Flor de Sangue/I/XI
Passados os 15 dias improrrogáveis que Paulino havia marcado a si mesmo para cortar cerce e de uma vez com aquela situação intolerável, ansioso por terminar aquela dolorosa luta do seu caráter com o seu temperamento, residia ele ainda na mesma casa: não tinha podido partir.
Motivo imprevisto e imperioso lho impedira. Fora esse motivo o estado de saúde de Fernando.
Havia cerca de um ano que ele vivia extraordinariamente pelos nervos, fazendo um dispêndio excessivo de atividade mental e física.
A sua vida tornara-se uma agitação constante, um continuo agir, devido à multiplicidade e à complexidade de negócios em que se envolvera, alucinado, como quase todos naquela época, pela febre do jogo da bolsa, pela sede de enriquecer rápido e muito, mal tremendo que, manifestado nos últimos meses de vida da Monarquia, se desenvolvera espantosamente nos primeiros da República, sob o Governo Provisório.
Não descansava quase, quase não dormia. Vivia agora mui pouco em casa, raramente voltando para jantar e entrando muitas vezes de madrugada.
Não eram decerto só os negócios que o prendiam até tão tarde na cidade, como procurava fazer crer à esposa - aliás inutilmente -, mas sim a existência dissipada e deleitosa que contraíra e em que tinha por habitual companheiro o seu amigo Viriato, agora seu íntimo.
Eram jantares caros nos melhores restaurantes, ceias ruidosas, regadas fartamente de champanha em gabinetes particulares, em Botafogo, no Jardim Botânico, no Daury, com Vanderbilts feitos à la minute e Coras Pearl de arribação, vindas do rio da Prata e algumas dos bordéis de Marselha e Bordeaux com rótulos de Paris, atraídas pelo cheiro da carniça fresca e abundante.
Nesses jantares e nessas ceias, babujadas de beijos e de vinhos caros, tratavam-se, é verdade, grossos negócios, esboçavam-se planos de empresas maravilhosas ou fechavam-se transações comerciais avultadas; mas, em compensação, malbaratava-se também o dinheiro ganho a golpes de audácia e de sorte, espalhando-o em presentes pomposos às cocotes - carros, parelhas de belos urcos, adereços do Rezende, do Farani ou do Augusto Reis, palacetes, toaletes de um luxo insolente -, em aquisições ruinosas e mesmo em novos negócios absolutamente insensatos.
Era uma vida atordoadora e falsa. Sem saber de que modo, deixara-se apanhar Fernando na sua entrosagem terrível e afizera-se ao jogo, à dissipação, à desordem. Jogava a roleta, o dado, o bacará, em que perdia sem pestanejar gordas quantias, e tinha amantes que lhe custavam alguns contos de réis por mês, sem que possuíssem outros encantos além dos próprios da sua corrupção e dos seus vícios refinados.
Corina não se queixava muito dessa vida nova do marido porque ela lhe deixava uma liberdade quase que completa de ação, da qual se aproveitava o mais e o melhor que podia. Também ela tinha o seu turbilhão: passeios, convescotes, chás, bailes, concertos, flertes sem conseqüência, nos quais tinha por inseparável companheira a sua amiga Santinha.
Eram os maridos por um lado e as esposas pelo outro - numa festa incessante.
Paulino, algumas vezes, não muitas, foi companheiro ora dos dois maridos, ora das duas mulheres: era inevitável.
Uma noite, ao recolher, a desoras, sentiu-se Fernando muito indisposto: faltava-lhe o ar e uma pontada violenta o alanceava na região precordial. Julgou que era chegada a sua hora e um terror imenso apoderou-se dele, inundando-o de suores frios. Foi um alvoroto na casa. Os criados corriam em todas as direções. Um deles foi logo chamar o dr. Paulino ao belvedere...
Não se imagina a angústia indizível do enfermo e o susto de Corina quando o fâmulo, de volta, informou que o médico não dormira em casa naquela noite.
Acudiu logo a idéia de chamar outro, o mais próximo, e despachou-se um próprio para esse fim. Mas um carro leve sobe a colina... Correm a ver...
— É o dr. Paulino! - gritam.
Foi como se um anjo descesse do céu à alcova do casal, trazendo-lhe a felicidade nas mãos diáfanas... Momentos depois, entrava o médico, com um ar espantado por encontrar a casa àquela hora em tal alvoroto.
— Venha, dr. Paulino, venha depressa! - exclamava aflitíssima a mulher de Fernando, despenteada, em toalete de dormir, com os braços nus nas largas mangas abertos do roupão de cambraia, com o colo mal velado por uma mantilha de rendas, apanhada às pressas.
Paulino examinou logo o amigo, rapidamente, e preparou uma forte poção calmante, que o fez beber, acompanhando-lhe o pulso com atenção. Quinze minutos depois, o doente respira melhor e a dor abrandara.
Quando chegou o outro médico, um velho clinico pachorrento, mal desperto ainda do profundo sono a que o foram arrancar, Fernando estava completamente calmo e começava a toscanejar, vencido por uma sonolência pesada e lenta.
O velho médico aprovou a medicação do colega, despediu-se foi reatar o seu belo sono, voltando para casa no tílburi de Paulino, que gentilmente lho oferecera, dando afinal por bem empregado o incômodo, pensando em que havia de fazer pagá-lo bom preço.
Pouco depois, Fernando dormia tranqüilamente e Paulino recolhia-se ao seu aposento, assegurando a Corina que nenhum incidente havia de sobrevir. Somente de madrugada pôde o médico conciliar o sono: na escuridão, viam seus olhos ardentes a visão branca e rósea da sua amada entremostrando as formas peregrinas na transparência das roupagens de fino linho: e nas narinas palpitantes sentia, estonteador, o cheiro da sua carne moça e bem tratada...
No dia seguinte, exigiu Fernando que o amigo o examinasse atentamente. Paulino fê-lo e viu confirmadas pelo exame as suas peitas da véspera. Fernando sofria de uma insuficiência aórtica. Não lho revelou, mas recomendou algum repouso e vida regular além de um regime brando e do uso moderado de uma poção calmante que receitou.
O acesso não se repetiu nos dias subseqüentes; mas o temor do enfermo era tanto e tal a confiança que ganhara no médico que o salvara, que exigira dele não dormir mais na cidade; queria-o ali à noite, perto de si, e quase lhe suplicava que não o abandonasse.
— Olha, Paulino, o que me está dando saúde é a certeza de que estás perto de mim... Tenho a convicção de que morreria nas mãos de outro médico. Não me abandones!
Paulino teve, pois, de adiar mais uma vez, e desta sem prazo marcado, a execução de seu plano de salvação. A vida calma outrora recomeçou, com as noites monótonas, preenchidas pelos três com partidas de solo e pôquer, o novo jogo americano que estava fazendo furor. E o banqueiro foi melhorando, a dispnéia desapareceu, e as pancadas do coração foram-se tornando menos tumultuárias, mais rítmicas, e foi-lhe voltando também a despreocupação, a alegria.
Um mês depois, reentrava na vida agitada de negócios e prazeres, porém mais moderadamente, com uma certa cautela devida às incessantes recomendações do médico. Fernando só o que exigia era encontrá-lo em casa quando voltasse às 11 horas ou meia-noite, no receio obsedante da repetição do acesso e encontrar-se novamente ao desamparo, naquela solidão. Essa quase mania de ter o amigo à mão, todas as noites, era decerto, um resultado do seu estado mórbido, da depressão do seu sistema nervoso e, portanto, um sintoma de enfermidade latente.
Para satisfazer-lhe o pedido jantava o médico mais freqüentemente em casa e dentro em pouco estava restabelecida, e mais intimamente ainda, a sua convivência com dona Sinhá. As noites eram longas; Fernando, tendo a certeza de que o amigo o esperava em casa e fazia companhia à mulher, demorava-se na cidade, "nos seus malditos negócios"; não tinha pressa de voltar.
Era de uma alegria comunicativa à mesa do chá, de volta da agitação rumorosa da noce, reentrando na honesta e reconfortante tranqüilidade do lar, vendo-se esperado pela esposa e pelo amigo, que considerava um filho adotivo, entretidos quase infantilmente, a jogar damas e xadrez ou a ler romances.
Uma manhã em que os dois amigos desceram cedo, sem almoço, para a cidade, o que da parte de Fernando era raro, disse este ao médico, no cupê, tomando um ar grave:
— Sabes, Paulino, tenho que falar-te de um assunto delicado e que considero de uma certa gravidade.
O moço sentiu um ligeiro choque nervoso em todo o corpo, mas nada disse, receando que lhe tremesse a voz, e esperou. Fernando continuou:
— Teu amigo como sou e sabes, considerei que era um dever da minha parte contar-te o que vais ouvir. Trata-se da Madelon...
Paulino encarou-o surpreendidíssimo, e foi com dificuldade que reteve uma risada, tão imprevista e tão cômica lhe pareceu a revelação de que o tal assunto delicado e grave era a petite Madelon.
Mas limitou-se a responder:
— Ah! Trata-se da Madelonette? Então que é?
— Essa mulher engana-te, Paulino; não te é nada fiel.
— Porém... - E Paulino ia dizer que estava farto de sabê-lo e pouco se importava com isso, não se considerando seu amante único, não tendo ménage com ela; mas o amigo, supondo talvez que ele ia repelir aquela idéia e defender a amante, apressou-se em pingar os ii.
— Sim, engana-te. Tenho provas. Tenho visto entrar-lhe em casa mais de um sujeito bem conhecido e a mim mesmo escreveu-me ela uma carta...
— Pedindo dinheiro?
— Como sabes?
— Isso adivinha-se logo. Essas mulheres só escrevem para pedir dinheiro e sempre com uma fome na razão inversa da ortografia.
— Na verdade, ela não pede dinheiro claramente. Mas pede-me que vá visitá-la para conversar sobre um negócio...
— E você, que fez? - perguntou Paulino - Caiu com o cobre?
— Nada respondi. Ela é tua amante...
— Minha e do senhor. Todo Mundo...
— Não; é tua amante, pouco importa que infiel. Sei que gostas dela. E eu seria incapaz de semelhante deslealdade. Essa mulher para mim não existe.
Paulino, que ao ouvir estas palavras, ditas em tom quase solene, tornara-se extremamente sério, perguntou-lhe:
— Mas você gosta dela?
— Confesso-te que lhe acho uma certa graça, um certo cachet. Tem um chique, um ar vicioso de bulevar que me tenta. Ah! Se ela não estivesse contigo, eu já teria mordido nesse fruto do pecado, isso confesso-o. Adoro essa espécie de beleza - la beauté du diable. Mas eu respeito muito essas coisas. Não enganaria nunca um amigo, mesmo com sua amante, embora tendo a certeza de que ela o enganava com meio mundo. Não faltam mulheres por ai, que diabo! Não achas?
— Sim, são escrúpulos nobres, que eu talvez não tivesse nas condições que você figurou, mas que sou o primeiro a respeitar. Entretanto, no caso da Madelon, devo dizer-lhe que os seus escrúpulos são perfeitamente descabidos. Madelon não é mais minha amante. Passam-se agora de seis a oito dias que a não vejo nem sei notícias dela. As nossas relações constam quase exclusivamente destes dois atos: ela a pedir-me dinheiro e eu a mandar-lho, por uma condescendência perfeitamente estúpida em relação a essa espécie de gente. Por isso, meu caro Fernando, não faça você cerimônia. Se a Madelon lhe agrada, atire-se, que nós, monsieur Tout le Monde et moi, lhe concedemos ampla licença.
— Surpreende-me o que acabas de me dizer: surpreende-me sem que deixe de agradar-me. Supunha eu que o colíage continuasse...
— Nunca houve colíage. Era um conhecimento de Paris, feito num cabaré artístico, sem compromissos nem promessas: mera distração, simples passatempo. E como tal continuou aqui. Enfim, se alguma cousa houve, acabou-se. Entrée libre - repito.
— Ah! Muito bem; nesse caso irei saber de que negócio se trata. Desde que não tens mais nada com ela...
— Está claro, fora tolice ter ainda escrúpulos.
Aquela conversa estragou completamente o dia de Paulino; passou-o tristonho, apreensivo, aborrecido; não subiu para jantar e recolheu-se à hora em que todos dormiam.
Meia hora depois, estavam os dois homens deitados, mas nenhum dormia. Fernando pensava em Madelon, cujo conhecimento íntimo fizera naquele dia mesmo e que o enfeitiçara com as suas cajoleries e as suas graças felinas de viciosa parisiense, sabedora de todo esoterismo fin de siécle do amor carnal; e Paulino, ressupino, com as mãos enlaçadas sob a nuca, pensava dolorosamente na mulher do seu amigo, com um sentimento misto e inexplicável, em que entravam: desgosto de si próprio, raiva surda e indefinida, sem objeto determinado, e uma covardia mole, inerte, consternada, como a que sentem os fatalistas diante de uma catástrofe que pressentem próxima. E por mais que procurasse desviar para alhures o pensamento, revia com clareza a figura séria e aberta de Fernando, avisando-o gravemente de que Madelon o enganava e, desejoso dela, fugindo-lhe em respeito ao amigo.
Não pôde mais. Voltou-se de borco, abraçou-se à almofada, em cuja fronha bordara Corina o seu monograma, e, mordendo-a, chorou raivosamente, fraco, pusilânime, infeliz, como uma criança contrariada num capricho.