Flor de Sangue/I/IX
A Estada de Paulino em Nova Friburgo foi curta. Desceu no FIM dc cinco dias, chamado por telegrama do pai de uma de suas clientes, cujo estado se agravara.
Chegou à cidade ao anoitecer, mas só tarde subiu para a Tijuca, de modo a não ser pressentida a sua entrada em casa.
Passara pessimamente aqueles dias de ausência, apesar da amenidade da temperatura e da escolhida roda em que conviveu, toda de veranistas da nossa primeira sociedade. O moral trabalhava-o continuamente, como uma broca a perfurar um tronco, e a ponto de fazê-lo perder o apetite e o sono.
O incidente daquela aziaga noite de quinta-feira não lhe desertava o pensamento um instante e produzia-lhe uma impressão de terror contínua e progressiva, que se ia tornando obsessão.
Estava consumado o seu crime: revelara a dona Sinhá o seu amor inconfessável; e revelara-o melhor que com palavras - com um beijo, um beijo ardente, em plena boca!
Como pudera cometer essa baixeza, esse crime? Cometera-o somente porque, num instante rápido de excitação nervosa, os seus sentidos o dominaram completamente, obcecando-lhe a razão.
Este desastrado incidente foi para ele um poderoso raio de luzintrospectiva? revelou-o a si próprio, mostrando-lhe os perigosos meandros do seu temperamento, o que nele havia de impulsivo, de arrebatado, de imperioso. Possuidor de uma razão clara e robusta e de um senso moral perfeito - tanto, pelo menos, quanto o permite a vida social hodierna -, viu-se repentinamente capaz de praticar atos condenados pela sua razão como erros e pelo seu senso moral como faltas, desde que o seu temperamento encontrasse ensejo de exercer a sua ação livremente, a toda a força. Era, pois, um impulsivo, por uma fatalidade orgânica, constitucional, atávica sem dúvida, e, por isso, um homem perigoso, capaz dos excessos mais condenáveis.
Havendo reconhecido e confessado a si próprio a sua paixão extraordinária pela esposa do seu amigo e protetor, horrorizado ante essa enfermidade da sua alma, resolvera, antes que se tornasse incurável, fugir daquela casa e daquela mulher, resistir heroicamente ao seu mal, e conservar-se digno da própria estima; e resolvera-o firmemente, com toda a energia de sua forte vontade educada. Pois bem, horas apenas decorridas, um acaso estúpido reúne-os na obscuridade, atira os dois corpos um para o outro; ela suspira-lhe o nome com expressão amorosa e ele agarra-a e beija-a com arrebatamento, partindo os lábios ardentes sobre os seus lábios finos, perfumosos, não menos ardentes! Razão, senso moral, resolução clara, ponderada, firme - tudo desaparecera e tudo o - abandonara aos seus instintos, à sua paixão maldita num momento propício, que se diria preparado por uma divindade infernal!
Havia, porventura, absurdo mais revoltante, fraqueza mais deplorável e mais vergonhosa? E esta certeza indignava-o, enfurecia-o intimamente, surdamente.
Aqueles cinco dias em que não a viu, passou-os Paulino a debater-se nesse inferno de sentimentos e idéias, à procura de uma resolução que fosse uma solução para o seu caso, um golpe único e seguro naquele nó moral da sua existência. Deixar a casa de Fernando não bastava: teria de freqüentá-la, e o escarninho acaso prepararia novos encontros, alguma armadilha inevitável...
Era preciso deixar o Rio de Janeiro. Era uma pena, um verdadeiro desastre, nas ótimas condições em que já estava a sua clínica de consultório, prometedora de tão largo e brilhante futuro.
E o seu sonho de residir na Europa, após alguns anos de trabalho? E a sua independência pecuniária, que ele almejava com impaciência, sonhando-se em condições de poder dividir a sua existência entre a ciência e o prazer, sem preocupações nem temores?
Tudo perdido! Mas que importava isso - refletia com tristeza - se cumpria o seu dever, se se conservava um homem de bem! Sim, partiria, deixaria o Rio de Janeiro, iria clinicar em qualquer Estado, no de São Paulo, por exemplo. E nesta decisão se firmou.
Reconheceu, todavia, que para executá-la precisava de algum tempo, o necessário para preparar Fernando e a mulher.
Como poderia justificar, sem levantar suspeitas e desconfianças veementes, essa partida brusca, abandonando uma clínica dia a dia mais próspera? Era-lhe necessário pelo menos um mês para esse efeito. Nesse mês raras vezes jantaria em casa, e nenhuma delas em quinta-feira; trataria Corina com a mais fechada reserva, e, para afastá-la e desiludi-la sobre os seus sentimentos para com ela, lembrou-se de um recurso, que lhe pareceu excelente - tomar uma amante, escolhida no demi-monde fluminense, e não ocultar essas relações nem os vestígios dela - cartas, flores, fotografias...
Talvez até que esse expediente pudesse justificar a mudança para São Paulo.
Sim, era isso; fá-la-ia partir para lá e, depois, partiria também ele, aparentemente atraído e enfeitiçado pelos seus encantos viciosos...
Quando chegou a este resultado das angustiosas reflexões sentiu-se aliviado e contente e voltou para capital, ruminando lentamente o seu plano de salvação.
Nem mesmo a hetaira, necessária para a sua execução, lhe faltava: lembrara-se de Madelon, a parisiense encantadora com quem fizera relações em Paris num cabaré artístico, amasiada nessa ocasião com um barão russo, e que viera para o Brasil tentar fortuna, déplumer des richards - como dizia ela - entusiasmada pelas informações do seu petit brésilien. Uma mignonnette de 21 anos de idade e 39 quilos de peso, com uma cintura inverossímil e uma dentadura ideal.
Madelon estava a calhar - parecia até feita de encomenda! Prestar-se-ia sem nenhuma dificuldade ao seu plano, tanto mais que tinha por ela certa estima, quase uma amourette. Iria vê-la no dia seguinte e desde logo começaria o escândalo.
A volta de Paulino foi uma grande alegria para Fernando, embora tão curta houvesse sido a ausência; é que já se havia habituado à sua companhia, às partidas de bilhar depois do jantar, ao solo à noite com a mulher, que era forte nesse jogo, e às longas palestras pela manhã, depois da ducha, no belvedere, fumando cigarros, ouvindo casos e anedotas da haute-noce de Paris.
— Decididamente, não posso mais passar sem o Paulino - dissera ele à mulher no dia anterior, e acrescentara:
— Se não chegar amanhã, vou buscá-lo.
Mas Paulino chegou nessa noite.
— Monsieur le docteur est arrivé ce soir - disse-lhe Alfred na manhã seguinte, indo à cozinha buscar o café.
Fernando galgou presto as escadas e foi encontrá-lo em robe de chambre, já de volta do banheiro. Abraçou-o com uma efusão tal como se a ausência houvera sido de cinco meses e não de cinco dias. E comunicou-lhe que havia organizado uma grande companhia sob a forma de sociedade anônima, cuja presidência lhe destinava.
Paulino recusou com energia, alegando não querer ocupar-se senão de sua clínica.
— É tarde, meu caro. Já foste eleito na assembléia de instalação. E possuis 3 mil ações, que já podes vender com um ágio de 25 mil-réis em cada uma, o que significa que podes meter no bolso daqui a algumas horas 75 contos de reis.
Paulino ficou enfiado, estupefato, sem saber o que dizer nem fazer.
À mesa, no almoço, foi que viu Corina - fresca, risonha, com uma toalete de primavera, que lhe dava um ar de menina de colégio. Cumprimentou-a sem expansão, com reserva bem dosada, esperando encontrar no seu acolhimento algo que lembrasse a famosa cena do belvedere; mas ficou surpreendido com o contrário: Corina apertou-lhe a mão simplesmente, com um sorriso desintencional e palavras banais e conservou, durante toda a refeição, esse ar despreocupado, sem um olhar ou uma frase de significação especial. "Naturalmente dissimula por causa do marido", pensou Paulino. E, havendo o banqueiro notado que Paulino estava um pouco abatido, o que ele explicou, dizendo haver-se resfriado em Friburgo, Corina não concordou: "achava-o até mais bem disposto". Ora, a verdade é que ele estava visivelmente mais pálido, com um aspecto de fadiga.
E a luta de dissimulação travou-se entre os dois, renhida, constante, sem tréguas. Na primeira quinta-feira, como Paulino se preparasse ao almoço para avisá-los de que não poderia vir jantar, antes que o fizesse, ouviu, com grande surpresa, dona Sinhá dizer-lhe:
— Sabe que hoje tem de jantar sozinho? Prometi ir passar a tarde com mamãe, e o Fernando irá buscar-me à noite.
— Oh! Filha, isso não o é possível. Saio muito tarde da casa do Paranhos. Mas o Paulino podia fazer-nos o favor de....
— Não, deixa - acudiu Corina. - Eu durmo lá. E mesmo melhor, porque farei mamãe dar um bom passeio amanhã, pela manhã, no landau.
Paulino pediu licença para não vir jantar tampouco:
— E que tenho também a minha tarde presa e provavelmente também a noite - e lançou um olhar expressivo a Fernando.
— Vais fazer a tua noce, bem, maroto? - exclamou este rindo, com o ar de quem havia entendido.
Corina nada desse jogo parecia ter percebido: despolpava atentamente uma pêra.
O plano estratégico aconselhado por Santinha ia produzindo resultados maravilhosos. Paulino de dia em dia mais se apaixonava, mais se prendia insensivelmente, acreditando, entretanto, que a reserva de Corina e a sua aparente tranqüilidade e despreocupação eram resultado do plano dele, todo de afastamento lento e bem calculado. Mas a sua inquietação e o seu mal-estar aumentavam sempre inexplicavelmente.
Agora, quando estavam sós, o que era bem raro, riam, conversavam, entretinham-se como antes, mas sem o mais ligeiro contato, sem uma alusão, sem um sinal qualquer de inteligência amorosa. Era, entretanto, nessas ocasiões que a inquietação e o mal-estar do médico mais acentuavam. Proposital ou casualmente, nesses dias a toalete de dona Sinhá era menos cuidada, mais sumária, mais simples: um ligeiro vestido claro, de mangas curtas, deixando ver os formosos braços e o começo do colo, que um esquecimento libertara do fichu; e havia mais languidez, mais nonchalance nas suas atitudes.
Longe de tranqüilizar-se e satisfazer-se com a despreocupada indiferença de Corina - tão completa que a levou ao ponto de lhe dizer, sem um tremor na voz, com a maior calma, que havia visto Madelon, a amante affichée do médico, e que a achara encantadora -, Paulino inquietava-se e sofria com essa indiferença.
Estava a findar o mês do prazo que se havia marcado para mudar-se para São Paulo, e ainda não tinha participado tal resolução aos seus amados. Ia protelando... Para que comunicar-lha, se não havia perigo, se nada ocorria que tornasse urgente a execução do seu plano?
Corina nenhum sinal manifestava de amá-lo, ou desejá-lo, ao menos. Afeição ou capricho, o que fora, passara; era evidente. Por que, pois, abandonar tudo: a sua clínica, a sua posição de presidente da Companhia Melhoramentos da Tijuca, em que Fernando já o fizera ganhar cerca de 80 contos de réis, e a própria casa e convivência deste...? Não seria uma feia ingratidão? Decerto que sim.
É verdade que, ficando, sofria horrivelmente, porque o seu amor desgraçado aumentava sempre, com uma intensidade assustadora. Mas que lhe importava sofrer? Ninguém lhe ouviria um gemido; a causadora daquele tormento oculto nunca o adivinharia sequer; na sua face, cada dia mais pálida, nenhum reflexo se estampava das dores que lhe devoravam o íntimo.
Era em vão que se esforçava por apaixonar-se por Madelon, que com ela passava a maior parte do tempo que o trabalho lhe deixava ocioso. Ultimamente, dormia freqüentes vezes em casa dela; as suas relações eram conhecidas de toda a cidade; e mais de uma vez Fernando jantou com ela e ele em partie fine no Restaurante Campesino do Jardim Botânico, ou no Hotel das Paineiras. Nem os encantos da gentil parisiense, sabedora insigne dos mais delicados requintes da sua arte, nem a fadiga daquela vida de trabalho e de vício o distraíam do seu amor pecaminoso e secreto. E Corina sabia-o e via-o claramente, com uma dissimulação perfeita, e pressentia próximo, bem próximo, o desenlace almejado.
As tranqüilas noitadas familiares tinham acabado.
Raramente se encontravam agora os três, à noite principalmente. Paulino vivia mais em casa de Madelon; Fernando, alucinado no turbilhão dos negócios e dos prazeres, recolhia-se sempre tarde e Corina saía constantemente, de cupê, com Santinha, com a madrinha ou com alguma de suas novas amigas, que tinha muitas.
Até que um dia o inferno moral em que vivia Paulino acresceu de uma nova tortura - o ciúme.
Corina empregara o grande recurso, a arma de golpe infalível. Paulino surpreendera-a em colóquio íntimo com o barão de Santa Lúcia em um sarau na casa do conselheiro Prestes. Depois, a pesar seu, não os perdeu mais de vista, descendo à baixeza de espiá-la, de acompanhá-la, de seguir-lhe todos os passos, movimentos estes que Corina conhecia perfeitamente, por intermédio de Maurícia e de Alfred, bastante rusé para se deixar vender, conhecendo toda aquela intriga em seus mínimos detalhes.
A existência de Paulino tornou-se então insuportável. O ciúme enlouquecia-o de dor e de raiva nas longas noites de vigília no seu leito do belvedere ou no de Madelon, cuja nudez olímpica de dríade infante não lhe excitava já os sentidos.
Até que, sentindo a necessidade inadiável de desabafar o seu incomportável sofrimento, disse a Santinha que prevenisse a amiga de que os seus amores com o barão estavam-se tornando escandalosos e que Fernando acabaria por ver também. Santinha teve um sorriso diabólico e limitou-se a dizer-lhe:
— Olhe, doutor Paulino, se eu devesse prevenir a minha amiga a respeito de alguém, não seria do barão, mas sim do senhor mesmo.
— De mim? - perguntou Paulino, com um espanto enorme na palidez da face.
— Sim, do senhor, que ama Corina como louco!
Paulino deixou-a aterrado, sem mais uma palavra; e, horas mais tarde, estava no boudoir da francesa, cujos amores viciosos foi procurar, como, em busca do esquecimento, procura um ébrio a taverna, e um jogador a batota.
Enquanto a franzina flor do bulevar, nua, com a alvura leitosa e velutínea do seu corpo moço e mimoso, apenas cortado pelo negrume das meias, e os seios, pequeninos e rijos, de Cloé, parecendo gotejar sangue dos bicos altos, acabava o seu toucado noturno, diante do cristal do psiqué, Paulino inerte, apático, estendido, de olhos cerrados, na chaise-longue, ruminava em silêncio o seu atroz sofrer, e, no momento em que a amante lhe dizia, risonha, tentadoramente lúbrica, tendo vestido uma camisa de seda preta, ornada de valenciennes: "Alions nous coucher, mon petit", ele ouvia-se dizer a si próprio, no mais fundo do seu pensamento, como se o ouvisse de outrem: "Ou fujo ou mato-me".