Flor de Sangue/I/XII

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O passamento do conselheiro Prestes sobreveio algumas semanas depois, podendo-se afirmar que agonizou 15 dias.

Aquela debilidade crescente e aquele definhar sem causa, a que se referia Corina na noite de chegada de Paulino, cerca de ano antes, explicaram-se subitamente com a explosão, por assim dizer, de todos os sintomas de uma nefrite, complicada com lesão cardíaca muito antiga.

A revolução de 15 de novembro entrara por muito para a agravação desse estado mórbido. O velho ex-valido imperial, sinceramente afeiçoado ao seu monarca, sentindo-se sem forças e sem valor moral para defendê-lo no momento da sua queda inopinada, vendo-o partir com a família para um exílio irrevogável, e intimamente magoado e revoltado pelo adesismo impudente de quase todos os amigos do ex-imperante às novas instituições, caiu numa apatia moral e física absoluta; o estado anêmico acentuou-se, as forças foram decrescendo até que as lesões fatais que lhe minavam o organismo revelaram-se todo o cortejo de seus temíveis sintomas.

Foi Paulino o médico assistente. Dedicou-se ao enfermo como se dedicaria ao próprio pai, e tais foram os seus esforços e cuidados e o acerto de seu tratamento, que conseguiu prolongar-lhe a vida por alguns meses. Mas o desenlace era fatal e próximo. Bem o sabia o médico e teve de confessá-lo a Corina, a quem a doença do padrinho sinceramente consternava.

Ultimamente já ela dormia em casa dele para constantemente velá-lo e auxiliar a madrinha no seu penoso tratamento. Paulino fazia-lhe duas visitas por dia. Nas duas últimas semanas, além da visita da manhã, demorada, passava uma parte da noite à cabeceira do enfermo, desvelando-se carinhosamente, sem fadiga, para descansar um pouco as duas mulheres, comovidas por aquela dedicação.

Mas o pobre homem piorava sempre; a infiltração zombava dos mais enérgicos medicamentos, que lhe agravavam ainda a fraqueza; o edema subira das pernas às mãos; a dispnéia aumentava; nenhum apetite. As poucas vezes em que deixava o leito para andar um pouco e vir respirar na varanda, estendido no chaiselongue, era com imensa dificuldade, apoiado a duas pessoas.

A casa foi tomando esse aspecto e esse cheiro terríveis de casa onde uma vida vasqueja, próxima a extinguir-se. em uma decomposição orgânica progressiva; em todos os rostos, a palidez e a fadiga; em todos os olhos e em todos os gestos, a desesperança, a resignação dolorosa e um inexprimível desejo físico de que aquilo acabe, para descanso e alívio dos que ficam.

Já era preciso fazer quarto. Havia sempre, a qualquer hora da noite, alguém acordado, imóvel numa poltrona, junto da cama, ou caminhando a passadas surdas, em pontas de pés, ministrando os remédios à luz mortuária do gás em lamparina, ao monótono tique-taque do pêndulo.

Paulino passou algumas noites nesse piedoso encargo. Corina, quando dormia algumas horas, era sempre vestida, no próprio quarto do doente, estendida num canapé ou recostada numa poltrona; e o médico contemplava-a a dormir tranqüilamente, respirando leve, com os braços frouxos, rendidos de fadiga, e, para que melhor dormisse, aconchegava-lhe a almofada, velava a claridade com algum objeto, abafava todos os rumores.

Uma vez, estando ele a arranjar-lhe a almofada, prestes a deslizar-lhe de sob a cabeça, ela despertou num sobressalto nervoso, com os olhos dilatados; e, vendo em sua frente Paulino, que não tivera tempo de escapar-se, sorriu-lhe ternamente e, apertando-lhe as mãos com força, exclamou com voz abafada e uma expressão inefável.

— Obrigada!

Conversavam longamente, em voz baixa, interrompendo-se com freqüência para acudir ao enfermo, que respirava com dificuldade, o busto alto, amparado por uma pilha de travesseiros.

Sentavam-se no canapé, muito aconchegados os corpos, para se poderem ouvir naquele segredar cauteloso, e os seus hálitos confundiam-se, e as mãos tocavam-se. Nenhuma referência direta aos sentimentos que os ocupavam, um a respeito do outro; mas no muito que se diziam acerca de terceiros, algo havia sempre, indireto e velado, de alusivo esses sentimentos. A paixão, como planta doentia e funesta, medrava naquele ambiente de morte, sinistro e mudo.

Quando Corina dormia, Paulino com os olhos espalhados amorosamente sobre o seu rosto pálido e bonito, sobre o corpo sadio e esbelto, perdia-se em cismas absurdas, em devaneios loucos... Inquiria do acaso ou da Providência por que motivo devia haver entre ele e aquela mulher - justamente a única que amara e amava - um muro de ferro insuperável; por que lhe era vedado ser feliz no mundo - ignorante do crime que podia ter produzido aquela condenação... E, na imobilidade em que se conservava, sentia impulsos violentos na vontade para arrebatar nos braços aquela bela criatura dormente e ir gozá-la muito longe, num recanto obscuro e não sabido, saciando assim a sua fome instante de felicidade. Mas... Fernando? Que louco, e que miserável era!

Desejar a mulher do seu melhor amigo, de que lhe fora como pai! Não; não devia cobiçá-la... mas que importava cobiçá-la, uma vez que lho não dissesse, que resistisse sempre, estoicamente, com o coração estraçalhado, a esse desejo inconfessável?

Que martírio o seu! Quantas vezes resolvera e tentara inutilmente fugir-lhe! Como que havia um secreto espírito maligno, dir-se-ia um demônio escarninho e implacável, a frustrar todos os seus planos de salvação, a destruir-lhe todas as armas de defesa, a preparar-lhe lentamente a queda inevitável!

E enquanto o amor lhe trabalhava o espírito, a morte trabalhava o corpo do conselheiro, entorpecido de coma, com a triste cabeça hirsuta e pálida de asceta, apagando-se nas sombras do quarto.

Uma noite, Paulino e Corina velavam no canapé, um ao lado do outro, conversando baixo. Mas o cansaço foi vencendo a moça; o corpo decaiu-lhe para o lado do médico, a cabeça apoiou-se-lhe ao ombro, as mãos tombaram no regaço; adormeceu. Paulino sentiu um frêmito profundo de volúpia correr-lhe todo o corpo, nervo a nervo; mas o busto de Corina, mal apoiado, inclinou-se, deslizou para os seus joelhos; cingiu-o nos braços, acomodou no colo, com uma almofadinha, a cabeça adorada e, trêmulo, ardente, a boca seca, alucinado de desejos lúbricos, ficou imóvel, contemplado-lhe o sono, devorando-lhe com os olhos ansiosos a boca entreaberta e a curva de um dos seios brancos e redondos, que o roupão, desabotoado em uma casa, deixava entrever.

Se alguém os visse, se alguém os surpreendesse?... Mas não...

A mulher do conselheiro dormia ruidosamente no gabinete de toalete, ao lado, prostrada de fadiga. Um momento houve em que Paulino não se pôde conter; levou delicadamente a mão trêmula ao roupão branco, soltou outro botão, e afastou o estofo. O seio, entrevisto antes, apareceu todo nu e uma parte do outro... dois globos claros, pequenos, firmes... quase virginais! E deles subia, como um incenso, um cheiro suavíssimo de carne amorosa.

Paulino tinha a cabeça baixa e as mãos abertas no ar, num desejo febril de beijar, de apalpar, de sentir nos lábios e nas mãos o calor e a maciez daqueles seios lindos, daquela pele moça, cheirosa e branca... Por fim, não pôde conter-se, afastou as mãos com esforço, como se lhe custasse a dominá-las, e, abaixando a cabeça sobre o rosto da moça, beijou-a na boca.

Ela estremeceu, despertou sobressaltada e, vendo fitos sobre seus olhos e entreabertos sobre seus lábios os olhos e os lábios de Paulino, cingiu-lhe o pescoço com os braços, atraiu-lhe a cabeça e, estreitando-se toda ao busto dele, colou-lhe a boca à boca num beijo quente, fundo, demorado, num beijo de perdição.

Mas o conselheiro gemeu e remexeu-se na cama; parecia pedir alguma coisa. Paulino e Corina ergueram-se imediatamente e correram a acudir-lhe.

Dia a dia os sofrimentos do infeliz tornaram-se mais atrozes. A agonia foi interminável, consternadora; a circulação foi se embaraçando e entorpecendo hora a hora, lentamente o sangue ia se coagulando nas veias à proporção que a força valvular do coração ia diminuindo, e a dispnéia e a sufocação cresciam horrivelmente.

Era um morrer gradual. O quarto, apesar de todos os cuidados de asseio, exalava um fétido estranho e forte, vindo da cama em que aquele organismo se decompunha progressivamente, em vida, deixando nas roupas do leito e passando ao ar secreções e exalações acres. Por fim, o período do estertor começou; mas foi longo, pungentíssimo. Aquele som cavo, áspero, entrecortado como o de um maquinismo ferrugento, funcionando à força de pulso, e que interrompiam gorgolejos e engulhos, enchia o quarto, os corredores, as salas, toda a casa, ouvia-se de qualquer ponto dela. Era um rumor sinistro, impertinente, horrível!

Nos últimos dias, e sobretudo no derradeiro, as portas e janelas estavam abertas de par em par; as visitas entravam e saiam francamente, sem serem mais recebidas ou acompanhadas por alguém da casa. Muitas chegavam, viam o moribundo e saíam sem que fossem percebidas. Esperava-se o desenlace a todo momento; e esse momento não chegava.

O dr. Paulino, interrogado, não pôde determinar com precisão a hora do passamento. Julgava que seria à meia-noite, e amanhecia mais um dia sem que o desgraçado se houvesse libertado daquele resto miserável de vida.

Tratou-se do enterro, do funeral e dos convites com tempo, demoradamente. Chiquita, que a princípio chorava bastante, parecia agora resignada ao seu infortúnio e tratava, com tristeza mas sem confusão, dos aprestos fúnebres.

As pessoas ocupadas a encher os convites interrompiam o trabalho, noite adentro, para tomar café, e, mais de uma vez, para correr ao quarto, supondo que o conselheiro já houvesse expirado.

Quando ele, finalmente, extinguiu-se, às cinco e meia da madrugada, sem uma contração de face, na qual duas grossas e longas lágrimas escorriam dos olhos vidrados, murchos no fundo das órbitas ósseas, tudo está pronto - enterro encomendado, convites sobrescritados, anúncios redigidos.

Um portador foi logo levar a notícia aos jornais, para ser afixada em boletins à porta; outro foi enviado à Santa Casa para pedir o enterro para as quatro horas da tarde, levando o atestado de óbito, passado pelo dr. Paulino José de Castro; um terceiro, ainda, para avisar Fernando, que se havia retirado às 11 horas da noite, receoso de deixar a casa entregue só aos criados.

Chiquita Prestes teve um violento ataque de nervos, conquanto preparada de há muito para aquele transe medonho. Mas passada a crise, volveu à anterior serenidade; e era com um sorriso contrafeito e doloroso que respondia às condolências banais das amigas e às consolações estúpidas que lhe dirigiam.

— É o caminho de nós todos - suspirava uma velha. - Que se lhe há de fazer? Todos nós temos de passar por isto, mais dia menos dia. O senhor conselheiro era um santo homem e vai fazer muita falta, decerto; mas não podemos ressuscitá-lo com as nossas lágrimas. Não se adianta nada em chorar, minha senhora. Resigne-se com a vontade de Deus.

Um dos amigos fumava no quarto mortuário, para evitar qualquer infecção. Outro aspergia tudo de água fenicada, depois de bem molhadas com essa solução anti-séptica as roupas do cadáver e as da cama. Paulino fechou-lhe os olhos e a boca, unindo os maxilares com uma fita preta e larga, que atou sobre o alto da cabeça. Corina, de joelhos, com a cabeça encostada ao leito sobre um braço dobrado, chorava ininterrompidamente, apertando uma das mãos do morto. As flamas altas dos círios amarelejavam na claridade branca e radiante do dia recém-nascido.

Fora, na rua, ouvia-se a atividade da população mourejante: sonidos de campainhas de bondes, pregões de quitandeiros, rolar de carros, gritos indistintos. Num piano da vizinhança rompeu, estrepitosamente, a polca da moda.

Na sala de jantar, tomavam café com biscoitos. A viúva já vestida de preto, com os peitos copiosos colhidos no espartilho, sem mais vestígios do desalinho descurado de há pouco, pronta para receber com decência e gravidade os pêsames de pessoas de importância, mostrando na palidez das faces moles e nas olheiras pisadas a fadiga e o pesar, tomava melancolicamente uma chávena de leite, ouvindo com um ar distraído as mesmas banalidades de uma das tais amigas velhas. Era uma parda esquelética, de cabelos ralos e grisalhos, de mãos nodosas e longas, com poucos mas vorazes dentes. Enquanto abeberava no café com leite um pedaço de pão e acabava de mastigar o bocado anterior, dizia com voz plangente, arrastada, insuportável de falsidade:

— Coitado do conselheiro! Tão bom homem!... Sinto tanto a morte dele como se fosse sua irmã... Mas a gente que é que adianta em se desesperar? A vida é assim mesmo. E a gente se resignar com a vontade de Deus!

E atafulhava o pedaço de pão inchado e escorrente de café com leite nas profundezas negras da grande boca, escancarada com avidez.