Flor de Sangue/I/XVI

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Paulino despertou, enfim, passando gradativamente do sono à vigília, de modo que o acordar era para o seu espirito adormentado uma conseqüência natural de atos ideados em sonho. Sonhara muito, mas coisas incoerentes e confusas. Com algum esforço lembrou-se que sonhara o seguinte:

Os seus amores com dona Sinhá haviam sido descobertos por denúncia de uma noticia da Gazeta da Tarde, fato que o indignou tanto que ele passou a chamar aquela folha de Corsário da Tarde; e o contentamento de haver engenhado esta frase era tão vivo que o compensava de todos os desgostos produzidos pela noticia terrível. Fernando, tendo-a lido, longe de enfurecer-se, veio logo agradecer-lhe os cuidados e os carinhos dispensados a sua mulher durante sua ausência, e Paulino, vendo-o sair dessa visita de cortesia, de casaca e gravata branca, notou que ele levava o chapéu suspenso, como num cabide, em uma das pontas de um par de galhos, que lhe subiam, retorcidos, da fronte; e o chapéu dançava, lá em cima, com os movimentos do corpo. Depois foi levado ao júri, que era presidido pelo Alfred, de toga, com cabeleira branca de cachos. Lembrava-lhe desse episódio apenas isto: que, como Hiperides a Frinéia no Aerópago, havia arrancado as vestes à amante, dizendo aos jurados: "Vejam que perfeição! Examinem. Apalpem. E digam se eu podia resistir!" Mas nesse momento reparava que a mulher não era Corina, mas Madelon, que fazia um pied de nez aos juizes, gritando: "Tas d' imbéciles! Tas d' imbéciles!" Então o Alfred levantou-se e bradou: "O réu foi condenado à morte". Nesse momento tudo desapareceu; ele ficou sozinho em meio de uma solidão imensa e muito negra e ouvia mil vozes ciciar com um sopro gélido, que o transia: "Vais morrer! Vais morrer! Vais morrer!" Nesse momento um vulto surgiu a seu lado, que lhe murmurou ao ouvido: "Não acredites. Isto é sonho; tu estás dormindo e sonhando. Não vais morrer nada. Então morre-se assim com duas razões, só porque se aproveitam e se gozam as mulheres que se oferecem à gente?"

Mas então apareceu no ar um corvo de asas imensas, com a cabeça de Fernando que gritava com uma voz tão cavernosa e tão extensa que enchia todo o espaço, repercutindo muito longe: "Vais morrer, sim, traidor, infame, ingrato!"

Não se lembrava da continuação desse sonho terrível. Mas de todo ele uma idéia lhe ficara, nítida e forte, acudindo-lhe, apenas desperto: - morrer.

Lembrou-se então que, de fato, ele tinha de morrer, que viera aquele lugar para isso. Mas, no cérebro, atordoado pelo narcótico e enfumado ainda pelos nimbos revoltos dos sonhos, não surgiu logo, inteira, a realidade da sua situação; não sabia como ia morrer, se o iam matar...

Fez um esforço de memória, esfregou os olhos, olhou com fixidez para os móveis do quarto e foi só vendo as folhas de papel escritas sobre a mesa que se recordou que devia morrer nas suas próprias mãos. Seu cérebro não se havia ainda habituado àquela idéia, que, por isso, lhe fugia à retentiva.

Um relógio, afastado, tiniu horas. Contou-as: nove. Nove horas! Dormira bastante! Fora a poção. E então lembrou-se que a morte não devia ser outra coisa mais que um grande, um invencível narcótico.

Morrer! Extinguir-se, deixar de ser, não ser, o nada... E um pavor estranho invadiu-lhe o cérebro, como uma lufada fria de vento hibernal.

Teve medo, teve horror... Era tão bom viver! Havia tantas terras curiosas que viajar, tantas mulheres moças, bonitas e fáceis pedindo amor, pedindo homem! E ele tinha de morrer, assim: forte, bom, cheio de vida, moço, sedento de gozo! Era estúpido! E se não se matasse? Para satisfazer os ditames da sua consciência bastaria ir ter com Fernando e dizer-lhe: "Dormi com tua mulher, gozei-a em tua ausência. Faze agora o que entenderes." - Talvez mesmo nem isso. Foi ela, afinal, que o seduziu, que lhe preparou habilmente a ocasião, que o excitou de modo irresistível. Ele não era de mármore. E, afinal, aquilo era coisa que se via todos os dias. Se todos os homens no caso deles se suicidassem, fora uma hecatombe!...

Mas a figura simpática e leal de Fernando surgiu-lhe à mente e, nesse instante, toda a extensão do crime que cometera enganando-o, abusando miseravelmente da confiança paternal que depositara nele, desenrolou-se-lhe aos olhos. Então, com um frêmito de horror, sem mais raciocinar, sem recordar mais nada, compreendeu que o suicídio era inevitável.

Entretanto, para prevenir-se contra o medo e o horror dessa idéia, resolveu agitar-se, entreter o pensamento nos preparativos e disposições finais até que, tudo concluído, chegasse o momento fatal. Tinha de ser; acabou-se.

Saltou da cama, premiu o botão da campainha elétrica; pediu ao criado que o levasse ao banheiro.

Voltando do banho frio, tomou uma xícara de café, e estava acendendo um cigarro, em robe de chambre, quando bateram a porta.

— Entre quem é.

— Dás licença?

"Eu conheço esta voz", pensava Paulino; mas não teve tempo de lembrar-se da pessoa que tinha aquela voz, porque ela acabava de entrar.

— Oh! Julião! Que surpresa ver-te! Juro-te que não pensava em ti.

— Naturalmente... pensa-se lá nos amigos insignificantes como eu!

— Não é isso.

— Ora se é isso! E a prova é que não me respondeste ainda a carta que, há uns bons três meses, te escrevi, abraçando-te e pedindo-te umas informações acerca do instrumental cirúrgico que eu desejava mandar vir de Paris...

— Perdoa-me, meu bom, meu excelente Julião. Tens razão de sobra. Se soubesses como tenho vivido ultimamente, o que me tem sucedido... quantas contrariedades... Não te zangues comigo.

— Não, de certo; e a prova é que te vim ver e abraçar.

— Mas, a propósito, como pudeste saber que eu estava em São Paulo?

— Muito simplesmente: pelos jornais.

— Pelos jornais? Mas se eu cheguei ontem à noite e não falei com ninguém...

— Vou explicar-te. Pouco depois da chegada do comboio, os repórteres percorrem os hotéis e recolhem a lista dos hóspedes de cada um, lista que publicam no dia seguinte.

— Compreendo; - e Paulino lembrou-se que havia assinado o nome no livro dos hóspedes e dado mesmo um cartão ao criado que o trouxera ao quarto.

Julião sentou-se em uma cadeira junto à mesa. Era um rapaz de pequena estatura, compleição franzina, cabeça proporcional, membros delicados, expressão extremamente vivaz, muito insinuante. Paulino, vendo o amigo com as folhas de papel ao alcance da vista, acudiu logo, juntou-as e recolheu-as disfarçadamente.

— Como não tive sono esta noite, pus-me a rabiscar baboseiras. Almoças comigo, não é assim?

— Só se for já, porque tenho ainda uns três doentes a visitar.

— Em cinco minutos isto estará acabado - disse Paulino, referindo-se à toalete. - Mas dize-me: como te corre a clínica?

— Otimamente. A principio custou a vir. Mas, graças a uns amigos influentes, chegou, e vai num progresso constante. Tenho uma clientela restrita, mas que paga sem olhar a dinheiro. É o que convém. E a prova de que não me posso queixar da sorte é que vou casar-me dentro de poucos meses.

— Ah! E com quem?

— Com a filha do desembargador Rodrigues Lopes.

— Rica?

— Não, pobre como Eva, ou melhor: quase tão pobre, porque Eva nem camisa tinha; é encantadora. Queres vê-la? Tenho aqui o retrato.

Tirou da carteira uma fotografia pequena e mostrou-a ao amigo, que tendo-a examinado alguns momentos, lha restituiu dizendo:

— Sim, senhor. Uma linda cabeça. E tem um ar muito inteligente. Meus parabéns.

Nessa ocasião entrou o Alfred com as botinas do amo e ajudou-o a vestir-se.

— Estou pronto. Vamos almoçar.

— Não trazes o chapéu?

— Para quê?

— Não tencionas sair depois do almoço?

— Não tinha pensado nisso.

— Mas tu não conheces São Paulo. Ou já tinhas vindo cá?

— Não, é a primeira vez.

— Pois então, hás de permitir-me que te faça as honras da cidade.

Paulino, que não encontrava pretexto para escusar-se, teve de ceder ao convite do colega e amigo.

A doçura do tempo, a ordem, limpeza e boa aparência da grande sala das refeições em que comiam, espalhados, em pequenas mesas, muitos hóspedes, conversando discretamente, e a jovialidade do companheiro dispunham favoravelmente o ânimo de Paulino e quando, ao fim do almoço, de que comera com apetite, saía com o amigo, havano fumegante nos lábios, respondendo a uma pilhéria dele com outra, que os fez rir muito a ambos, a idéia da morte não lhe povoava o pensamento e ninguém poderia adivinhar, por mais perspicaz e conhecedor do coração humano, que aquele belo e forte mancebo, tão calmo e risonho, tinha lavrado a sua própria sentença capital e a executaria dentro de algumas horas. Como poderia alguém pensá-lo, se ele próprio, naquele momento não o pensava? Ele fazia naturalmente, sem cálculo, o mesmo que fazem muitos dos condenados à morte - que dormem tranqüilamente a sua última noite e comem com apetite a refeição derradeira.

Dir-se-ia que o corpo, prevendo o seu aniquilamento próprio, procura, instintivamente exercer pela última vez as suas funções orgânicas em toda a sua plenitude, com fina volúpia, afirmando assim em ordem, vigor e equilíbrio o triunfo glorioso da vida, mutável mais imortal.

A porta do hotel tomaram o carro particular de Julião, devendo Paulino acompanhá-lo nas visitas aos doentes que lhe faltava ver; e depois iriam passear, a fim de Paulino conhecer os pontos mais pitorescos ou mais interessantes da cidade.

Julião levou o amigo ao bairro da Luz, onde lhe mostrou o jardim público, o seminário, o quartel, a estação da estrada de ferro, os principais prédio e palacetes indicando os proprietários, dando-lhe detalhes; na volta fê-lo admirar a várzea do Carmo, o curso do Tamanduateí, o Brás; levou-o ao museu Sertório, à academia, ao palácio da Presidência e aos principais cafés. Convidou-o a jantar numa excelente rotisserie da rua São Bento e fê-lo prometer-lhe que o acompanharia à noite ao teatro São José, onde trabalhava uma boa companhia de zarzuela.

Findo o jantar, passearam, ainda um pouco, num carro de praça, tendo Julião mandado embora o seu, por estarem os cavalos fatigados.

Depois, Paulino voltou ao hotel para mudar de roupa e esperar ali Julião, que fora fazer as suas visitas clínicas da tarde.

Ao entrar, entregou-lhe o porteiro dois ou três cartões e um telegrama.

Na sobrecarta este endereço:

"Grande Hotel ou Hotel de França"

Abri-o, trêmulo, subindo as escadas. De quem seria? De Corina? Talvez, chamando-o, dizendo-lhe que o esperava para fugir com ele, ou que chegaria para se lhe reunir. E se fosse isso? Que faria?

O coração batia-lhe precipite; o papel tremia-lhe nas mãos. Desdobrou-o finalmente. Foi à assinatura: "Fernando". E leu:

"Cheguei bem, estou furioso tua ausência, volta breve. Saudades. Abraços nossos".

Sentiu um abalo tão forte que teve que apoiar-se ao corrimão.

Voltou, ele? Abraçar novamente aquele amigo generoso, boníssimo, que ele enganara torpemente, estar novamente entre ele e aquela com quem o atraiçoara - não! Era impossível! Urgia que se matasse. Se demorasse a execução da sua sentença, Fernando podia vir a São Paulo e talvez com a mulher, como surpresa. Convinha responder logo ao telegrama para impedir que tal acontecesse. Respondeu nestes termos:

"Parabéns. Regresso em três dias. Saudades".

Deu o telegrama ao criado do hotel para que o passasse, e, enquanto mudava a roupa, ajudado por Alfred, que se declarava encantado com a Paulicéia, determinava o dia e a hora em que devia matar-se:

"A carta para Fernando está pronta, apenas precisando de alguns retoques. Na volta do teatro passo-a a limpo. Amanhã faço o testamento e entrego-o a um tabelião para o aprovar e guardar; compro o revólver e a noite acabo com isto. O encontro com Julião foi que me atrapalhou. Queira Deus que não voltem amanhã os outros amigos que vieram hoje visitar-me" - pensava.

Restava-lhe, pois apenas um dia de vida. Mas, como o condenado à morte, que até o momento de ser executado, espera vagamente a salvação e com essa esperança se reconforta e ganha valor para o transe supremo, Paulino deixava embalar-se intimamente por uma voz acalentadora, que lhe murmurava um "talvez" suavíssimo... Que podia ser esse "talvez"? Quem saberia dizê-lo? A morte de Fernando... a fuga de Corina dos braços do marido para os do amante...

Oh! O acaso tem às vezes soluções tão imprevistas e tão boas! Graças a essa abençoada e poderosa força - a esperança, que só abandona o homem no derradeiro instante de sua vida, quando ele exala o último alento, estava tranqüilo o desgraçado e passou a noite divertidamente, muito mais do que esperava.

No teatro, onde fora com Julião, segundo haviam combinado, encontrou o seu antigo companheiro de colégio e de academia, Carlos Oliva, o famoso e impagável boêmio, que estava no terceiro ano do curso jurídico, depois de haver estudado dois anos engenharia e três anos medicina.

Filho de família abastada e único varão, faziam-lhe os pais todas as vontades e perdoavam todos os desregramentos. Era "um pândego", na opinião de todos. Moreno, magro, olhos fulgentes através dos discos cristalinos dos óculos de ouro, cabelos magníficos de ébano luzente, em ondas, dentes soberbos, voz clara e de sonoridade metálica, gestos exuberantes, excessivos, pronto sempre na réplica mordaz, no comentário malicioso, na piada imprevista.

Cultivava com amor todos os vícios elegantes: as mulheres, o jogo e a mesa. Era geralmente estimado pela fidalguia suprema com que despedia as amantes decaídas da sua real graça e com que perdia somas consideráveis ao lansquenet e à roleta; pelo seu inalterável bom humor, e, enfim, pela perfeita cortesia de gentleman com que a todos tratava.

Carlos Oliva fez uma festa espantosa a Paulino, a quem fora sempre muito afeiçoado. Foi um espoucar de Ohs! E um chover de abraços que atordoaram o médico. No fim do espetáculo saíram os três: Paulino, Julião e Carlos Oliva. Este convidou os amigos para cear; Julião escusou-se: tinha um doente gravíssimo e que precisava visitar ainda, apesar do adiantado da hora: e retirou-se de carro, combinando um encontro para o dia seguinte.

Então o boêmio perguntou ao amigo:

— E você homem para acompanhar-me?

— Isso depende de saber aonde.

— A um antro, à "gruta dos vícios".

— Isso deve ser ignóbil - ponderou Paulino.

— Ignóbil? É feérico, walkiriano, uma espécie de gruta azul do rei Luiz da Baviera.

— Imagino; mas recuso: vou deitar-me, descansar.

— Burguês infecto! - exclamou Oliva com grotesco desdém.

— Deitar-se na cama antes de erguer-se a aurora no horizonte! Antes dessa hora eu só admito que um homem se deite no colo nu de uma mulher boa. Vem daí, filisteu!

Paulino hesitava. Precisava acabar a carta para Fernando; só tinha 24 horas de vida: não podia perder tempo. Mas a idéia de voltar ao hotel e, no silêncio sinistro da noite, recomeçar a escrever a história do seu erro, do seu crime, da sua desgraça, repugnava-lhe invencivelmente. E, depois, talvez que o meio torpe, ao qual queria arrastá-lo aquele doido, lhe facilitasse o desapego da vida pelo nojo dela.

Acedeu; e, de braço dado ao amigo, foi, através das ruas escuras e silenciosas da Paulicéia, em demanda da "gruta dos vícios

Era um sobrado grande e velho no beco do Inferno, hoje travessa do Comércio, mesmo na esquina. Oliva bateu com os nós dos dedos de um modo especial: quatro pancadas, intervaladas da segunda à terceira. A porta abriu-se sem ruído; os dois homens deslizaram para dentro do corredor, iluminado por um bico de gás sem arandela, aceso ao alto da escada. Ouviam-se ruídos confusos de vozes de homens, risadas femininas e embates de copos e pratos.

Subiram, acompanhados pelo sujeito, zambro por sinal, que lhes viera abrir. Em uma sala quadrangular, de teto baixo, forrada a papel barato, ornada de cromos e gravuras reles, mal alumiada por alguns bicos de gás, homens e mulheres, abancados a mesas de pau, bebiam, comiam e conversavam. Várias dessas damas fumavam cigarros de papel em atitudes relaxadas, entremostrando os seios e as pernas. Algumas eram muito moças, e bonitas duas ou três. A primeira impressão era desagradável.

— Bem dizia eu: isto é ignóbil; parece uma taverna de marinheiros em Londres. Vamo-nos embora - disse Paulino, contrariado.

— Alto lá, cher maitre! - exclamou o companheiro. - E sempre arriscado julgar pelas primeiras impressões. Acompanha-me.

Foi direto a um balcão pequeno, onde tronejava uma mulher gorda, ainda frescalhona, de aspecto muito risonho, e que acolheu com um agitar de mão festivo a entrada do boêmio.

— Boa noite, minha boa senhora dona Felisberta Mercurina do Bom Conselho! - e o rapaz erguendo alto o feltro com a sinistra, apertava-lhe, todo curvo, com a destra os dedos grossos e úmidos. - Eu e este meu precioso amigo, mais viajado que o cólera-morbus, queremos passar agradavelmente este resto da noite no seu hospitaleiro tugúrio.

— Às ordens dos meus doutores, inteiramente às suas ordens. Que hão de querer? - perguntou a hoteleira com pronunciado acento piemontês.

— Ceia fina e mulheres frescas, o mais virgens que for possível.

— Vão ser imediatamente servidos.

— Olhe lá, tia Felisberta, que as damas sejam de fora...sabe?...

— Sossegue, doutor Oliva; o senhor é o freguês a quem sirvo com mais cuidado e boa vontade. Não é? - E deitou-lhe um olhar carregado de volúpia.

— Tem um rabicho-onça por mim esta sapaentanha - segredou Oliva ao ouvido do amigo.

— Acompanhe-me - disse a mulher, tomando de um prego um molho de chaves.

Levou-os por um corredor sombrio, cheirando a mofo e urina, até uma porta que abriu, e onde introduziu os dois moços.

Aceso o gás, viu-se um quarto espaçoso com uma cama larga, feita, e uma mesa redonda ao centro.

— Este é um dos quartos; o outro é aqui ao lado e comunica com este por aquela portinha.

— Eu conheço a topografia, tia Mercurina; - disse Oliva. - Mas diga-me: que donzelas nos vai servir?

— Olhe, seu doutor, como eu, além de ter todo o gosto em servir ao senhor, desejo obter a proteção do seu companheiro, vou buscar, eu mesma, as duas jóias melhores do meu cofre: para o senhor a sua predileta, a chinoca, e para o seu amigo uma rapariga que saiu ontem mesmo da companhia do marido, que a espancava: tem 17 anos e só esteve com o marido 11 meses É uma tetéia. Eu estava guardando-a para o comendador, sabe? Mas não importa; tenho muito gosto em cedê-la ao seu amigo.

— Muito bem, protetora dos famintos de toda espécie, vá lá buscar-nos essas houris... que se ingurgite, o que tiver de melhor. Olhe, diga-me cá, a lambe-me tudo está trabalhando? e esboçou sobre a mesa, com o dedo indicador, um gesto de rotação.

— Sim, senhor; e é o Teixeirão que está dando à bola.

— Vamos nós até lá? - Perguntou Oliva a Paulino.

Este respondeu-lhe encolhendo os ombros.

— Enquanto não chegam as deidades, vamos nos entretendo em largar a pele na roleta. É uma idéia genial. Vamos lá. Mas que isso não impeça, mamãe Vênus, que vossa mercê mande trazer-nos frios e champanha e vá buscar as nossas amadas.

— Sicuro, sicuro! - retorquiu, rindo, a mulheraça, saindo com açodamento.

Os dois amigos entravam pouco depois na sala da roleta, no segundo andar.