Flor de Sangue/II/IV
O tilbureiro fustigou com vivacidade, a golpes estalados do pingalim, a magra e sonolenta pileca, que disparou no seu melhor galope. Mas, por mais rápido que o veículo corresse, a Fernando se afigurava que ele mal se movia. A sua impaciência era atroz... doía-lhe como uma queimadura.
Nos 20 minutos que durou o trajeto não conseguiu formular um pensamento claro e completo, apesar de ter o seu pobre cérebro trabalhado incessantemente. Sentia-se arder em febre; a cabeça escaldava-lhe, ao passo que as mãos suavam frio. Era horrível. Teve a intuição de que, se se demorasse mais uma hora a chegar a casa, perderia a razão, ou morreria sufocado. Felizmente o tílburi entrava na rua do Bispo. Fê-lo parar duas casas antes da sua.
Ia pagar ao cocheiro, mas, de repente, mudou de aviso e mandou-lhe que esperasse.
Caminhou para o portãozinho de ferro. Ergueu o trinco e entrou. Deu volta ao jardim, em demanda da porta da sala de jantar, única de que tinha a chave. Espiando pelo buraco da fechadura, viu que um bico de gás estava aceso em lamparina. Naquele momento o relógio da sala batia meia-noite, vagarosamente.
Deu volta à chave, empurrou a porta, entrou; mas o seu primeiro passo encontrou um corpo estendido, o qual, com o contato, mexeu-se, levantou-se rápido.
Era Maurícia, que dormia ali sempre que o amante de sua ama estava no sobrado, no quarto dela, para poder avisá-la, no caso de acontecer, como aconteceu afinal naquela noite, que o amo chegasse de improviso, antes da hora habitual.
Estremunhada, apenas o reconheceu, espavoriram-se-lhe os olhos, abriu o boca para gritar, atadas as pernas pelo terror. Mas a mão de Fernando tapava-lhe a boca... A negra arrancou essa mão com as suas e emitiu o primeiro som de um grito:
— Si...- mas não acabou: uma coleira de ferro estrangulava-a.
— Cala-te, negra maldita!- regougava Fernando, apertando-lhe a garganta com furor.
Os olhos da preta saltaram, enormes, das órbitas; a língua estirou-se-lhe da garganta, de onde saía um estertor. Fernando abriu as mãos; mas teve de amparar o corpo da desgraçada, para impedir o estrondo da queda: estava morta. Sacrificara-se pela sua filha de criação, heroicamente, com sublime simplicidade.
— Diabo! Esta agora! - e depôs brandamente o cadáver sobre a esteira em que dormia Maurícia um minuto antes.
Descalçou-se, tirou o fraque para ter os movimentos mais livres, empunhou o revólver engatilhado e subiu sutilmente as escadas, frouxamente alumiadas por um bico mortiço de gás. A preta deixava um pouco de luz em todas as partes, para proteger e facilitar a fuga de Hugo num caso de surpresa. E como Corina contava absolutamente com a sua dedicação, não esperava que fosse chegado o dia terrível dessa surpresa fatal.
O quarto de dormir era precedido do escritório de Fernando e seguido do gabinete de toalete. O escritório estava às escuras; mas no dormitório havia luz abundante. Atravessou aquele cautelosamente, evitando encontrões nos móveis, e chegou à porta envidraçada. Infelizmente as cortinas de cassa branca, do lado interno, dobradas em pregas verticais, impediam a vista. Pelo buraco da fechadura nada distinguiu: tapava-o a chave.
Quedou-se a escutar, colando o ouvido à fechadura, mas foi-lhe difícil ouvir, porque eles falavam baixo, em frases curtas, rápidas. Pareceu-lhe ouvir beijos e que Corina dizia não, repetidas vezes. Mas uma frase chegou-lhe nítida, perfeita, dita por ela; foi esta: "Amo-te, sim, mas não posso dar-te as bichas de brilhantes: Fernando daria por falta!"...
— Ah! Miserável! - rouquejou o marido, apertando a coronha da arma.
E ouviu então, de novo, o som de beijos e uma voz que suplicava, e suspiros, gemidos curtos, risos abafados. Procurou, com desespero, na cassa das cortinas num orifício por onde pudesse devassar o aposento. Achou afinal um rasgão em forma de pequeno triângulo: ajustou o olho direito ao vidro no lugar correspondente ao rasgão, e o que viu fê-lo tremer todo da cabeça aos pés, como num acesso de malária.
— Oh! O imundo animal! O infame! O infame!
E pensou logo em entrar e exterminá-lo. Mas experimentou levemente a porta: estava fechada. Que fazer? Arrombá-la? Daria tempo ao bandido para sair pelo gabinete de toalete e, tomando o corredor lateral, escapar-se, talvez.
Que fazer? Teve então uma idéia: bater devagarinho, como bateria Maurícia. Foi o que fez. Bateu levemente sobre o vidro, uma pancada, duas, três. Não responderam logo, de dentro. Mas ao soar a última pancadinha das três dadas juntas, a voz de Corina disse:
— Espera, espera... Estão batendo... não ouves? Ouço, sim; quem será?
— Deve ser a Maurícia; é com certeza. Podes abrir.
Ouviu-se um ruído surdo de passos de homem descalço e uma das meias portas abriu para dentro.
A figura de Fernando, em colete, descoberto, sem botinas, com o revólver estendido na mão direita apareceu no vão da porta.
Tudo o que então se passou foi de uma rapidez prodigiosa, indescritível. Hugo, em menores, recuou espavorido, estendendo os braços, fitando aterrorizado, a arma. Corina, nua, sentada sobre a cama revolta, os olhos escancarados, soltou um grito estridente; mas ao mesmo tempo ouviu-se a detonação de um tiro e logo segunda e terceira...
Hugo da Rosa, ferido no peito, foi cair aos recuos sobre a cama, comprimindo o ponto ferido com as mãos; e o seu corpo, amparado num dos braços, enquanto o outro se agitava na direção de Fernando, atravessou-se sobre as pernas brancas da amante desacordada.
Fernando aproximou-se lívido, hirto, com o revólver apontado, pronto a disparar ainda. O ferido arquejava; seus lábios brancos murmuravam: "Perdão!" Mas Fernando estava alucinado; via tudo vermelho: só via sangue e queria mais sangue.
Meteu a arma no bolso e sacou da cava do colete a faca, cujo cabo, de prata lavrada, cintilava ao gás. E o que se seguiu foi medonho. Avançou para o moribundo, trepou-lhe sobre o corpo e crivou-o de golpes profundos, certeiros, repetidos, demorados, em toda parte,- no pescoço, no peito, no ventre, nos olhos, na boca. O sangue, ao primeiro golpe no pescoço, esguichou farto sobre os lençóis, sobre o corpo inerte de Corina; depois, parou de correr, quando os golpes se multiplicaram. As mangas e o peito da camisa do homicida estavam tintos de rubro e as mãos pareciam calçadas de luvas da mesma cor.
Enquanto feria incansavelmente, Fernando monologava com os dentes cerrados e a voz áspera, como se saísse triturada nos dentes: "Infame! Bandido! Toma! Toma! Roubavas-me tudo, então? A mulher e o dinheiro! Eu trabalhava pra ti, ladrão! E todas as noites, enquanto eu estava fora, tu vinhas tranqüilamente, tomavas conta da casa. Ceavas provavelmente. Depois entravas para o meu quarto com ela. Fazia-a despir-se como uma fêmea reles, e, à luz do gás, de charuto à boca à frescata, gozavas do espetáculo da sua nudez! E ensinavas-lhe bandalheiras, mistérios de bordel! Toma! Toma! E quando a vias desfalecida de gozo sob as tuas carícias ignóbeis, pedias-lhe as jóias, extorquias-lhe dinheiro. Ah! Compreendo agora por que ela me pedia tantas vezes dinheiro, cujo emprego tão mal justificava! Era para o seu amante, era pra ti, safado, que o ias gastar provavelmente com outras. Era disso que vivias! Era com a honra dos maridos que fabricavas o teu luxo grosseiro. Fazias das esposas prostitutas e ladras! E eu a abraçar-te, a receber-te à minha mesa, a encher-te o bandulho, a chamar-te amigo! Toma! Toma! Ah! Só teres uma vida! Como a morte é castigo leve para tantos crimes!..."
Mas o corpo de Corina mexeu-se: despertava do delíquio. Sentou-se na cama e, como louca, com a alvura da sua carne moça salpicada, enlaivada de sangue purpúreo, esteve um momento imóvel, assistindo àquela cena pavorosa. Fernando, sentindo-a acordada, lembrou-se, e só então, também dela. Suspendeu o braço, que golpeava sempre, voltou para ela os olhos aloucados.
Foi um segundo de indizível horror. Ela juntou as mãos em súplica muda. Ele, com o punhal, tinto de rubro, erguido na destra, descavalgou o corpo miserável do morto, desceu ao chão, e com o próprio punhal chamou a mulher, sem uma palavra, Ela, despenteada, sujas de sangue as pernas e as mamas, trêmula, um terror sobre-humano decompondo-lhe as feições, obedeceu... Veio para ele como uma sonâmbula e ajoelhou-se-lhe aos pés, abraçando-os, de rastros. E soluçava, soluçava. Ele curvou o corpo sobre o dorso nu, encolhido, da infeliz e ia cravar-lhe a arma; porém a voz de Corina subiu-lhe dos pés, flébil, gemente, misérrima... "Fernando! Meu Fernando! Meu marido!"
Vinha tão cheia de fraqueza, de miserabilidade aquela voz!
Estava tão baixo, cosida com o pó, numa posição de cadela batida! E depois, ele que ia matá-la sem defesa, covardemente, não teria concorrido para o crime que estava ali castigando? Não passava ele quase todas as noites fora de casa, no jogo, na orgia? Não a abandonava, assim, a todas as tentações perigosas e torpes? Não tinha ele amantes? Fora sempre um bom marido? Dera-lhe sempre os carinhos, as honras, a proteção que lhe devia?
E o braço não golpeava e a voz da desgraçada, soluçando sem parar, como um fio d'água que sai aos gorgolejos de um tubo:
"Perdão! Sei que mereço a morte! Mas tenho-lhe tanto medo! Tanto medo! E se soubesse como tenho expiado o meu crime! Aquele homem fez-me sofrer torturas! Perdoa-me! Fernando, meu Fernando! Meu marido!"
Ele não respondia... Uma piedade imensa, invencível, invadia-lhe a alma amolecendo-a num fluxo de lágrimas, que rebentou, por fim. Atirou o punhal e, sentado sobre uma cadeira, com a face fechada nas mãos, chorou longamente, miseravelmente, em soluços hartos, convulsos. Corina, que vestira um penteador, chorava também de bruços, beijando-lhe os pés.
Quando a onda impetuosa do pranto passou, desarmando-lhe a cólera, desafogando-lhe a alma, lavando-lhe os olhos do sangue que os cegava, ergueu-se, empurrou silenciosamente de si com o pé o corpo da mulher, fechou a porta que dava para o gabinete de toalete, guardou a chave e saiu do quarto, deixando nele Corina com o morto. Depois fechou a porta por fora, desceu a escada, passou sobre o cadáver de Maurícia, e saiu para a rua.
O tílburi esperava-o. "Leve-me à estação policial mais próxima", disse ao cocheiro. Este, que dormia, acordou estremunhado, e não pôde reter uma exclamação de espanto quando viu o freguês naquele estado: sem paletó, nem chapéu, nem botinas, lívido, desgrenhado, manchado de sangue. Quis negar-se a conduzi-lo, assustadíssimo. Mas viu brilhar o cano de um revólver e achou prudente obedecer.
O cavalo partiu a galope.