Flor de Sangue/I/X
Partir, fugir ao inferno em que padecia como um celerado punido atrozmente, era a solução mais simples e mais racional que tinha o médico diante de si.
Matar-se, por quê?
Era moço, forte, quase rico, ambicioso de fortuna, sedento de gozos, sem dependências nem compromissos. Tinha o mundo e o futuro largamente abertos, propiciamente francos à sua inteligência, à sua atividade e aos seus apetites. Matar-se, porque amava a única mulher que lhe era vedado desejar no mundo, fora insânia imperdoável em cérebro tão lúcido.
Estava certo de que a ausência prolongada, longe, o havia de curar radicalmente. Era mister partir. Iria primeiro para São Paulo, para experimentar, e também porque lhe pareciam escassos ainda os seus recursos pecuniários para efetuar uma viagem e estada longa na Europa.
Assim raciocinava e resolvia Paulino, e, no entanto, ia ficando, ia transferindo indefinidamente o dia da partida. Não tinha coragem para sacudir dos ombros o peso férreo do seu martírio.
Como o procedimento de Corina, todo de reserva e indiferente afabilidade, nada tinha de alarmante, não denunciava um perigo próximo, não via o médico necessidade de precipitar a execução de seu plano, o qual, se o salvava moralmente, podia trazer-lhe imensos prejuízos materiais.
E, depois, ele achava nobre aquela luta, dignificante aquele sofrer. Fugir fora covardia. Ficar, resistir ao seu temperamento e vencê-lo, era dever. Cumpri-lo-ia até ao fim, serenamente, embora com o coração despedaçado pelo seu amor maldito, como o infante espartano fizera com a raposa furtada: sem um gemido, sem uma contração da face. O temperamento deve ser um escravo do homem e não o seu senhor; do contrário seria a civilização uma palavra vã, e a sociedade um parque de feras hipócritas.
E com tal filosofar iludia-se Paulino, mascarando a própria alma, cobrindo de areia fria e branca as úlceras do coração. A verdade era que a tática de Corina, habilmente dirigida por Santinha, dia a dia o punha mais apaixonado e perdido de amor e lhe tirava a força de fugir-lhe.
Se ela tivesse um brusco movimento de paixão para ele, em vez da esquivança e indiferença que afetava, tê-lo-ia assustado, abrir-lhe-ia os olhos sobre o abismo que o esperava, e ele fugiria espavorido, para salvar-se e salvá-la. Mas, assim, ele podia iludir-se, tomar sua situação pelo lado que lhe agradava e convinha - como um crisol, penoso embora, da têmpera do seu caráter, como uma luta heróica e nobilitante.
Mais de uma vez teve ocasião, não buscada, de surpreendê-la em deshabillé matutino, jardinando, voltando do banho frio, com os cabelos desnastrados e úmidos, ou à noite, já em roupão de dormir, espumante de rendilhas e fitas, como forçosamente acontece na vida comum dos que coabitam o mesmo teto ou mantêm relações de convivência estreita e constante.
Nesses dias Paulino sofria como um réprobo. O seu sangue impetuoso rugia-lhe nas veias, cachoava-lhe no estuário do coração, afogueava-lhe a cabeça, enfebrecia-o como se um veneno ardente se houvesse insinuado nele.
Tinha ímpetos doidos de apossar-se daquele corpo capitoso e excitante, e de gozá-lo longamente, alucinadamente, até morrer estreitando-o no derradeiro abraço, expirando a alma e a vida no derradeiro beijo.
Esse combate intimo e tremendo minava-lhe a saúde. Andava pálido e emagrecia evidentemente - o que Fernando explicava pela vida de noceur do amigo e dona Benga pelo excesso de trabalho do irmão. Corina, essa, não perdendo o mínimo indício dos resultados daquela luta, parecia, no entanto, nada perceber, e dava-se toda em aparência, à vida de luxo, ostentação e prazeres em que vivia desde algum tempo.
Para Paulino, essa indiferença e despreocupação da moça pela pessoa dele explicavam-se do modo mais simples. Corina estava apaixonada, ou, pelo menos, entretida por outro, e esse outro devia ser o barão de Santa Lúcia - esse nulo, correto e grave possuidor do prestígio comum do dinheiro, da toalete e de um título barato. Adquiriu essa certeza, já preparada pela descoberta que havia feito no sarau da Chiquita Prestes, quando Alfred lhe revelou que dona Sinhá freqüentava uma casinha suspeita na rua de Santo Antônio, ou melhor, quando verificou pelos seus próprios olhos que essa revelação exprimia a verdade.
Montou ronda nas vizinhanças. Uma tarde, viu sair da casa de dona Miquelina um homem, que não pôde reconhecer por ter ele saído dando as costas para a esquina da rua da Ajuda, em que estava Paulino, e ter caminhado rapidamente para o lado do largo da Carioca; oito ou dez minutos depois de ele haver desaparecido, viu vir, pelo mesmo lado, um vulto esbelto de mulher com um véu preto no rosto: era ela; chegou à porta da casinha, bateu; abriram-na entrou.
Mas como explicar que ela chegasse após ter saído o homem? Naturalmente ela demorou e ele, cansado de esperar, foi-se embora; era isso. Paulino veio até a frente da rótula verde e, parando, teve um desejo furioso de bater e entrar. Chegou a dobrar os dedos e estender o braço...
Mas suspendeu o gesto e caminhou, trêmulo e trôpego como um atáxico.
Chegado ao canto, parou, e pôs-se de observação. Esperou um quarto de hora, 20 minutos, 25. Corina saiu, então, e à rótula apareceu a cabeça de d. Miquelina, com o seu sorriso mecânico, e nos gestos trocados por um momento entre as duas mulheres julgou ver Paulino sinais de conserto de um plano ou projeto. Quando a moça se afastou alguns passos da casa, ele passou-se para a mesma calçada e veio-lhe ao encontro, com o passo natural, como trazido pelo acaso.
Fervia dentro dele uma onda de indignação e revolta contra aquela infâmia. Corina enganava vilmente, miseravelmente o marido, que a estremecia, que lhe satisfazia todos os caprichos, todas as veleidades e a todo preço! Enganava-o. sim; tinha a certeza disso.
O seu dever qual era, nesse caso: amigo de Fernando, seu mais antigo e dedicado amigo? Preveni-lo.
Mas isso fora matá-lo, ou, pelo menos, à sua felicidade! Não, o seu dever era prevenir Corina, fazê-la ver para que abismo caminhava.
E o melhor era aproveitar aquele ensejo; não havia tempo a perder. Isso pensava Paulino no tempo que gastou até encontrar-se com a moça. Esta vira-o momentos antes e ficou profundamente perturbada, por não esperar aquele encontro.
Havia ido à casa de dona Miquelina, não para encontrar-se com o barão ou com outro amante, mas com Santinha, que devia lá ir naquele dia e não foi, faltando ao encontro marcado ao poeta, e como era extraordinário isso, esperou pela amiga alguns minutos. Agora, voltava a tomar o cupê, que havia mandado esperá-la em frente ao Teatro Lírico.
Estavam ambos tão emocionados que pararam um em face do outro, sem uma palavra, sem um gesto: Por fim, Paulino disse, com um estranho tom de voz, que Corina lhe não conhecia:
— A senhora, aqui? A esta hora e nesta rua?
— Que tem isso de admirável? Vim procurar uma criada, que anunciou hoje no jornal. Mas também lhe pergunto por que acaso o encontro aqui. Ah! Já sei o que me vai responder... Uma visita médica.
Mas, apesar do seu tom degagé, a voz tremia-lhe, comovida. Paulino, após um esforço que se traduziu numa contração dos supercílios, respondeu com voz firme:
— Não, dona Sinhá, não vim visitar nenhum doente nesta rua. Vim ver a senhora.
— Veio espiar-me, diga antes. E, por conta de quem desempenha esse bonito papel? Por conta própria ou alheia?
Paulino, que não esperava semelhante réplica nem semelhante tom, empalideceu e tartamudeou, o que permitiu à mulher de Fernando assenhorear-se da situação, tomando um partido.
— Ouça-me, dona Sinhá. Não pode duvidar do meu afeto... fraternal e sabe quanto sou dedicado a seu marido. Permita-me, pois, em nome desse afeto e dessa dedicação, dar-lhe um conselho.
— Pois não, fale; reservou-me apenas o direito de dispensar o conselho, agradecendo-o ao conselheiro, se aquele me desagradar...
— Fará o que entender, Corina. Eu cumpro o meu dever.
— Mas venha o conselho - volveu Corina, impaciente.
— É simples: olhe para o abismo que se lhe abre aos pés. Salve a sua honra e a de seu marido, se ainda é tempo.
Corina, cujas faces ficaram cor de lacre, fixou sobre ele um olhar de fogo, em que ardia toda a indignação de um amor-próprio brutalmente ofendido, e respondeu seca e pausadamente:
— Não lhe reconheço autoridade para semelhante recomendação, que é um insulto. A ação que acaba de praticar só um sentimento a poderia justificar - o ciúme; mas eu ainda o não autorizei a mostrar ciúmes de mim. Adeus.
E caminhou, firme, ligeira, altiva, deixando o médico na calçada, enfiado, corrido, imóvel.
Só passados alguns momentos, foi que ele compreendeu a grande asneira que havia feito.
"Sou um idiota. Um cretino não teria agido mais desastradamente. Como foi que não vi o ridículo a que ia expor-me, mostrando a Corina que a espionava e, sobretudo, dando-lhe um conselho daquela ordem, sem nenhum título que me autorizasse a tanto? Mas o que acabo de fazer é positivamente uma declaração de amor! Só o ciúme justificaria semelhante brutalidade, como ela bem disse."
Assim pensava Paulino.
Assim pensava também Corina, tomando o cupê e mandando tocar para a casa de Santinha. Aquilo fora uma declaração de amor e a mais eloqüente que ele podia fazer-lhe. E, passado o sentimento espontâneo e natural de indignação que lhe produziram as palavras desastradas de Paulino, Corina sorria, contente, satisfeitíssima. Ia triunfar, ia finalmente vencer aquela resistência tenaz e satisfazer o seu ardente capricho, que ela chamava "amor", acreditando-se profundamente apaixonada por ele.
Com que açodamento feliz foi contar à sua preciosa amiga o incidente! Foi encontrá-la de cama. prostrada por uma enxaqueca furiosa, felizmente acalmada um pouco quando chegou Corina, e contrariadíssima por ter feito esperar em vão por ela o seu Zanetto querido - chamava-lhe Zanetto romanticamente: era uma reminiscência da leitura de Le Passant, dê Coppée.
— Atenção! A hora do grande golpe aproxima-se. Preparar armas! exclamou a experimentada mulher do Viriato, com um lampejo de orgulho nos olhos, como o de um grande cabo de guerra ante a vitória próxima.
Entretanto, Paulino caminhava ao acaso, apatetado, ainda corrido de vergonha do papel que fizera. Ao cabo de meia hora, regressando ao consultório cheio de enfermos que o esperavam impacientes, tinha a sua resolução tomada, inabalavelmente, segundo pensava: partir. Não lhe restava outro recurso, depois daquela cena; ela eqüivalera a uma confissão amorosa, e, depois disso, ficar valeria tanto como trair o amigo. Mas resolveu partir sem preveni-lo, de repente. Para isso iria preparando tudo em segredo e rapidamente. O que lhe valia e o tranqüilizava um pouco era que, com a vida esparsa de diversões que levavam marido e mulher, ele pouquíssimo parava na Tijuca e assim poucos encontros poderia ter com ela.
Dentro de 15 dias, o mais tardar, tudo estaria acabado. Oh! Com que alegria se veria liberto do seu inferno de amor!