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Flor de Sangue/II/VII

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São Paulo,...de...de 189... Meia-noite.

Fernando.

Como e por onde principiar esta carta? Ah! Se eu pudesse deixar de escrevê-la! Mas não, ela é indispensável, custe-me este sacrifício embora muito mais que o da própria vida, que dentro de algumas horas vou fazer também.

Sim, é um moribundo quem te escreve, meu Fernando. Dentro de algumas horas terei deixado de existir; vou suicidar-me, e unicamente para isto foi que vim para São Paulo.

A verdadeira causa deste ato que a imprensa e o público hão de qualificar, como habitualmente, de ato de desespero ou de loucura, vou dizê-la nesta carta somente a ti. Ninguém mais no mundo a conhece nem conhecerá. Talvez tu mesmo fiques ignorando-a, porque esta carta pode ser que te não chegue às mãos. E oxalá que assim seja! Desejo-o ardentemente! Se eu acreditasse em Deus, suplicar-lhe-ia com fervor que arredasse de ti este cálice de fel, não menos terrível que o que apareceu a Jesus no Horto das Oliveiras.

Oh! Meu Fernando, o que tenho a dizer-te é por tal modo horrível que quase desfaleço; a coragem abandona-me, e é preciso um supremo esforço, é preciso evocar a imagem severa do dever para não despegar da pena e interromper estas linhas. O que me alenta, o que me dá forças para consumar este sacrifício tremendo é a esperança, a doce, a sempre verde, a eterna consoladora. Bendita sejas, boa amiga dos infelizes! E a esperança de que esta carta não seja lida nunca pelo seu destinatário e que, portanto, ele fique Ignorando sempre a pavorosa verdade sobre o meu suicídio; é a esperança de que se não realize a circunstância, o fato de que depende receberes esta carta. Claro é que, se a leres, será por ter-se realizado aquela condição e portanto parecerá quase calinada tudo o que tenho estado escrevendo até aqui; bem o sei; quero, porém, que conheças os meus sentimentos, o desejo e os votos ardentes que faço para que tal fato não suceda, para que não leias nunca esta missiva assassina... digo assassina porque temo e quase pressinto que te matará.

Que situação atroz a minha! O dever ordena-me tudo dizer-te, sacrificar a própria honra do meu nome, em expiação do meu crime, ser leal e verdadeiro contigo à beira do túmulo, para te não usurpar um respeito, uma gratidão, uma saudade que não mereço, de que não sou digno... Mas a minha amizade por ti faz-me tremer pelo sofrimento que te vou causar, pelo golpe, talvez mortal, que te vou desfechar, certeiro ao coração... Ele, porém, não será o primeiro: teu coração já estará mortalmente ferido quando o segundo golpe o retalhar. Sem aquela primeira punhalada não receberás esta.

Oh! Deus, se existes, faze que seja assim! Afasta de meu pobre pai este cálice de morte! Sim, porque és meu pai, e eu o sei, e já o não esqueço... Devo-te tudo o que sou, ou antes tudo o que fui, porque é um extinto quem te fala. Educaste-me, fizeste-me alguém; deste-me com uma das mãos a bolsa e o coração com a outra. Deste-me a tua confiança, a tua amizade, a tua esperança, a tua alegria, tua alma inteira. Fizeste de mim um prolongamento do teu eu. Foste para comigo leal sempre, além de boníssimo. Merecias que te eu amasse como um filho de sangue e servisse como um escravo ilibertável.

Pois bem, eu... Oh! como dizer-lho, minha alma? Dá-me forças, meu Deus! (Como Ele é necessário nestes momentos supre-mos da vida! Nestas crises para as quais não tem o mundo solução nem remédio!) Eu... traí-te, Fernando, traí-te como o mais vil dos vis, o mais miserável dos miseráveis... Apaixonei-me por tua mulher... Mas nisso não houve culpa minha... Somos nós porventura senhores do nosso coração? Que vale dizer-lhe: "Não ames"? Ele não recebe ordens; não é escravo: é senhor e déspota. Mas o meu dever era afogá-lo no peito. Aquele amor era um crime: eu devia estrangulá-lo no nascedouro. Manda a verdade dizer que fiz esforços para isso; mas insuficientes, fracos... Eu devia ter abandonado a tua companhia, saído de tua casa, e dizer-te mesmo por que o fazia, lealmente: "Amo tua mulher como um louco e como sou teu amigo e homem de bem - deixo-te, fujo". Não o fiz. Fui... amante... de tua mulher; mas somente quando te ausentaste para o rio da Prata. Não permaneci um só instante sob o teu teto, contigo, depois de haver-te atraiçoado; dou-te a minha palavra de honra!... De honra? Tenho-a eu ainda, porventura? Pode um desonrado invocar a honra? Dolorosa irrisão!

A minha confissão está feita. Todo o tempo que passaste fora, fui amante de Corina, gozei-a com ardor, com delírio, alucinadamente... Há apenas algumas horas, no trem de ferro, recapitulando todas as peripécias, todos os incidentes da nossa ligação culposa, numa análise rigorosa de autopsicose, concluí por convencer-me de que não a amava de verdadeiro amor, mas somente de paixão carnal...

Oh! Eu tinha necessidade de crê-lo para ter as forças necessárias ao cumprimento do meu dever; para não retroceder covardemente e ir viver com ela e contigo, em ménage à trois, como fazem tantos... Horrorizou-me a idéia de vivermos juntos, os três, sob o mesmo teto, como dantes, e por isso propus-lhe abandonar a casa e o marido à luz meridiana, para acompanhar-me.

Sim, propus-lhe essa infâmia... tanto a amava! Mas atende que ela é infinitamente menos vil que continuar teu hóspede, teu protegido, partilhando-te tudo - mesa e cama. Juro-te que a minha intenção era não me defender se me atacasses, era deixar matar-me indefeso: era aquele o teu direito e era este o meu dever. Ela, porém, não quis: não me amava. Quando se ama sorri-se ao perigo, arrosta-se a morte. Não me amava, acredita-o.

A idéia de ver-te novamente, de abraçar-te, de estreitar-te a mão leal era-me insuportável... Senti-me incapaz dessa baixeza e isso elevou-me moralmente um pouco aos meus próprios olhos. Resolvi matar-me, porém antes que novamente nos víssemos; não queria que teus olhos pousassem sobre os meus depois que a luz deles se maculara no lodo da traição: não mereciam aquela honra. Parti esta manhã na véspera da tua chegada.

Talvez, no entanto, hajas desembarcado hoje mesmo e a esta hora tenhas nos braços... tua mulher... e nos seus beijos não sintas ressábios dos meus... Ah! Fernando, este pensamento queima-me o cérebro como uma brasa viva... Tenho ciúmes, sim! Para que mentir-te... a dois passos da morte? Se já sabes tudo! E, entretanto, falas talvez em mim; estranhas e comentas a minha partida e ausência e isso turva-te a felicidade do regresso ao lar... enquanto eu, aqui, neste quarto de hospedaria, escrevo neste papel que... tenho ciúmes de ti! Monstruoso! Que imundícia - a vida!

Sabes que tua mulher te é infiel. Descobriste-o... (Falo transportando-me ao futuro.) Conhecendo-te como te conheço, tenho a pré-segurança de que mataste o homem com quem ela repartia suas carícias... Mataste-o; bem. Mas tua mulher? Que lhe fizeste? Tê-la-ias matado também? Receio-o muito e este receio inquieta-me. Espero, entretanto, que te hajas comiserado dela, que lhe tenhas perdoado.

A mulher é um ente moralmente inferior, irresponsável pelo mal que faz, pelos infortúnios que espalha em torno de si. Conheces as minhas teorias a este respeito, porque leste o meu livro, além de que inúmeras vezes conversamos de tais assuntos. Se mataste o amante de tua mulher, fizeste bem; mas se também a esta, erraste e foste injusto, além de cruel. Se o homem fosse bom, seria a mulher má porventura? É o nosso egoísmo que as estraga e perverte. Só tendo em vista o gozo presente, sem atender aos males futuros, mentimos, fingimos, atraiçoamos; depois de saciados, abandonamos a vítima e vamos além, em busca de outra novidade, fazer outra vítima. Abusamos da fraqueza da mulher, que é toda credulidade, confiança, vaidade, amor-próprio e volubilidade. Quantas vezes atraiçoaste tua mulher? Muitas, não é verdade? Como há de, pois, o réu ser juiz?

Não: espero que te hajas lembrado do que de mim leste e ouviste a este respeito e lhe hajas poupado a vida. A vida te vingará contra ela como vai vingar-te contra mim pelas minhas próprias mãos, dentro de algumas horas apenas.

Vou terminar o nosso suplício: meu de escrever-te, teu de me leres. Não peço nem espero que me perdoes. Esta carta é, ao contrário, escrita para que me não guardes estima nem gratidão, para que me escarres na memória, para que me espezinhes a sepultura.

Mas peço-te e espero que perdoes a Corina. Fomos nós, tu, eu e o mundo que a fizemos má. Ela é uma alma encantadora, que foi angélica. Não soubeste cultivá-la... Lembras-te da minha carta de Paris a propósito dos abortos? Foi pessimamente educada. Tu, que a amavas, não soubeste corrigir os males dessa educação. E, por fim, eu, o filósofo, o psicologista, o forte, acabo a obra da sua perdição sucumbindo ridiculamente à paixão criminosa que me acenderam os seus encantos. Bem vês: castigá-la, fazê-la pagar culpas alheias, tuas e minhas, é mais que injustiça: é crueldade, é um novo crime. Não o hás de ter cometido, não hás de cometê-lo decerto.

Agora, adeus: adeus para sempre. Beijo-te as mãos, beijo-te os pés. Não te peço perdão: porque o não mereço, porque não deves dar-mo. Peço-te apenas permissão para chamar-te mais uma vez, a derradeira - "meu amigo, meu irmão, meu pai". Adeus, Fernando.

Aceita, recebe a alma inteira do teu desgraçado

Paulino.