— Como nos volta bonito e galanteador o nosso Paulino! Se eu tivesse 20 anos menos apaixonava-me pelo senhor, sabe?

— E a sua benevolência que me empresta dons que não possuo.

— Que saudades nos fez! Falávamos sempre na sua pessoa; o Fernando dava-nos freqüentemente notícias suas e transmitia-nos os cumprimentos que tinha a bondade de nos mandar.

— A bondade não, minha senhora; o dever.

— Quando vai jantar conosco? Olhe, quero que me destine uma tarde e uma noite inteirinhas para me contar miudamente as suas impressões de viagem.

— Com todo o gosto, minha senhora.

O conselheiro Prestes interrompeu-os nesse momento para apresentar Paulino ao desembargador Vidoeira - o velhinho muito branco. D. Chiquita Prestes puxou para si a afilhada, fazendo-a sentar de leve na ponta do canapé, enquanto o médico, do outro lado, tomava uma cadeira e entretinha-se com os dois velhos.

— Ele não teria deixado alguma paixão lá pela Europa?

— Sei lá, mamãe! Que pergunta! - volveu a moça, rindo-se.

— É impossível que não tenha inflamado algum coração de italiana. São tão ardentes as italianas! Hei de perguntar-lho, deixa estar.

Era uma mulher de 42 anos, que empregava todos os recursos da arte e do artifício para os reduzir a 30. Uma perfeita boneca de armazém de confecções - espartilhada a estalar, penteada a primor, alva, corada, lábios carmíneos, dentes deslumbrantes e falsos, olhos vivazes, cuja grandeza e brilho um lápis especial todas as manhãs aumentava, orelhas que pareciam conchas de nácar.

Era ainda um pouco apetecível a famigerada Chiquita Prestes, de tão escandalosa tradição: naqueles destroços da passada formosura havia ainda com que atrair sedutores fatigados da inexperiência e da ingenuidade das muito novas, blasés que no amor já não buscam mais do que um certo "saber, de experiências feito", convictos de que isso vale mais que verduras por educar. E, a dar crédito aos boatos das salas, aquela majestade decadente continuava tendo súditos fiéis que lhe rendessem o devido preito.

O marido - veneranda relíquia de um glorioso passado político, cujo mais belo florão era a confiança ilimitada e a estima particular do imperador - o marido ia envelhecendo e morrendo suavemente, sem nada ver, sem nada ouvir, sem sentir sobre a cabeça, outrora altiva e firme, hoje trêmula e pensa, o peso das aventuras da esposa.

Após cerca de meia hora de conversa banal, Corina, levemente entediada, como a orquestra começasse uma valsa de Metra, perguntou a Paulino:

— Não valsa? Dantes não dançava. E agora?

— Ah! Minha senhora! A Europa perverteu-me, ensinou-me todos os vícios! Agora danço; danço tudo: desde o solo inglês até a giga e a jota!

— Há de dançar isso um dia para eu ver, lá em casa - acudiu Chiquita. - Mas não perca a valsa: quero ver esse chique.

E levantou-se para acompanhá-los ao salão.

Paulino calçou as suas luvas cor de pérola, enlaçou levemente a dama, e ei-los que partem girando. Valsou tão bem, com tanta correção, elegância e donaire que atraiu as atenções gerais: nas portas apinhavam-se os curiosos e alguns pares deixavam de dançar para admirá-los também. Mas em um grupo de rapazes não era a admiração o sentimento dominante.

— Olhem que pedante! - comentava um deles. - O Miranda Júnior, um magricela com ar de cegonha, que se tinha na conta de leão das salas. - Calçou as luvas para dançar! E se aquilo algum dia foi valsa, afastado meia légua da dama; e é cada passada!

— E para mostrar que chegou da Europa, o tolo! - confirmou outro elegante, o Fangote, baixinho, de grande cabeleira romântica e um ar fatal de Manfredo nas maneiras, no olhar, nas melenas.

— Vocês o que estão é com inveja, confessem! - exclamou Honorato, acudindo em defesa do amigo. - Aprendam com ele, andem, aprendam. Vejam que elegância, que distinção, que correção!

— Ora, vá fazer pílulas! - praguejou o Fangote, furioso.

A verdade é que o herói da festa estava fazendo um sucesso colossal. As mães de moças solteiras acompanhavam-no com olhares cobiçosos e diziam aos maridos que se lhe fizessem apresentar, e, uma vez a apresentação feita, eram oferecimentos de casa, protestos de estima, convites etc.

A família do dr. Meio Peixoto, essa então atormentou-o durante um terço da noite. Compunha-se de seis mulheres - a mãe e cinco filhas; - o pai, nunca ninguém o via em bailes, festas ou passeios: não acompanhava nunca a família a divertimentos.

Sabia-se vagamente que era advogado e viera do Norte. Tinha 11 filhos - aquelas cinco mocinhas, mais duas meninas e quatro rapazes. Ninguém o via nem de dia nem à noite pela razão simples de que as noites passava-as ele jogando e os dias dormindo. As filhas andavam saracoteando de baile em baile, de sarau em sarau, muitas vezes até sem a mãe, que ficava em casa tomando conta do resto da ninhada.

Eram as Peixotinhas cinco raparigas mais ou menos da mesma altura, um pouco menos que mediana, morenas, muito parecidas todas com a mãe, a mais velha das quais tinha 22 anos e a mais nova 14.

A mãe, do mesmo corpo das filhas e mais bonita que algumas, confundia-se com elas, parecendo ser apenas a irmã mais velha.

Dançava também e com igual entusiasmo, como se também procurasse noivo.

Eram conhecidas geralmente as cinco irmãs pelos seus nomes familiares - Biloca, Milu, Filó, Lili e Tetêia. Os homens mesmo as tratavam assim, apenas com a precedência de um dona respeitoso: dona Filó, dona Tetéia, dona Milu etc.

A família do dr. Peixotinho era convidada para todos os bailes, sempre; o que se compreende facilmente: só ela fornecia pessoal para uma quadrilha; era uma garantia de êxito.

O pobre Paulino teve de dançar com todas, inclusive a mãe, que o fez prometer visitá-la muito breve.

— Pobre dr. Castro! - disse-lhe Santinha tomando-lhe o braço, quando, lá para o fim da noite, ele ia refugiar-se na sala de jogo. Que tarefa e que maçada, hem? Dançar com toda família!

— Muito interessantes estas meninas - respondeu ele sem convicção.

— Sabe que sou íntima amiga de dona Sinhá? - perguntou ela, após uma curta pausa.

— Sabia que eram amigas...

— Somos íntimas, não temos segredos uma para a outra.

— Folgo muito - respondeu o médico, sem saber que dizer.

— No domingo próximo ela e Fernando vão jantar em nossa casa. Peço-lhe que vá também; não falte!

— Não faltarei.

Entraram na saleta de jogo. Em uma das mesas, Fernando, Viriato e mais dois convidados jogavam o pôquer. Havia dois pequenos divãs de marroquim. Em um deles arrulhava um casal de noivos, que ali viera refugiar-se, acossado pelo rumor e movimento das salas. Não se falavam quase; tinham as mãos enlaçadas e olhavam vagamente para os jogadores com olhos cheios de tédio e de uma ternura cansada.

— Olhe, acolá, que idílio! Estão assim agarrados um ao outro desde o princípio do baile.

— Quem são?

— Pois não vê? São noivos, casam-se para o mês.

— Devem divertir-se muito! - disse o médico com um sorriso.

— Por que não, se se amam? Não crê no amor? - perguntou Santinha, sentando-se no outro divã e obrigando-o, dessa forma a sentar-se também.

Ele olhou-a com certo ar de surpresa. A apetecível trintona apresentava nos olhos quebrados, nos lábios entreabertos e na atitude abandonada indícios evidentes de querer discutir o assunto tanto no terreno teórico quanto no prático.

— Se creio no amor? - respondeu o interpelado, procurando as frases com cautela. - Sim, minha senhora, creio no amor como creio na sorte grande: um número premiado entre milhares de números brancos.

— Que ceticismo! - exclamou ela.

— Que topete! - pensava ele, lembrando-se que aquela mulher estava ali a provocá-lo a dois passos do marido, todo entretido a blefar no seu pôquer.

E a conversa continuou sobre o mesmo tema, muito a contragosto de Paulino, que não sabia como safar-se.

Felizmente, alguns minutos passados, assomou à porta a figura de Corina. Procurava, evidentemente, alguém, e que era o médico, mostrou-o, vindo logo a ele. Quando o viu naquele canto em colóquio íntimo com a sua amiga, uma contrariedade carregou-lhe o semblante e fê-la morder levemente os lábios; mas, disfarçando logo, dirigiu-se aos dois:

— Ah! Estavam aqui? Bem podia eu procurá-los. Dr. Paulino, pode fazer-me um favor?

— Mil, dona Sinhá - e ergueu-se.

— Consente que o apresente a um amigo nosso que deseja conhecê-lo?

— Como não? Com todo o prazer.

— É o barão de Santa Lúcia. Um moço distintíssimo, muito viajado. Vamos?

Paulino estava bastante embaraçado, não sabendo que fazer a qual das duas dar o braço. Por fim ofereceu o braço a cada uma. Chegando à sala, Santinha, que vira Honorato em disponibilidade, deixou o braço do médico, murmurando um "com licença" muito seco, e foi tomar o do farmacêutico, perguntando-lhe:

— Pode fazer-me o favor de conduzir-me ao bufete?

E enquanto seus lábios proferiam essa frase banal, no seu cérebro este pensamento desenhava-se nitidamente e repetia-se com insistência: "Queres disputar-mo; bem vejo. Mas não será tua a vitória".

Que idéias estranhas nascem, que monstruosos planos se formam num cérebro de mulher, enquanto a sua boca risonha fala de flores, de poesia, de amor, das coisas mais aprazíveis e mais inocentes!