Flor de Sangue/I/XV

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Paulino tinha resolvido matar-se.

Quando o resolveu? Em que momento se lhe formou no cérebro essa idéia? Quando se transformou ela em volição, e esta em intenção deliberada? Não poderia dizê-lo, não o sabia. A idéia do suicídio surgiu-lhe no pensamento e dele assenhoreou-se, como um hóspede esperado, com o qual se conta, que entra e ocupa o aposento que se lhe havia preparado. Ele vira-a quando Corina recusou fugir com ele para a Europa, antes que Fernando chegasse.

A fuga era uma infâmia que decorria naturalmente, logicamente da primeira, do próprio adultério, e que encontraria atenuantes na presunção do muito amor, da paixão veemente que os unia no crime, de modo irresistível, e na estrepitosa publicidade, na escandalosa audácia com que, fugindo juntos, a confessavam e assumiam a responsabilidade do ato ilícito e das suas conseqüências.

Aquela recusa foi um jato súbito e copioso de luz no cérebro do médico e que o fez ver claramente coisas tremendas, ocultas na sombra até então. Dessas coisas, destacadas fortemente em arestas e contornos duros, na luz crua daquela revelação, as capitais eram - que Corina não o amava, que se lhe entregara como se entregaria a outro qualquer nas suas condições, como se havia de entregar, depois dele, a outros mais, por volubilidade de caráter e perversão moral, por um coquetismo pernicioso, produto da educação e do meio, a que o seu temperamento se adaptara perfeitamente; que ele, Paulino, era um homem desonrado, um infame vulgar, que, por lascívia grosseira, seduz e goza a mulher do amigo, aproveitando bem a sua ausência; e, por último, que devia matar-se.

E de todas essas coisas e outras que então descobriu foi essa última a que ficou, a que permaneceu, nítida, simples, assente. Não precisou discuti-la. Era evidente, irrecusável, boa, necessária como o sol.

Se Corina o amasse e o seguisse com cega obediência, ele a arrebataria ao marido à vista de toda a sociedade, francamente, audazmente, arrostando todas as conseqüências do seu ato, cuja infâmia o amor explicaria, se não justificasse.

Mas havia-se enganado: aquela mulher não o amava, não o preferia ao marido, não queria o amante senão na comodidade vil do adultério, na tepidez do ménage à trois. E esse erro dele era irreparável.

No abismo a que se havia precipitado, cego de paixão carnal, esperara sempre, embora vagamente, encontrar um arbusto resistente, uma ossatura de raiz descoberta, uma saliência de solo a que pudesse agarrar-se, em que pudesse salvar a honra e, portanto, a vida. Mas nada encontrara. Corina era uma adúltera vulgar, que, sensual e medrosa, preferindo tudo ao escândalo e aos incômodos da fuga, convidava-o covardemente às baixezas vilíssimas da traição cotidiana, de todos os instantes, sob o teto conjugal, medrando tranqüila à sombra da confiança do marido enganado. Que surpresa e que nojo! Só lhe restava um partido - matar-se.

Isso ele sentiu, isso viu repentinamente, de golpe, sem raciocinar, por uma espécie de instinto moral. Dir-se-ia que aquela resolução tremenda já a havia ele de há muito tomado e que ela apenas aguardava, completa e pronta, o momento de passar ao estado de fato.

Agora, encostado a um recanto do vagão, braços cruzados, olhos cerrados, aspecto calmo de viajante despreocupado, que a trepidação do trem adormece: agora, que segue rapidamente para a morte, como para uma estação terminal a que um dever urgente e iniludível o impelisse, é que ele reconhece, com espanto, que não amava aquela mulher encantadora senão com a carne, sensualmente, fisicamente apenas. E a prova mais convincente é que, depois de desenganado acerca dos sentimentos dela por ele, depois mesmo de haver resolvido matar-se, ainda a beijou, ainda lhe pediu e passou com ela uma noite de amor, a derradeira, que não foi das menos ardentes.

Não, se a amasse com a alma, com o coração, espiritualmente, não teria forças nem desejos de gozar-lhe o corpo, de cevar os seus sentidos insaciáveis nas suas carnes deliciosas de calor, de perfume e de maciez; porque não se vê partir-se um ideal, não se pode vê-lo desfazer-se em pó sem um arrancamento doloroso de toda a alma, sem se sentir que esta se partiu igualmente, que abriu água e vai afundar-se em breve no pélago sombrio do desespero, no silêncio do desamparo.

Amor deve ser algo de mais sublime, de mais casto e de mais doloroso.

O que fora então aquilo? Paixão, embriaguez dos sentidos, loucura erótica, amor carnal... tudo menos esse sentimento misto espiritual e corporal, a um tempo ideal e sensual, voluptuoso e casto, todo de alma e de beijos, em que dois seres de sexos diferentes se encontram, se fundem, se completam e se unificam; esse sentimento que ele não experimentara ainda, mas que compreendia perfeitamente e sabia existir tão real e verdadeiro como nas ficções e nas tradições clássicas e românticas de Romeu e Julieta, de Leandro e Hero, de Heloisa e Abelíardo, de Paulo e Virgínia, de Werther e Carlota, de Laura e Petrarca, de Paolo e Francesca...

A imaginação alindava, embrincava, de certo, essas ligações, tocando-as delicadamente de sonho; mas não lhes alterava a natureza, não lhes aumentava a intensidade afetiva. Ele sentia-se capaz de iguais extremos, de emparelhar com esses amantes célebres na pujança e na dedicação do amor, de amar com sublimidade igual.

Mas o acaso fê-lo perder-se por um desvio, afastou-o da estrada real da felicidade para levá-lo a colher num moital de atalho uma bela flor venenosa, a cujo perfume anestesiante adormeceu embriagado, crendo-se feliz.

E então uma idéia amarga lhe veio, que lhe debuchou nos lábios a sombra de um sorriso dolorido: Ia matar-se por uma mulher que não amava? Mas logo refletiu melhor e retificou o pensamento molesto: não era por ela que se matava; mas por ele próprio, porque se havia desonrado fazendo a desonra do seu melhor amigo, do seu protetor, do homem que tinha por ele o amor e a confiança de um pai, e porque não queria sobreviver a essas duas desonras.

E quão melhor não era isso não o amando Corina que se ela o amasse? Ah! Se ela o amasse, e se ele a amasse, como lhe seria penoso, difícil, torturante ter de matar-se! Que idéia medonha, sobre-humana de horridez, e da morte em pleno e perfeito amor! Mas, felizmente, não se amavam; desejaram-se, desejavam-se talvez ainda, na atração mútua dos seus temperamentos tropicais, e era tudo...

Ele podia morrer sem mágoa, sem pena, sem desespero; triste, de certo, da tristeza insondável e lúgubre dos grandes desiludidos, mas sereno e até, relativamente, satisfeito - satisfeito por cumprir o dever e não prejudicar a ninguém, cumprindo-o.

Caminhava para o suicídio serenamente, com a resignação corajosa do soldado que, prisioneiro do inimigo implacável, vai ser passado pelas armas e se adianta para o lugar da execução sem um gesto de súplica, sem um olhar de pavor.

No fim de algum tempo as idéias baralharam-se, o cérebro conturbou-se suavemente, as pálpebras, fechadas mas leves até então, colaram-se pesadas de sono... Adormeceu.

Como lhe pareceu longa e fastidiosa essa viagem! A longura natural do trajeto era aumentada pelas demoras, interrupções e desarranjos causados pelo péssimo serviço da estrada.

Paulino, acostumado a viajar com todo o conforto e todas as comodidades, sofreu horrivelmente nas 13 horas intermináveis que durou a viagem. Tudo o irritava, tudo lhe bulia com os nervos. Se deixava as janelas abertas, sufocavam-no a fumaça e a poeira de carvão da máquina; se as fechava, abafava de calor. A trepidação era insuportável; às vezes o carro solavancava como uma caleça nas nossas esburacadas ruas; o trem ia atopetado, não havia um lugar em nenhum dos carros.

No banco em que se sentara Paulino e no que lhe era fronteiro aboletara-se parte de uma família paulista, de regresso para Pindamonhangaba o marido, a mulher e uma filha, mocinha; o resto da ninhada e os criados iam em bancos próximos.

Que companheiros! Não estavam quietos um instante. O chefe da família era um velhote vermelhaço e grisalho, de maus dentes, sempre exibidos por largos risos apalermados, chapéu do Chile, roupa de brim pardo, guarda-pó, fumando constantemente cigarros de palha e cuspinhando a miúdo para todos os lados.

A mulher uma boa senhora, copiosa de carnes, amolentada e aluída numa flacidez bamba de tecidos e enxúndias, falando muito arrastado e repreendendo de quando em quando algum dos filhos: "Tá quieto, Zidoro! Sussega, Minervina! Que modos são esses, Zezê?

A mocinha, que devia ter seus 18 anos, e não era feia, tinha uns ares muito afetados; gestos, olhares, sorrisos, tudo era estudado e intencional, e, reparando-se um pouco, verificava-se que, além do pó-de-arroz, também empregava o carmim para realce dos seus encantos. Ia lendo as Sinfonias de Raimundo Correia - o que a Paulino foi fácil reconhecer, porque ela abria e fechava o livro de modo a mostra-lhe o que era. E que olhadelas lânguidas lhe atirava!

O pai puxou logo conversa com ele e, por mais que o médico se mostrasse rebarbativo à palestra, obrigou-o a responder a perguntas e fazer observações em complemento ou réplica às dele. Era um tipo de homem simplório, ignorante mas sensato, bonacheirão, inculto, mas fino e manhoso sob todas as aparências de palerma. Perguntou ao médico quem era, para onde ia, que ia fazer; e isso era natural, porque antes lhe disse como se chamava, onde tinha fazenda, quantos filhos tinha etc.

Pouco depois discursava sobre política. Confessava que fora a Abolição que o fizera republicano; mas que o era sincero e de coração, que pegaria em armas para combater a restauração etc.

Paulino, a princípio, teve vontade de fugir daquele carro e procurar em outro um cantinho mais sossegado; mas depois foi se interessando por aquele sujeito e aquela família e distraiu-se observando-os.

Não pôde descer para almoçar no hotel da Barra do Pirai porque o coronel Firmino Vereza tal era o nome fazendeiro - não o deixou, obrigando-o a partilhar da matalotagem que levava e continha um almoço lauto - mortadela, fiambre, galinha assada, croquetes ovos duros, queijo, frutas, doces e ótimo vinho. No fim de um quarto de hora os bancos e o chão estavam que era um lástima: tudo sujo.

Mas a verdade é que Paulino, enfraquecido pela sua última noite de amor, comeu com apetite e distraiu-se insensivelmente das idéias sombrias que lhe pesavam no cérebro. A viagem para lá de Cachoeira, conquanto ainda mais incômoda, pareceu-lhe mais divertida, mais interessante, pelo menos, por causa das várias cidades em que o trem vai fazendo escalas e cujo aspecto e costumes procurava observar nos poucos minutos de parada.

Chegou à capital paulista já noite fechada e foi com um grande suspiro de alívio que, meia hora depois, desceu do carro á porta do Grande Hotel, às sete horas e meia saía para a rua, lavado, corretamente vestido, sentindo apenas algum peso na cabeça.

Estava perfeitamente calmo. Foi a uma botica próxima ao hotel, mandou preparar uma poção calmante, que deviam enviar-lhe para o hotel, quarto n9 35 e saiu em procura de uma papelaria. Encontrou uma na rua Quinze de Novembro, entrou, comprou papel almaço, alguns cadernos de papel de carta, envelopes, um botezinho de tinta, uma caneta, algumas penas, um pau de lacre e, tendo enviado isso para o hotel pelo Alfred, que o acompanhara e a quem dispensou nessa ocasião os serviços até o dia seguinte tomou um bonde da Ponte Grande e foi até ao fim da linha, gozando o esplêndido passeio, pensando, cismando, suavemente melancolizado, com um vago desejo mórbido de chorar muito, muito, até desafogar todos os pesadumes, até lavar a alma num batismo lustral de lágrimas. E fumava, fumava...

Na Ponte Grande um grupo de estudantes e raparigas patuscava ruidosamente; trocavam-se abraços, estalavam beijos, diziam-se obscenidades. Paulino voltou no mesmo bonde, mais entristecido ainda por aquele espetáculo.

Eram dez horas da noite quando entrou no quarto. Sobre a mesa estavam o vidro da poção e os objetos que comprara. O aposento, que era no segundo andar, estava regularmente mobiliado e oferecia razoável conforto. Paulino abriu a janela, contemplou por alguns minutos o panorama noturno da cidade; depois fez a sua toalete para dormir e sentou-se à mesa.

Preparou tudo para escrever; mas ergueu-se e entrou a passear no quarto, acabando o quinto charuto, coordenando idéias, preparando um plano. Queria deixar tudo previsto, disposto, ordenado. Tinha que fazer testamento, que deixar instruções para a distribuição de seus bens como também para seu enterro e funeral.

E Fernando? Não lhe devia escrever? Mas para dizer-lhe o que? a verdadeira causa do suicídio? De repente, apenas repelira tal idéia, por insensata, viu claramente que ela era, ao contrário, mais que razoável - necessária, indispensável.

"Devo dizer-lhe, sim, a razão por que me mato, porque sem isso a minha morte seria um sacrifício inútil. Por que me mato eu? Por tédio e cansaço da vida? Não; por desgostos pessoais? não. Mato-me somente porque, tendo cometido um crime irreparável, que só é punível e resgatável com a morte, e, sendo um homem de honra e verdade, devo punir o criminoso e resgatar o delito; Mas ambos esses. atos perderiam completamente o seu valor moral, ficariam incompletos, seriam quase inúteis se Fernando os ignorasse, porque ficaria acreditando na minha estima, na minha lealdade, na minha honradez; e, por isso, dedicaria à minha memória um culto de veneração e saudade que ela não merece. Para que a minha morte seja o que eu quero e é necessário que seja, Fernando deve conhecer-lhe as causas. Eu seria um desleal ocultando-lhas, porque lhe usurparia postumamente sentimentos de que me tornei indigno. Formoso é pois, que lhe deixei eu uma carta revelando tudo. E esta a primeira coisa que tenho a fazer. Não percamos tempo. Mãos à obra!"

Sentou-se à mesa, preparou tudo e quando pegou da pena exclamou, como que insensivelmente: "Pobre Fernando!" Ouvindo estas palavras, como se viesse de outro, encolheu o braço que se estendia para mergulhar a pena no tinteiro, e fixou absortamente os olhos na parede. Aquelas palavras "Pobre Fernando!" lembravam-lhe de súbito que a sua carta terrível ia matar a felicidade do amigo, afogar-lhe a vida calma e contente na vergonha, na dor e no desengano mortal.

Fernando, que amava a mulher a seu modo, mas que a amava deveras, que acreditava cegamente na sua fidelidade, como todos os maridos simples e confiantes que amam as mulheres, sabendo-se enganado, sabendo-a adúltera, pérfida, poluída, sofreria a maior dor humana e, com o seu gênio violento e o seu temperamento impulsivo, mataria a mulher ou suicidar-se-ia, ou talvez ambas as coisas. "Não; se o meu dever é matar-me, também é meu dever respeitar a felicidade de Fernando e poupar-lhe a vida. Como então confessar-lhe que..."

Ergueu-se, passeou agitadamente pelo quarto, volvendo e resolvendo aquele tremendo caso moral por todos os seus lados, examinando-o em todos os aspectos. Finalmente, após longas e dolorosas meditações, achou a solução que conciliava ambos os deveres.

Em vários sinos soavam espaçada e melancolicamente as 12 badaladas da meia-noite. Sentou-se de novo à mesa, mas desta vez com resolução, obedecendo com firmeza a um plano bem determinado. Escreveu febrilmente, sem outras interrupções que as necessárias para reacender o cigarro ou o charuto, insensível à brisa fresca da madrugada que invadia o quarto, agitando brandamente a chama da vela; às quatro e meia extinguia-se esta lentamente, em vascas bruscas, de lampejos tristes.

Paulino tomou uma colher da poção, soprou o último alento luminoso da vela, e enfiou-se nas roupas da cama. O efeito do narcótico foi pronto.