Flor de Sangue/II/III
Naquela noite era grande a concorrência nas salas do Clube Brasileiro, de que eram associados Viriato e Fernando, e corria o jogo animadíssimo em ambos os tapetes da roleta.
O conselheiro Gomes Lobato é um dos homens mais conhecidos, mais célebres mesmo, do antigo regime, pela sua notável inteligência, não vulgar ilustração e inquebrantável firmeza política. Militou com fulgor na imprensa conservadora, distinguiu-se na campanha abolicionista, prestou longos e bons serviços ao funcionalismo. Com a queda do regime monárquico retirou-se, porém, completamente da vida política. Nunca mais disse nem escreveu uma palavra em público. Tivera sempre duas paixões - a astronomia e o jogo. A segunda venceu a primeira, como venceu nele todas as curiosidades científicas e literárias. Atolou-se no jogo até ao pescoço.
Dentro em pouco encheu a cidade a fama das suas incríveis audácias à roleta e ao dado, arriscando dezenas de contos, perdendo hoje uma fortuna, para readquiri-la amanhã e tornar a perdê-la no dia seguinte, sem trepidações nem queixumes. Era digna de ver-se a sua figura majestosa de primeiro-ministro, a barba cerrada e grisalha, a fronte escampa e vincada, os olhos calmos e graves, os gestos pausados, a frase comedida, manejando os cartões dos cheques de 50 e cem mil-réis, perseguindo uma martingalle, empilhando e desempilhando os cartões, espalhando-os sobre os números: em pleno, no esguicho, na rua, a cavalo, e no manque ou no passe, sem açodamento, com precisão, tendo ainda tempo de acender e sugar o cigarro, dar balanço à conta de lucros e perdas, trocar frases com os parceiros, fazer alguma observação seca mas cortês ao crupiè.
Parecia o próprio gênio do jogo e o deus Hermes em pessoa.
Tinha teorias muito originais, muito suas, acerca do jogo. Como não jogava para perder, arriscava dez contos para recuperar dez tostões perdidos: e uma vez recuperados, parava, não jogava mais nessa noite. Jogava com o cálculo das probabilidades, variando de números e de processo, graduando matematicamente as mises, limitando com prudência os prejuízos, como o próprio ganho. Não aceitava nem permitia conselhos de ninguém e só os dava a quem lhos pedia ou provocava e emitia-os com voz grave, sonora, empregando as expressões mais atenciosas, numa dicção cuidadosamente correta.
Era um mestre da língua, e mal disfarçava a consciência e o garbo que disso tinha. A clientela da casa, composta na maioria de ignorantaços e frívolos, ouvia-o com religiosa atenção e profundo respeito, como a um oráculo, embora entendendo bem pouco o que ele dizia, com ares pontifícios. Todos lhe davam excelência, desde os sócios do estabelecimento, dos quais o principal era um conde russo, até aos últimos ficheiros. A mesa do jantar, numa das cabeceiras, enquanto serviam e passavam os saborosos acepipes, regados por vinhos excelentes, senão na qualidade, ao menos no gosto e no buquê, o conselheiro discreteava com ironia, mordaz porém cortês, acerca dos últimos acontecimentos políticos, revivendo casos e anedotas dos passados tempos. Era um encanto impagável vê-lo contar a um decavé de ar espesso e olhos sumos, incapaz de compreendê-lo, um desses episódios politico-históricos, com uma vèrve encantadora e uma correção puritana de linguagem, raríssimas de encontrar juntas:
— Vou contar-lhe, senhor Burlamaqui, um dos mais curiosos episódios do segundo reinado. O imperador, que, como o senhor bem sabe, aliava à virtude de Marco Aurélio a sagacidade de Luís XI, tinha por inveterado costume mostrar-se não sabedor daquilo que melhor sabia, para sondar os conhecimentos e as intenções dos seus ministros e conselheiros. Prática excelente, meu caro senhor Burlamaqui; prática excelente! Ora, aconteceu de uma feita que, sendo presidente do Conselho o visconde do Rio Branco, esse vulto venerando da política do império, primaz entre os primazes, maior entre os maiores, se avisasse o imperador de consultá-lo sobre...
E nesse tom magistral continuava, disserto, conceituoso, grave e gracioso a um tempo... Raros, entanto, lhe aproveitavam as pérolas.
Nunca houve entre ele e qualquer ponteiro, mesmo dos que a sorte maltratava ou dos que se exaltavam com algum excesso de álcool, o mínimo desaguisado, a mais leve altercação. Todos o respeitavam, todos lhe reconheciam a incontestável seriedade. Punha os incidentes mais ingratos do jogo - a retificação de uma soma de fichas ganhas numa parada, a contagem do dinheiro, a reclamação de um pagamento esquecido - um ar tão austero, uma tal gravidade, que aquilo nem parecia jogo, parecia missa! Dava à bola como se consagrasse a hóstia e o vinho; cantava o número como se regougasse o Dominus vobiscum. Jamais convidava alguém a jogar e aos novatos pintava o jogo com suas verdadeiras cores.
Em meio daquela sisudez e amabilidade inalteráveis, desenvolvia uma prodigiosa perspicácia e um maravilhoso poder de observação. Os seus olhinhos escuros e luzidios tinham uma penetração de verrumas de aço e furavam um crânio à procura do pensamento que lá se escondia em dois lampejos rápidos.
Um homem superior inegavelmente; e que o era provava-o o conseguir dominar com destaque o meio em que vivia. A verdade ê que ele se distinguia daquela gente, como o azeite da água - por cima.
Não se confundia com eles, e percebia-se no apuro de polidez com que os tratava a preocupação de conservá-los a distância e no tom com que se lhes dirigia um leve matiz de altivo desdém.
Em volta dos dois tapetes, à direita e à esquerda do banqueiro, sentados uns, outros de pé, jogavam indivíduos de todas as classes - um senador, dois deputados, um dos quais o Gama, de bigode branco, que falava pouco e desabridamente; um coronel do Exército, magro, muito vermelho, praguejando como um... militar, berrando a cada bola perdida: "Ora p...! Ora m...!" com voz de comando; três ou quatro funcionários da policia em exercício; um velhote de suíças, macambúzio, a quem uns chamavam almirante e outros "chefe"; um advogado famoso; um leiloeiro; um jornalista muito estimado, pontuando de excelentes pilhérias cada bola falha; dois ou três corretores; um famoso banqueiro boêmio, já velho, parando ás duas ou três fichinhas de quinhentos réis num só tio Oró; e um ex-ministro da República a que chamavam o porta-pastas por ter ocupado três a um tempo; um padre, a secular, fazendo um jogo diabólico; um barão assinalado... por bons serviços à pátria e a quem o demônio do jogo jurou limpar eternamente os bolsos.
O resto - uns suspeitos e uns desgraçados, lívidos, despenteados, suarentos, vesgos de ambição, ofegantes de impaciência, reincidentes do vicio, arriscando sem cálculo e sem calma os últimos mil-réis; alguns limpos já, olhando melancolicamente e jogando de cabeça para verificar se ganhariam se acaso jogassem deveras; outros que vão ao clube só para jantar e limitam-se a sapejar durante meia hora pela razão de que "Quem não bebe na taberna folga nela".
De vez em quando soava uma campainha elétrica e ouviam-se vozes pedindo em diversos tons: "Um copo com água". "Um conhaque." "Um copo de cerveja." "Um charuto." "Fósforos." "Um chartreuse." Criados apressavam-se, servindo. E ouvia-se o ruído dos ancinhos de madeira arrecadando as fichas de várias cores, aos montões, e que os ficheiros iam rapidamente separando pelas cores e acumulando em colunas de 20.
— Trinta e cinco. Quatorze - ia dizendo a voz sonora e grave do conselheiro.
— Com mil bombas! Quatorze, o dobro de sete, e eu, que joguei no sete, não joguei no quatorze! Ora m...! - estourava o coronel.
— Duplo zero. Trinta e seis.
— Jogo do inferno! Dá o Alfa e logo depois o Omega. O diabo que o entenda! - comentava o jornalista.
— Eu tenho duas em pleno e uma na rua - reclamava o banqueiro.
— Oitenta e uma amarelas - acudia o crupiè, passando-lhe as fichas. O banqueiro recolheu-as, juntou-as as que tinha diante de si, contou-as e depois disse ao banqueiro:
— Fichas a troco.
— Quantas?
— Duzentas e quinze.
— Cento e sete mil e quinhentos réis volveu o banqueiro, passando-lhe 108 mil-réis, por ser praxe generosa da casa arredondar toda fração de mil-réis. O tio Orô meteu o dinheiro no bolso e ia saindo quando um magricela o segurou pelo paletó:
— Ó tio Orô, empresta-me dez mil-réis.
— Você pensa que eu ganhei? Perdi 50 mil-réis. Não posso ser mordido. Adeus.
Fernando estava na pontaria, provavelmente feito com a banca para animar a parceirada ou para diminuir os prejuízos da banca, que na segunda hora estava perdendo. Acabava de ser cantado o número 13, em que ele havia parado justamente 13 fichas, quando o porteiro veio entregar-lhe uma carta.
— Foi um moleque que já se foi embora, dizendo não ter resposta.
— Está bem.
— Quatrocentos e cinqüenta e cinco pérolas! - gritou o crupiè, passando a Fernando quatro cartões e três pilhas de discos de madrepérola.
Ele examinou a letra do sobrescrito: não a conhecia, tendo-lhe parecido feminina pelo caráter do talho. Meteu-a no bolso externo do paletó, para não interromper o jogo a lê-la, e fez nova parada.
De todos os ponteiros apenas dois ou três estavam ganhando e desses o de mais sorte era o Paes, um homem baixo, gorducho, de bigode preto, ar simpático, major da Guarda Nacional, roleteiro por gosto, hábito e profissão, que estava perdendo havia sete ou oito semanas somas consideráveis, que não se sabia onde achava para poder perdê-las. Naquela noite parecia querer voltar-lhe a chance; parava nos números da primeira dúzia, cercando-os e carregando-os de todos os modos e em cada três golpes um era de número inferior a 13, o que fazia irem se avolumando os maços de cheques de 50 mil-réis diante dele. O seu lucro era calculado já em cinco contos e tanto.
O barão assinalado, tendo perdido a última nota, saiu do seu lugar e veio falar baixo ao ouvido do major Paes. Este, sem interromper o trabalho de distribuir fichas e cartões, respondeu-lhe, em voz alta, sem voltar-se para ele:
— Ora, seu barão! Pelo amor de Deus! Sempre o supus menos caradura! Pois o senhor tem mesmo o topete de vir pedir-me cem mil-réis emprestados, o senhor que, não há ainda um mês, negou-me 50 mil-réis em noite em que estava de sorte, esquecido de que me devia, como me deve ainda, mais de trezentos, há dois anos! Já é coragem!
O barão curvou o busto ereto e elegante para falar de novo ao ouvido do major. Poucas pessoas mostravam-se impressionadas por aquela cena trivial, ao que parecia.
— O senhor pensava que eu tinha esquecido... ou que, por ser o senhor barão e alta patente militar e não sei mais o que, eu me calava, fingia ter-me esquecido da sua ingratidão e do seu desaforo? Pois enganou-se. Não preciso nem tenho medo do senhor, como de ninguém; fique sabendo.
— Onze! - gritou a voz pausada e grossa do conselheiro.
O major Paes ganhava, só nesse golpe, 1170 fichas. O barão, imperturbado, falava-lhe novamente ao ouvido, com animação. De repente, o Paes tirou dois cartões de 50 mil-réis de um dos maços e deu-os ao barão, dizendo-lhe, com um tom duro e desdenhoso:
— Tome lá; leve. E para que fique sabendo que sou mais generoso e mais delicado que o senhor. Não faço caso de dinheiro; o que não admito é que me maltrate quem me deve favores...
O barão voltou logo ao seu lugar, sem agradecer mais aquele que o major Paes acabava de fazer-lhe.
Mas Fernando, como começasse a perder forte, parou e deu as fichas a troco.
Tendo-se levantado, indo tirar o lenço de seda do bolso, encontrou a carta.
— Ah! A tal carta. Já me esquecia... Mas de quem será? - monologou a meia voz e, rasgando o invólucro, foi entrando para o salão luxuoso, fartamente iluminado, mas deserto. Desdobrou a folha de papel branco, de que se evaporou um cheiro forte de opopônax.
— Hum! É de mulher: conhece-se pelo cheiro e pela letra. Mas é anônima. Que será? - E pôs a lê-la com viva curiosidade.
Mal começada a leitura, as mãos, que sustinham o papel, entraram a tremer; empalideceu, cambaleou, caiu sobre uma cadeira. A carta, que, com esforço enorme e violento, leu até o fim, dizia o seguinte, em boa caligrafia e sem muitos erros ortográficos:
"Senhor Fernando Gomes. Enquanto o senhor passa a noite jogando e amando a insignificante Bianchini, sua mulher consola-se da sua ausência e da sua infidelidade com o seu amigo íntimo Hugo da Rosa, esse bandido, essa pústula. Todas as noites vai ele a esse clube verificar se o senhor aí está, depois do que vai ocupar-lhe a cama tranqüilamente. Corra a casa, apenas receber esta, entre sem rumor e há de ver um belo espetáculo, digno de figurar nos contos de Rabelais. Quem isto lhe escreve, sem mesmo ter a precaução de disfarçar a letra, é uma das muitas vítimas daquele miserável, que dele tem sofrido torturas. Depois de despojar-me de um resto de pudor e de ilusão, que eram a minha felicidade, despojou-me das minhas economias e das minhas jóias e agora esbordôa-me quando não lhe arranjo dinheiro. Eu era uma viúva honesta antes de conhecê-lo. Hoje sou uma desgraçada, que terá de acabar... sabe Deus onde. Resolvi denunciá-lo para libertar-me dele e vingar-me também, acreditando que o senhor terá coragem e brio bastantes para matar esse infame sedutor como se mata um cão danado. Será um serviço â humanidade. Se o senhor nada fizer, por ser anônima esta carta, irei procurá-lo em pessoa e há de então, diante das provas irrecusáveis que lhe darei, reconhecer toda a triste e imunda verdade. Pulso firme e... adeus".
Acabada a leitura, Fernando ergueu-se, esfregou os olhos, mediu a sala a passadas largas, agitadíssimo. Releu a carta, com dobrada atenção, como se não a houvera compreendido. Depois foi ao gabinete, abriu um cofre, tirou dele um revólver, que verificou estar carregado; meteu-o no bolso respectivo; apalpou a faca de cabo de prata, que trazia sempre na cava esquerda do colete; fechou a burra; tomou do chapéu e desgalgou rápido as escadas.
Uma vez na rua, atirou-se para dentro de um dos tílburis estacionados à porta do clube, deu o endereço ao cocheiro e disse-lhe com voz cavernosa:
— A galope, a todo o galope!