Flor de Sangue/I/XIII

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Havia três dias que Fernando partira para o Rio da Prata com o fim de fazer contratos com os principais criadores para os fornecimentos necessários à sua grande empresa de introdução e corte de gado platino no Rio de Janeiro e de colocar nas praças de Montevidéu e Buenos Aires a parte a elas reservada do capital da companhia. Era um negócio gigantesco, no qual esperava o arrojado industrial ganhar rios de ouro.

Dona Sinhá - a quem aliás aquela viagem tentava, segundo dizia - não acompanhou o marido aterrorizada com a passagem do mar, certa de que enjoaria atrozmente. Fernando não insistiu no convite. Ia a negócios e não a passeio, e por isso talvez não pudesse proporcionar à esposa todas as diversões e recreios das duas capitais sul-americanas, explicava. A verdade é que desejava viajar escoteiro, sem os grandes embaraços que traz a companhia de uma senhora; dessa forma, estaria mais livre para o trabalho como para o prazer.

Partia tranqüilo, porque Paulino prometera olhar-lhe pela casa e pela família durante a ausência, que não devia passar de 30 dias.

O médico, quando o amigo, à mesa do jantar, lhe comunicou a notícia da viagem e lhe fez aquele pedido, recebeu um choque tão forte que o garfo lhe caiu dos dedos sobre a borda do prato. E pensou logo, frio de medo, no tal demônio escarninho que às ocultas se divertia em preparar e conduzir tranqüilamente a obra da sua perdição.

Esteve para escusar-se, para alegar impossibilidade, para inventar uma viagem súbita, qualquer coisa... Mas compreendeu logo que seria inútil, porque Fernando havia de insistir até conseguir resolvê-lo a ficar em casa até o seu regresso. Calou-se, portanto, resignado, invadido de um terror indizível, acabrunhante.

Corina, em cujos olhos passara um fugaz lampejo de júbilo, disse apenas ao marido, com um sorriso:

— Estava eu bem servida se contasse com a companhia dele, bem sabes que pouco para em casa: a sua clínica não lhe dá tempo para isso, sobretudo a do belo sexo. Mas conto com a companhia de mamãe, que não me deixará enquanto durar a tua viagem.

E voltando-se para a viúva:

— Não é verdade, mamãe?

— Talvez... - respondeu a viúva, limpando com cuidado os lábios vermelhos, no guardanapo - se essa viagem não for muito longa, porque eu, afinal, preciso voltar para minha casa.

Desde a missa de sétimo dia que a viúva do conselheiro Prestes estava em casa da afilhada para fugir à fúnebre solidão da sua, povoada pelas lembranças dolorosas do marido; ia isso já em dez dias. No seu rosto gorducho nenhum vestígio mais da grande dor recente, e o preto ia-lhe bem.

A idéia de que Corina não ficava sozinha tranqüilizou bastante a Paulino, sem deixar, todavia, e sem que ele soubesse por que, de contrariá-lo um pouco.

Encantadores aqueles três primeiros dias da ausência de Fernando. Chiquita era uma prosa admirável; tinha uma grande verve, estava constantemente alegre e sabia infinitas histórias, casos, anedotas de pessoas conhecidas e da corte da ex-imperatriz, de quem tivera a alta honra de ser dama de honor. Conversava como um rapaz, sem pruderies, abordando sem temor e com rara habilidade os assuntos mais escabrosos. Lera todos os livros eróticos famosos e mesmo alguns mais que de simples amor: de pornografia galante.

Na situação de Paulino e de Corina não podia haver companhia mais perigosa e terrível que a da Chiquita Prestes: era uma espécie de afrodisíaco moral, insinuante, perfidamente suave, mesmo porque ela não conversava de outra coisa senão de amor e de amores. Devia ser de uma sensaboria mortal nas conversas e reuniões do Paço, onde não podia conversar do assunto único de que entendia e gostava, a não ser que houvesse verdade nos antigos e tenazes boatos de relações da camarista com alguém, porque, nesse caso, encontraria ela no próprio Paço ensejo de exercer a sua eloqüência especial.

"Nesta vida só há uma coisa boa e real, meus filhos: é o amor", repetia freqüentemente aos seus dois interlocutores, que a não contradiziam.

Mas as noites eram ainda mais agradáveis quando também estava Santinha. Pode-se imaginar facilmente a frescura e o picante dessas confabulações. Eram continuamente pontuadas de gritinhos e exclamações de espanto e cortadas de risos demorados, principalmente quando o médico se afastava para qualquer coisa, porque então contavam-se episódios ou faziam-se comentários que na sua presença o pudor obrigava a calar.

Com a sua grande prática e a sua perspicácia em tal matéria, percebera a viúva de há muito que havia qualquer coisa entre a afilhada e o médico, e logo no primeiro dia que ali passou pôde avaliar o grau de adiantamento dessa mútua inclinação. Nada deixou perceber da sua descoberta, mas resolveu não atrapalhá-los. Eram moços, fortes, bonitos e amavam-se: que se arranjassem! Não seria ela quem o impediria. Ora! Não há coisa melhor na vida! O marido? Que tinha lá isso? O que se não sabe não existe e quem não goza é tolo. Ela gozara o quanto pudera e não se considerava ainda nenhum peixe podre. Por que havia então de impedir que os outros fizessem o mesmo? Ao contrário, havia de favorecer aquele casal de pombos no que lhe fosse possível.

Tal era a moral dessa matrona e tal fora a resolução por ela tomada em relação ao romance amoroso que a seus olhos se desenrolava.

Assim, pois, a sua presença, longe de ser um estorvo, era um estimulo - mais um meio inventado pelo famoso diabrete invisível para perdê-lo, pensaria Paulino, se já pensasse em alguma coisa que não fosse morrer de amor por aquela mulher deliciosa. Mas, como era instintivamente honesto e leal, não procurava encontrar ocasiões nem aproveitar as que a ação combinada e misteriosa do acaso e da viúva lhe proporcionava.

A sua situação era comparável à de um homem de sociedade que se excede a beber num dia de grande júbilo: sabe-se ébrio, não reage contra o seu estado, porém na inconsciência dos atos que pratica não lhe escapa uma palavra incoveniente, nem um gesto obsceno. Inteiramente embriagado de amor, excitado pelas conversas da viúva, guardava Paulino, entretanto, a sua correção de cavalheiro e não pensava em aproveitar-se da situação propícia em que se encontrava: o demoninho que o perseguia ainda tinha que suar um pouco mais os chavelhos para cantar vitória.

Quanto a Corina, o seu trabalho estava concluído: Santinha e Chiquita haviam tudo preparado; aquela, de longa data, com instigações diretas e conselhos provectos; esta com a educação que dera à filha adotiva e agora com a sua condescendente cumplicidade indireta.

Da última vez que a mulher do Viriato lá estivera, tinha-lhe dito:

— É agora, menina. Atira-lhe o grande golpe: é infalível, hás de ver.

Uma tarde, ao sentar-se à mesa para jantar, notou o médico a ausência da viúva, e como visse Corina servir a sopa perguntou por ela.

Fora a casa para arejá-la e reunir uns papéis do marido.

— E demora-se?

— Três ou quatro dias apenas - respondeu Corina, com um sorriso e um olhar em que louquejava uma alegria irreprimível.

O jantar correu frio; pouco falaram, constrangidos.

— Que falta nos faz mamãe, não é?

— Realmente, se ela é tão alegre, tão comunicativa!

— Uma verdadeira criança. Sempre a conheci assim.

Depois do jantar entretiveram-se, como de costume, em passear longamente na chácara, mas não de braço, desta vez, por conservar-se Paulino sempre um pouco afastado. à noite fizeram música; cantaram um dueto do Fausto, conversaram banalidades...

Paulino estava visivelmente agitado, trabalhado pelos seus nervos. Sentia-se febril, tinha arrepios estranhos e uma espécie de languidez invencível nos braços, uma vontade de espreguiçar-se, como em geral sucede quando a gente sente aproximar-se um grande acontecimento desejado, mas que se ignora como há de vir, que forma há de ter. Sentia-se mal.

Às nove horas Corina, que na volta da chácara se havia queixado de um começo de enxaqueca, disse-lhe que se sentia indisposta, com dor de cabeça. Paulino aconselhou-lhe que tomasse um pouco de chá de folhas de laranjeira com umas gotas de água de melissa e se recolhesse, e despediu-se, indo para o belvedere. Mas não se despiu nem pensou em deitar-se, dispensando Os serviços do Alfred.

Passeou pela sala, fumou, folheou revistas, livros, álbuns. Pensou em descer para a cidade, à toa. Mas lembrou-se de que Corina estava adoentada: era imprudente deixá-la só. E se fosse saber se estava melhor? Que idéia! Mas não sossegava.

Veio para a janela, buscando ver se havia luz no quarto da moça; mas o arvoredo encobria aquela parte da casa. Deixou-se estar debruçado, respirando o ar fresco da noite, muito sombria. O pequeno relógio despertador bateu 11 pancadas no quarto de dormir.

— Tão cedo ainda! - exclamou o médico, com desgosto.

Mas pareceu-lhe que uma luz vinha subindo do chalé para o belvedere; e não se enganava. Um vulto, com uma lanterna, chegava à porta.

— Quem é? - perguntou de cima, debruçando-se todo.

— Sou eu, seu doutor - respondeu a voz de Maurícia. - Vim chamar vosmecê, porque sinhazinha está muito incomodada.

— Já vou.

E Paulino desceu logo, apanhando um boné e esquecendo-se de fechar o bico ardente do gás. Maurícia precedia-o, alumiando. "Meu Deus, que será?", perguntava-se Paulino, muito angustiado, temendo alguma coisa grave. Entraram pela cozinha, sem ruído. A porta do quarto estava entreaberta, vendo-se dentro uma luz branda e dormente. Paulino parou à porta... hesitante; mas Maurícia dizia:

— Está aí seu doutor, Sinhá; - e ele entrou.

Corina estava deitada sobre a cama intacta, mas já em toalete de dormir - um roupão de cambraia branca, guarnecido de rendas, meio decote, mangas soltas e abertas, descobrindo os braços. Tinha sobre as pernas uma colcha de lã, desdobrada a meio. Estava com o tronco apoiado às almofadas, e o rosto voltado para numa atitude de espera. Junto da mesa de cabeceira havia cadelinha baixa e dourada. Paulino deixou-se cair sentado ela, com um quebranto nas pernas.

— Então, que sente? Que tem?

— É a minha enxaqueca, penso eu. Estala-me a cabeça. Vomitei o jantar. Não posso dormir, estou nervosa...

Aos dedos enfebrecidos do médico o braço da moça pareceu gélido e o pulso quase apagado, a testa igualmente fria. Acreditou que era de fato uma nevralgia violenta do cérebro, com depressão da temperatura.

— Vai melhorar já; não é nada. Tem ai antipirina inglesa? Se não tem, vou buscar lá acima.

— Tenho sim, mas espere um pouco. Talvez eu melhore sem isso. Não me faria bem uma xícara de café bem forte e bem quente9

— Sim, talvez.

Corina mandou a criada fazer o café. Maurícia saiu encostando a porta.

Estavam sós; ele, sentado na cadeira baixa, com a cabeça próxima da da moça, que o olhava, sorrindo, com seus grandes olhos úmidos; tinha entre as suas mãos uma das dela e não dizia uma palavra, receoso de que a primeira que lhe saísse dos lábios fosse a única que não devia nem queria dizer.

— Não se tinha deitado ainda quando a rapariga foi chamá-lo, decerto, visto que veio tão depressa - murmurou ela.

— Não; estava à janela, tal como daqui saíra.

— E em que pensava?

— Eu? Em nada.

— Mentiroso! Pensava em mim, não negue: pensava em mim.

— Pois bem... pensava... em ti! - murmurou ele com voz sumida.

Corina com o braço livre tomou-lhe a cabeça, achegou-a ao seio ofegante e beijou-a nos cabelos, sem dizer nada, conservando-a assim alguns momentos. Todo o cheiro delicioso daquele seio mal velado, estuante de desejo, subiu à cabeça do médico, enchendo-a de uma luz suave, gradualmente mais clara, mais alucinante de alegria, como a alvorada de um dia primaveril invadindo um moital espesso e acordando a passarada gárrula. Era a loucura da felicidade... Quantos beijos se deram, ardentes, soltos, nos olhos, nos lábios, nas faces, nas mãos, nos cabelos!

— Espera! - disse de repente Corina. - É a rapariga.

Maurícia entrava com uma chávena de café fumegante numa bandeja.

— Olha, Maurícia, podes deixar isso aí e vai descansar. Chamar-te-ei quando seu doutor tiver de sair.

A criada retirou-se, dizendo que se Sinhá precisasse era só chamar, porque ela ia cochilar um bocado na sala de jantar, numa cadeira.

Quando a viu sair, Corina sentou-se na otomana de damasco que estava à direita do leito, atirando para as costas com um gesto da cabeça os cabelos soltos, apenas presos por uma fita, ao meio. Paulino ajoelhara-se, como impelido por uma força estranha, e, passando os braços na cintura da moça, com o peito unido aos seus joelhos, ergueu para ela a cabeça e entrou a murmurar, como em uma oração, três, dez, vinte, cem vezes:

— Amo-te! Amo-te! Amo-te! Amo-te!

A porta bateu de leve, impelida pela aragem, vinda de fora. Corina correu a fechá-la pisando com os pés nus o tapete persa do soalho, alto e macio como um tabuleiro de relva.

Quando voltava da porta viu sobre o mármore da mesinha da cabeceira a pequena bandeja de charão com a xícara de café.

— Olha o meu remédio! - exclamou, rindo. Vamos tomá-lo de sociedade?

E os dois tomaram o café, ora aos goles, um, ora outro; e ela, quando bebeu o último trago, limpou os lábios úmidos ao lenço do amante, tirando-lho do bolso externo do paletó.

Corina estava de pé, com os cabelos meio soltos, corada, risonha, resplandecente nas suas vestes brancas, banhadas em cheio pela luz do gás, na nitidez dos seus dentes, no viço triunfal da sua mocidade... Paulino, fremente, a garganta e a boca ressequidas, os olhos dilatados, ardentes de um fogo sombrio, abraçou-a a plenos braços, perdidamente, num ímpeto de molas de aço, e, tendo-a unida ao peito, quase suspensa do chão, tentava levá-la para a otomana; mas a moça, pressentindo-lhe a intenção, e, temendo àquela idéia, de uma repugnância instintiva, de um como terror subitâneo, enteiriçou-se num violento esforço de todos os músculos e, partindo a cadeia formada pelos braços do médico, soltou-se, fugiu-lhe, foi refugiar-se num canto do aposento, caindo sobre um pufe de seda. E murmurava, cobrindo o rosto com as mãos:

— Não, não, isso não, Paulino... Não posso, não quero...

Mas Paulino estava de tal modo excitado, louco de paixão e desejos, que naquela ocasião não recuaria nem mesmo diante da sua própria consciência corporificada num anjo vingador, empunhando uma espada de chamas.

Ele foi ajoelhar-se-lhe aos pés, cobriu-os de beijos, prostrado como um maometano que oscula o limiar da mesquita. Depois, debruçou-se-lhe ao regaço, com a cabeça erguida para o seu rosto, que empalidecia, prendendo-lhe as mãos, falando-lhe baixinho, longamente, ardentemente.

Corina, que havia preparado com calma a ocasião e o cenário da própria queda, sem uma revolta de pudor, numa absorção de toda a sua inteligência e de toda a sua vontade no desejo apaixonado de entregar-se àquele homem, de cujo amor sentia o calor e o perfume capitoso... chegando o momento desejado, previsto, sonhado... sentia acordar violentamente em todo o seu ser, no fundo de si mesma, uma força não sabida, que a requeimava intimamente, e lhe dava o desejo imperioso de fugir ao contato daquele homem, como se fora um monstro. Era o pudor, era o respeito de si própria, que despertava imperioso, forte, intato, numa revolta soberba. Todas as ousadias e petulâncias da coquete desapareciam ao primeiro contato brutal do homem que não era o companheiro que a lei lhe dera e a cujo corpo a convivência longa a habituara; e uma vergonha imensa, amargurada, enchia-a de pejo, de raiva, de lástima...

Mas Paulino sentara-se na otomana, ao seu lado; tomou-lhe a formosa cabeça, pousou-a sobre a sua larga espádua e pegou de beijar-lhe levemente, docemente, os olhos cerrados, as faces pálidas, os lábios frios e trêmulos. Não sei que frase feliz, de fino espírito, murmurou Paulino, que a moça sorriu-se e volveu para ele os olhos, exclamando um oh! meio de censura, meio de aprovação.

Paulino, então, aproveitando o ensejo, ergueu-lhe o corpo macio, docemente cálido, sob as cambraias finas, e sentou-a sobre os joelhos; estreitou-lhe o busto, em que fremiam os últimos gestos de resistência, e colou-lhe a boca à boca.

Depois as mãos de Paulino, impacientes, férvidas, encontraram os seios tépidos e túrgidos da moça e enlouqueceram. Ela fez um movimento brusco para fugir-lhe...

Com esse movimento, o corpo de Corina deslizou dos joelhos de Paulino; este, para ampará-lo, teve de acompanhá-lo, enlaçando-o fortemente, e rolaram para o tapete, abraçados, unidos, fundindo almas e corpos num só beijo, num só gemido, num só delíquio.