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Flor de Sangue/I/XIV

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No dia seguinte, às nove horas, Paulino, tendo-se recolhido às quatro da madrugada, foi saber, como era natural em um médico solicito, como a doente passara a noite.

Estava deitada, com os olhos cerrados; mas o cheiro de águas de toucador que enchia o quarto, já bastante claro, indicava que Corina já havia feito a sua primeira toalete, o que também se reconhecia no alinho dos cabelos e na frescura da pele: preparara-se para recebê-lo.

Maurícia, que introduzira o médico, ainda se conservava no aposento. Com a onda mais forte de luz que saltou de uma janela descerrada pela criada, Corina abriu os olhos e mostrou uma ligeira surpresa: vendo o médico; mas o que neles havia realmente não era surpresa: era alegria, alegria! Uma alegria infinita, inefável, completa capaz de todas as loucuras.

— Como passou a noite a minha gentil doente? - e estendeu-lhe a mão.

— Melhor, doutor, muito melhor - respondeu ela com uma voz propositalmente enfraquecida, mas que lhe saía de um sorriso delicioso, todo pérolas e rosas; e, dissimuladamente, para que Maurícia não visse, estreitou e cobriu de beijos a mão do médico. Dai a momentos a criada saía para ir buscar o primeiro almoço.

Paulino sentou-se no leito e houve, logo, para abrir o dia, um renhido tiroteio de beijos.

— Sabes? Eu tenho um plano soberbo para hoje - disse Corina. - Ouve. Continuo doente e por isso não saio do quarto; e tu ficas para tratar-me. Almoçaremos e jantaremos aqui, em tète-a-tète... Sim? Sim? - E, segurando-o pelas espáduas, beijava-lhe em cheio, a plenos lábios, os olhos e a boca, inebriando-o, seduzindo-o.

— Mas, meu amor, todo o dia não posso... E os meus clientes? E o consultório?

— E se tu estivesses doente? Hem? Não os deixavas do mesmo modo?

— Mas não estou; e o meu dever é...

— O teu dever é amar-me; entendeste? - e beijava-o sempre, sofregamente.

Mas Paulino defendia-se; apesar da sua profunda e irremediável ebriez, não podia conformar-se à idéia de faltar aos seus deveres.

— Olha, meu amor, não vês que daria muito na vista passar o dia inteiro no teu quarto?

Corina refletiu um momento, e volveu:

— Tens razão; precisamos ter toda a cautela. Modifico o meu plano. Almoçamos juntos; depois desces, corres os teus doentes e voltas. Jantamos; às nove horas sai para o belvedere e voltas às 11, sem que te vejam, para os meus braços. Desta forma ficarão salvas as aparências.

Paulino aceitou, sem nada objetar. Era singular a facilidade com que começava a sua nova existência de embustes e dissimulações, sem experimentar repugnância pelo papel que lhe cabia desempenhar, por seu turno, na velha comédia do adultério.

Estava alegre, expansivo, leve; sentia-se um homem novo, forte, são, ávido de vida. Tinha a sensação geral de uma estréia.

Como que nascia moralmente, quase que fisicamente também. Dir-se-ia que com a posse da mulher amada o seu corpo adquirira a parte que lhe faltava para completar-se, e a sua alma a faculdade única que ainda não tinha. Aquele amor era uma integração. Começava a sentir a sua razão de ser na existência do universo; a sua presença sobre a Terra e a sua função na humanidade explicavam-se. Amava e era amado! Esse fato definia o indefinível, positivava o incognoscível; explicava tudo - ele, o mundo, a vida...

As emoções morais e o dispêndio nervoso da noite anterior, longe de fatigá-lo, haviam-no tonificado, comunicando-lhe ao sangue uma frescura, aos músculos um vigor e aos nervos uma paz que não conhecera nunca. Sentia-se viver e sentia-o com um prazer inefável.

O almoço em tète-á-tète, servido sobre uma pequena mesa, ali mesmo, no aposento, foi uma delícia.

As poucas horas que passou na cidade pareceram-lhe intermináveis. Voltou ansioso, trazendo à sua amada as mais belas violetas que pôde encontrar. Para não despertar suspeitas, jantaram na sala, mas ainda assim em perfeita intimidade. Tocavam-se com os pés, sob a mesa, quando havia algum criado, e beijavam-se mutuamente nas mãos, quando estavam sós. Tinham necessidade de tocar-se, de sentir-se unidos fisicamente, a todo instante.

Paulino não tinha outro pensamento senão aquela mulher; mas tinha-o exclusivo e absorvente, não lhe deixando tempo para nenhuma outra idéia. Era uma perfeita obsessão. Quando a não via, desejava-a com impaciência iniludível, em uma ânsia insuportável; e quando lhe estava junto precisava dizer-lhe, a todos os instantes e por todos os modos, que a amava que a amava desde o primeiro dia em que a vira. E repetia-lhe a miúdo, seriamente, com voz grave:

— Olha, Corina, cedendo a este amor culpado, a primeira coisa que fiz foi renunciar à vida. Ela pertence-te; dei-ta com o meu primeiro beijo. No dia em que o teu amor e a minha vida tiverem de separar-se - mato-me porque o teu amor e a minha vida formam um ser único... Ouviste bem?

Corina, porém, acolhia essas palavras sérias, quase tristes, com o seu ar inquieto de borboleta, sem lhes ponderar o sentido, toda entregue à sua felicidade física, sentindo o seu temperamento cálido e sensual satisfeito amplamente.

Com o fim de afastar suspeitas, encontravam-se fora de casa, para se possuírem em liberdade. A boa dona Miquelina foi aproveitada. Era na sua alcova pobre, na sua velha cama poluída por amores de ocasião e pelo dinheiro do aluguel, que se amavam mais vezes. Mas, por fim, à alma caprichosa e à fantasia trêfega de Corina aquela pobreza torpe repugnou; pediu ao amante coisa melhor, mais digna deles. Paulino, que só queria a ela, ao seu corpo olímpico, pouco lhe importando a moldura, e a quem aquele retiro calmo e seguro encantava, não cedeu sem pesar á vontade de Corina. Propôs-lhe passarem uma noite no Jardim Botânico, num dos pavilhões do Campesino, o famoso restaurante dos encontros galantes.

Ela diria em casa que ia dormir com a madrinha; ele avisaria o Alfred que passaria a noite chez Madelon e, assim, teriam toda a tarde e noite para se amarem livremente, em sossego, em pleno campo. Corina aceitou a idéia com palmas e gritinhos de alegria e pagou-lha com beijos sem conta.

Às cinco horas da tarde Paulino entrava no largo do Machado em um cupê de estores baixados, no qual o esperava Corina; entrou rapidamente, batendo com a portinhola, com cuidado. E o cupê misterioso rodou velozmente para o Jardim. à porta deste apearam-se; e Paulino despediu o carro, dizendo ao cocheiro que voltasse a buscá-los no dia seguinte às oito horas da manhã, devendo esperá-los no mesmo ponto.

Entraram; passearam longamente, ela apoiada com languidez ao braço dele, amolentados ambos pela tristeza da hora; e os seus vultos unidos perdiam-se longe, pequeninos e nítidos, no fim da rua admirável de palmeiras, inteiramente deserta. Mas anoitecia e o apetite apertava. Retrocederam, entraram no jardinete do Campesino e, tendo Paulino mandado servir o jantar, foram esperá-lo no pequeno pavilhão alugado para aquele dia.

Corina, com os seus hábitos de coquetismo e de asseio, havia arrumado e levado numa malinha de couro da Rússia e fechos de níquel um necessário de toalete e alguns arranjos para a noite. Entrando no quarto, cujas quatro janelas estavam abertas, depôs a maleta, o leque e a sombrinha sobre a cômoda, em frente à cama larga, feita de fresco, com o seu cortinado de filó, muito encardido das dejeções das moscas, enfeitado com uns laços de fita desbotados.

A mesa para o jantar estava pronta; sobre a toalha branca dois talheres, duas baterias de copos de várias cores, e os hors d'oeuvre - azeitonas brancas enormes, manteiga fresca, anchois, rabanetes.

— Ah! Como se está bem aqui! Como é chique! Isto sim; não é como aquela pocilga da Miquelina.

Daí a pouco entrava um garçom corretamente encasacado. Foi uma lembrança feliz de Paulino a casaca e a gravata branca do garçom, porque Corina ficou encantada com esse detalhe chique, pensando logo em Paris.

O jantar, cujo menu Paulino escolhera com arte, foi um encanto. Corina estava radiante, e nos seus lábios róseos sumia-se facilmente, entre risos, o âmbar líquido do champanha, que os lábios de Paulino vinham às vezes disputar-lhe, sorvendo-o avidamente.

Findo o jantar e para que o criado retirasse o serviço de mesa e arrumasse o quarto, foram dar um passeio pela rua deserta ele com o charuto aceso, ela, meio aturdida pelos vinhos, com um quebranto lânguido no corpo e uma alegria excessiva na alma, rindo a propósito de tudo e obrigando Paulino a parar, para beijá-lo ali, ao fresco da noite silenciosa, à luz amortecida dos astros. Ao fim de meia hora voltaram.

O quarto estava em ordem, apresentando um aspecto de limpeza na banalidade dos seus velhos trastes de mogno. No chão, ao lado do jarro e do balde de folha, que completavam o serviço de porcelana do toucador, havia um bidê de folha pintada: muitas toalhas, num cabide, já puídas do uso, cheirando a sabão ordinário. Sobre o tapete esfarripado uma escarradeira de louça partida. Um bafio de mofo; o gás ardia com uma chama amarelada e piscante nos dois globos poentos das arandelas.

— Que luz forte! - dissera Corina, ao entrar.

Paulino fechou um dos bicos, deu volta à chave da porta, encostou as venezianas e, voltando-se para Corina, que se havia sentado, fatigada, numa cadeira, exclamou:

— Pronto. Podemos deitar-nos.

— Tão cedo! - exclamou Corina relanceando o olhar pelo quarto, e acrescentou:

— Tenho vergonha de me despir à tua vista... Tenho os meus arranjos a fazer antes de deitar-me e falta-me tanta coisa! Felizmente eu trouxe algumas.

Tirou da maleta o necessário de toalete e deste - escovas, sabonete, um espelho, pó de arroz, um vidro de sais, alfinetes, grampos; tirou depois uma camisa de seda cor-de-rosa, de cabeção e ombreiras de renda, um par de meias pretas e outros objetos miúdos.

Paulino ofereceu-se para femme de chambre; ela aceitou, com a condição de que ele sairia por alguns minutos quando a tivesse despido. E ele, com carinho e sem jeito, foi despojando-a aos poucos das roupas, desacolchetando, desabotoando, desamarrando; depois ajoelhou-se para tirar-lhe as meias e cobrir-lhe de beijos os pés. Mas a última saia caíra e Corina fê-lo sair à força.

Quando ele pôde voltar, ao fim de dez minutos, encontrou-a saltando para cima da cama, com a camisa rósea de seda apenas sobre o corpo, dando um gritinho de pudor faceiro. O ar estava impregnado de cheiros finos e capitosos, o chão molhado, uma toalha caída.

Paulino atirou-se para a moça, e, tomando-a nos braços, fê-la descer da cama. Estava louco de paixão; as mãos ardiam-lhe em febre; os lábios estavam entreabertos, secos; os olhos, úmidos de desejo, pareciam maiores... Passou as mãos rapidamente nas ombreiras de renda da camisa e, puxando-a para baixo, desnudou as formas admiráveis da amante. Corina deu um grito, e, interdita, ia a saltar novamente para a cama, para ocultar a nudez nos lençóis, quando viu Paulino ajoelhar-se diante dela, suplicando-lhe piedade com as mãos postas. Ficou, sorriu-se, desvanecida por aquela adoração, e, endireitando o corpo, empinando os seios pequenos e firmes, vitoriosa na sua nudez de ninfa em meio de um bosque nemoroso, exclamou para o amante, cerrando os olhos languidamente:

— Sou tua, tua! Aqui me tens!

E esses dias de ébriez e essas noites de loucura sucediam-se com uma rapidez extraordinária, como simples minutos, assinalados de episódios novos, de incidentes encantadores.

Uma noite Corina exigiu de Paulino recebê-la no belvedere. O médico mandou o criado fazer uma comissão qualquer fora da cidade. às 11 horas, Corina chegava, envolvida numa mantilha preta e subia as escadas, encantada com aquele cenário romanesco. Foi uma das noites mais agradáveis dos seus amores ocultos.

Passaram-se nesse embevecimento uma semana, duas, três... Fernando não escrevia; telegrafava, apenas, de vez em quando, anunciando à esposa estar de saúde. Corina, por uma intuição sutil, aliás comum nas mulheres, não falava desses telegramas ao amante e respondia logo ao marido para tranqüilizá-lo assegurando-lhe não haver novidade em casa.

Nenhuma referência direta faziam a Fernando nas suas conversas, como se a sua ausência fosse definitiva. Uma vez, apenas, em que o seu nome escapou aos lábios dela, Paulino disse com voz um pouco trêmula:

— Não deve estar longe o dia da volta...

Corina disse que não, que ele se demoraria ainda. Mas o médico recebeu dele também um telegrama anunciando o vapor em que embarcaria e soube, assim, do dia em que o amigo devia chegar.

Um frenesi apoderou-se dele, então. Aproveitou avidamente os últimos dias, procurando não perder uma hora da companhia da amante devorando-a de carícias delirantes, quase brutais, como esses infelizes que, sabendo-se destinados a um fim próximo, aproveitam os últimos dias de vida para gozar sofregamente.

Na penúltima noite - Fernando devia chegar dali a dois dias -, Paulino, tendo a amante seminua sobre os joelhos, disse-lhe, com voz firme porém melancólica e uma sombra pesando-lhe sobre a fronte:

— Fernando chega depois de amanhã. Precisamos assentar uma decisão sobre o que tenhamos de fazer. Que resolves-te?

— A respeito de que? - inquiriu Corina com ar admirado.

— A respeito da nossa situação.

— Nada; espero que ele chegue.

— Ah! - fez Paulino; e um ligeiro sorriso amargo acompanhou essa exclamativa seca. - Pois, minha querida, é preciso tomar um partido qualquer. Eu não posso apertar nunca mais a mão desse homem; creio que nem mesmo poderia encará-lo. Ele é senhor da minha vida e receio muito dizer-lho e entregar-lha, logo que ele chegue. Parece que só há uma coisa a fazer antes desse dia.

— Qual? - perguntou Corina, com um receio palpitante nos olhos.

— Partirmos para muito longe, para a Europa, deixando-lhe numa carta a confissão do nosso crime.

— Isso não! acudiu Corina.

— Por quê?

— Porque eu ficaria desonrada; porque seria um escândalo medonho! Porque as nossas relações ficariam públicas e meu nome coberto de lama. E fugir para que? Se tivermos cautela bastante, Fernando, com a confiança absoluta que deposita em ti, não suspeitará nunca dos nossos amores. E, mais tarde, faremos todos três uma viagem à Europa. Ah! Como seria bom! Como nos divertiríamos!

Paulino ouvia-a pensativo e em silêncio. Por fim, perguntou-lhe ainda:

— E então essa a tua resposta? Não queres fugir comigo amanhã?

— Oh! Filho, para que? Estás louco? - respondeu ela com um sincero espanto na voz e no rosto. E acrescentou:

— Esse golpe mataria Fernando. Tu mesmo me disseste que qualquer emoção forte pode acabar com ele. Seria mais um crime, e inútil.

Paulino, que empalidecera ouvindo essas palavras, fechou a conversa a tal respeito com estas poucas frases, ditas num tom de quem acaba de tomar uma decisão inabalável, que não confessa:

— Tens razão. O que eu te propus era insensato: perdoa-me.

Toda a manhã e parte da tarde do dia seguinte passou-as Paulino arrumando as malas, auxiliado por Alfred, a quem comunicou, obrigando-o a jurar segredo, que iam partir para a Europa, por Santos, mas depois de alguns dias de estada em São Paulo.

Alfred recebeu a notícia com uma satisfação vivíssima: ia pisar de novo o asfalto do seu querido bulevar! Ia rever o Sena, o arco de triunfo da Estrela, a coluna Vendôme, o Pont Neufi Ia beijar de novo a sua querida Ninette, que deixara femme de chambre de uma atriz do Vaudeville!

— Saperlipopette! Que je suis content! - exclamava ele, arrumando com arte e cuidado extremo as roupas do amo.

Paulino, ponderando as dificuldades de ocultar a Corina e aos fâmulos a sua partida por causa da saída das malas, avisou àquela que ia passar uns dias em São Paulo, para ir se afazendo aos poucos à idéia de ver Fernando e de continuar a morar ali. Depois de 15 ou 20 dias voltaria, e o seus amores continuariam, ocultos e felizes, como desejava e propunha a amante - prometeu-lhe. Ela acreditou-o.

Para que Fernando não estranhasse aquela partida súbita, exatamente no dia da sua chegada, deixou Paulino a Corina a seguinte carta: "Dona Sinhá. Um chamado urgente e a que não posso esquivar-me obriga-me a partir amanhã para São Paulo, onde pouco me demorarei. Peço desculpar-me junto de Fernando, a quem abraço cordialmente em espírito. Faço-lhe esta comunicação por este meio e não verbalmente visto o adiantado da hora em que recebi o chamado e não querer incomodá-la tão tarde. Paulino."

A última noite passou-a o médico com a amante no quarto desta; às três horas da madrugada voltou para o belvedere, onde, com grande surpresa, encontrou já desperto o criado, que não pôde reprimir um sorriso malicioso vendo o amo recolher-se àquela hora.

Três horas depois, enquanto Corina dormia profundamente, prostrada de fadiga, sonhando sonhos cor-de-rosa, Paulino, encolhido a um canto de vagão, com os braços cruzados e sombrio o aspecto, seguia para a capital paulista.